PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
UM MONÁRQUICO ASSUMIDO
Dona Josefa e Mestre António deliciavam-se com a astúcia e a sabedoria de Álvaro que, apesar da sua tenra idade, enunciava todos os rios de Portuga e cantarolava, por ordem cronológica, os nomes e os cognomes dos reis das quatro dinastias. Mas com o que mais dona Josefa se admirava era o facto de o garoto recitar de cor o Pecador em latim e de enunciar, na mesma língua, os responsos do De Profundis.
- Como é que tu já sabes isso!? – Perguntava dona Josefa.
Foi o pai que esclareceu:
- Meu cunhado é o sacristão lá na Fajã, D. Josefa. De semana não lhe dá jeito ir ajudar à missa, porque precisa de ir trabalhar para as terras. Então minhas cunhadas pediram-me para deixar ir o Alípio, o outro meu filho, mais velho três anos do que este. É verdade que ele também me faz falta, mas dão-me cinquenta centavos por dia… Bastante jeito me dá! Elas ensinaram-lhe lá os latins da missa ou quê ao outro e este ouviu tudo e foi assim que aprendeu tudo.
- Então Álvaro, tu é que devias ser sacristão. É tão lindo ajudar à missa… Estar ali tão pertinho de Nosso Senhor… - Concluía dona Josefa, olhando o miúdo com ternura.
- Pois… Mas o senhor padre diz que sou muito pequeno e não chego para acender e apagar as velas. Eu já disse que punha uma cadeira e subia para cima do altar para acender as velas. Mas não pode ser… Não se pode por os pés em cima dos altares. – Explicava Álvaro com um misto de inocência e tristeza. Por fim, voltando-se para o dono da casa perguntou:
- Ó senhor António, posso fazer-lhe uma pergunta?
- Todas as que quiseres, meu filho. – Retorquiu Mestre Algarvio com blandícia. - Ora vamos lá, a ver. O que queres saber?
- O senhor chama-se mesmo Algarvio ou isso é um apelido? É que eu nunca vi ninguém com esse nome.
Com um suave sorriso nos lábios e anafando com ambas as mãos as pontas do farfalhudo bigode, o Senhor António explicou pachorrentamente:
- Não! Eu chamo-me António Alves da Costa Cabreira, mas em toda a ilha das Flores sou conhecido pelo António Algarvio. É que cá na ilha vocês tem uma mania muito engraçada e que é a seguinte: como há muitos Antónios e muitos Josés e muitos Manéis e muitos não-sei-quê, resolvem distingui-los com qualquer indicativo a eles ligado, é o José de Tianina, o Manuel do Monte, o António Cambado e a mim batizaram-me por António Algarvio. Sabes porquê? Porque não sou de cá, sou do Algarve. Eu nasci em São Bartolomeu de Messines, a freguesia maior e mais importante do concelho de Silves, no Algarve. Também lá passam dois rios, mas mais pequeninos do que aqueles cujos nomes tu bem conheces: o Arade e o Gavião. São Bartolomeu de Messines é a terra das pedras de amolar, que vocês aqui nas Flores chamam esmorizes e também a terra onde nasceu o ilustre poeta João de Deus. Ainda lá está a casa onde ele nasceu e viveu. Já ouviste falar em João de Deus? Foi ele que escreveu a Cartilha Maternal, o primeiro livro escrito em português para as criancinhas aprenderem a ler.
- Lá está ele com as suas literaturas. Deixa em paz a criança, homem! Precisa é de aprender a rezar e fazer as nove primeiras sextas-feiras em Louvor do Sagrado Coração de Jesus. – Implorava, prepotentemente, dona Josefa
- Não nunca ouvi. Mas, ó Senhora D. Josefa, eu já sei rezar e até já sei responder à missa. Mas eu gosto muito de ouvir as histórias do senhor António. Ele fala tão bem e sabe tanta coisa…
- Então vou contar-te uma história que nem os professores sabem ensinar, porque não vem nos livros da 4º classe. – Acrescentou o senhor António retorcendo, mais uma vez, as pontas do enorme bigode, muito entusiasmado e com grande orgulho e patriotismo. – São Bartolomeu de Messines foi um eficiente baluarte miguelista, por duas razões: primeiro porque foi local de residência de um dos mais célebres comandantes das tropas que apoiavam o nosso rei D. Miguel, de nome José Joaquim de Sousa Reis, mais conhecido pelo Remexido; segundo porque foi lá, junto à ermida de Sant’Ana, que as forças que apoiavam o nosso rei D. Miguel infligiram, em vinte e quatro de Abril de 1834, uma pesada derrota às forças liberais, que eram bem mais numerosas e melhor apetrechadas, comandadas pelo Marquês de Sá da Bandeira.
- Se fosse o Marquês de Pombal eu sabia quem era, porque vem a fotografia dele no livro da 4ª classe. – Interrompeu Álvaro, com ostensivo orgulho.
– Credo, menino. Esse foi que matou os frades e os padres todos e roubou os conventos e as igrejas… Um herege! Um herege! – Esconjurava dona Josefa
- Pois ficas a saber – continuou o senhor António - para nunca mais esqueceres que esta vitória se deveu ao sábio e eficiente comando dum valoroso general chamado Tomás António da Guarda Cabreira meu antepassado e acérrimo defensor da causa miguelista.
- Tinha que vir, mais uma vez à baila, o general! E dizem que o homem era ateu e que morreu sem se confessar e arrepender… E tu vais pelo mesmo caminho… - Resmungava dona Josefa.
- Por isso não há messinense que se preze que não seja monárquico e miguelista. Abaixo a República! Viva a Monarquia! – Vociferava o Senhor António retorcendo, mais uma vez, as pontas do bigode. Depois voltando-se para meu pai: - António, isto vai mudar! Não demora muito e vamos ter um rei outra vez a governar Portugal…
Dona Josefa benzia e persignava-se, resmungando:
- Foi por falares contra os nossos governantes e contra Deus que fugiste para aqui…
- Ó Dona Josefa, deixe lá! Nesta terra pode-se falar à vontade. Os homens vêem-se é pelas ações e não pelas orações.
- Pois o Antoninho fala assim porque também não põe os pés na igreja, não vai à missa, nem à desobriga. Está com o coração empedernido como este herege. – Dona Josefa punha as mãos e erguia-as ao céu. - Louvado seja o Sagrado Coração de Jesus. Mas Deus, através das minhas orações, há-de ter piedade de vocês. E tantos desgostos que ele já teve e tanto que já sofreu por falar de mais. Mas não há maneira de se emendar, de se arrepender e pedir perdão a Deus.
– Juro que enquanto for vivo hei-de pugnar pelos meus princípios monárquicos. Sou um Monárquico convicto, assumido – Afirmava o senhor António, cerrando os punhos.
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A GRALHA VAIDOSA
A Gralha é um pássaro relativamente pequeno, cujas penas pretas e coloridas e é bastante barulhento.
Conta-se que depois de terminar a obra da criação, Deus reuniu todos os pássaros que existiam sobre a face da terra e anunciou-lhes que pretendia escolher, entre todos eles, um rei. Marcou uma data para que todos eles se preparassem e comparecessem diante de seu trono muito bem apresentados. O mais bonito seria declarado rei.
Querendo arrumar-se o melhor possível, os pássaros foram tomar banho e alisar as penas às margens de um dos mais belos e límpidos rios da terra. A gralha também foi, pois era muito vaidosa e ambiciosa. Mas pensava que não ia ser escolhida, porque suas penas eram muito feias. Por isso resolveu procurar uma estratégia que a tornasse mais bonita.
Ora aconteceu que depois dos outros pássaros se lavarem, se sacudirem e irem embora, ficaram muitas penas de várias cores e feitios caídas pelo chão. A gralha juntou as mais bonitas e prendeu-as em volta do corpo. O resultado foi deslumbrante: ficou bela e nenhum pássaro era mais vistoso que ela. Decerto que Deus a havia de escolher para rei dos pássaros.
Quando o dia marcado chegou, todos os pássaros se reuniram diante do trono do Altíssimo. Deus examinou-os a todos, um por um e, como a gralha era a mais bonita, escolheu-a para rei. Quando já ia fazer o anúncio oficial, todos os outros pássaros avançaram para o futuro rei e arrancaram-lhe todas as penas falsas, mostrando a gralha exatamente como ela era.
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A CASA ASSOMBRADA
Na Vila de Santa Cruz havia, à entrada da Praça, do lado esquerdo de quem vinha da Fajã, havia uma pensão que dava hospedagem a inúmeros habitantes das várias freguesia das Flores, incluindo os da Fajã Grande quando se deslocavam a Santa Cruz e por lá se demoravam mais de um dia, a fim de tratar de assuntos vários, no Tribunal, nas Finanças, na Recebedoria ou quando acompanhavam algum doente internado no hospital ou quando aguardavam a chegada do Carvalho.
Essa pensão ficava por cima dum café que servia refeições e que, assim como a pensão, pertencia ao Vitorino. No entanto, muitos dos forasteiros que ali pernoitavam, não o voltavam a fazer, pois, cheios de medo, queixavam-se de que durante a noite ouviam barulhos esquisitos e viam fantasmas e almas do outro mundo. Muitos dos que ouviam tais patranhas escusavam-se de lá pernoitar novamente, o que diminuía, sensivelmente, o pecúlio do Vitorino, resultante das hospedagens que o café ia servindo jantares e ceias sem problemas.
Várias eram as estórias que se contavam sobre a origem do que supostamente ali se passava, ou que os hóspedes imaginavam que se assava, durante a noite, sendo a mais comum a seguinte:
Dizia-se que há muitos anos uma mulher, arribada à ilha num naufrágio, se apaixonou por um habitante da vila com quem teve três filhos. No entanto, o casal nunca formalizou a sua relação, nem o homem se disponibilizou a partilhar a mesma casa com a mulher, limitando-se a visitá-la a horas tardias da noite, recusando casar-se com ela. Tempo depois, o homem casou-se com uma outra mulher de uma freguesia distante da vila, pois tal enlace resultava-lhe mais conveniente, tentando evitar as más-línguas e os boatos que corriam entre a população. Este facto levou a náufraga à loucura, acabando, mais tarde, por afogar os seus três filhos numa poça, à beira-mar. Depois, ao ver o que tinha feito, suicidou-se, afogando-se também nas águas do oceano.
Dizem as pessoas que desde então, o seu fantasma era visto e ouvido a gritar e a gemer, na casa onde terá vivido e que supostamente existiria no lugar daquela pensão ou num velho edifício a que lhe deu origem. Segundo uma outra versão a mulher em causa seria uma princesa abandonada na ilha, de castigo, pois tinha-se apaixonado por um soldado, preterindo o filho do monarca reinante, a quem fora prometida. Havia no entanto quem afirmasse que os gritos e gemidos eram de uma alma de outro mundo, pertencente a uma mulher que depois de descobrir as traições do marido teria tido um surto de loucura e teria afogado seus filhos. Depois de tomar consciência do que fez, ela, também, se teria matado.
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ENTRE AS FLORES E O FAIAL
Já era noite escura quando o Carvalho levantou ferro da baía das Lajes com destino ao Faial, onde deveria chegar na manhã seguinte. Conformado com a minha situação de desacomodado, dirigi-me à amarra do convés e entretive-me a ver as manobras que os guindastes e roldanas da proa executavam a fim de levantarem do fundo do mar a pesada âncora que prendera o Carvalho em frente à vila, durante várias horas. Alguns marinheiros já tinham levantado a escada e fechado o portaló, trancando-o com duas grossas cavilhas de ferro. O navio, sentindo-se liberto da pesada poita, deu duas guinadas à retaguarda, apitou por três vezes, orientou-se rumo à saída da baia e zarpou em marcha lenta, em direcção ao Faial, deixando atrás de si, juntamente com o roncar estridente dos motores, uma enorme esteira de espuma esbranquiçada.
Passei a noite num vai e vem apreensivo e temerário entre a primeira e a segunda, ora subindo escadas ou penetrando em corredores ora entrando nas salas que ainda permaneciam abertas, para sair logo a seguir. De vez em quando subia ao convés da primeira a ver se descortinava uma espreguiçadeira desocupada. De seguida voltava à amarra para ver mais uma vez a ilha das Flores, agora já muito longe e de tal maneira confundida com o negrume da noite que quase não se via, apesar de estar perfeitamente assinalada pelos dois enormes e potentes faróis: a Sul o das Lajes e a Norte o do Albarnaz. Eu pensava então em meu pai, que aquela hora estaria a atravessar a ilha a pé, sozinho, sem luz, no meio de toda aquela escuridão. Possivelmente ainda estaria muito longe de casa. Olhava para o relógio e contava as horas desde que ele tinha partido das Lajes. Três horas de viagem, permitiam-me concluir que já teria chegado aos Terreiros. Mais uma hora e meia e estaria em casa. Depois imaginava minha irmã a levantar-se quando ele chegasse, alta madrugada, para lhe fazer café. Decerto iria dormir muito pouco, talvez mesmo, preocupado comigo, nem chegasse a pregar olho. Além disso, como habitualmente, pela manhã teria que se levantar muito cedo, para ir à lagoa das Covas ceifar um molho de erva e trazê-lo às costas até ao palheiro onde as vacas permaneciam fechadas até à hora em que as soltassem para os pastos.
Voltei a olhar a escuridão da noite onde já muito ao longe e muito tenuemente brilhavam os dois faróis. Dizia-se que havia um sítio a meio do canal entre as Flores e o Faial donde, em noites muito limpas e bem escuras, se viam ao mesmo tempo os faróis de ambas as ilhas. Mas aquela noite, apesar de muito escura, estava bastante enevoada.
Passaram-se mais algumas horas e começaram a vagar cadeiras no convés da primeira. Ocupei uma, mas não conseguia dormir. O navio, no silêncio escuro da noite, enquanto a maioria dos passageiros e tripulantes dormia, com as luzes quase todas apagadas, continuava o seu marear com solavancos rítmicos, cada vez maiores, acompanhados pelo som roufenho das máquinas. Os faróis das Flores há muito que haviam desaparecido por completo. Agora, possivelmente, já estaríamos mais perto do Faial. Eu aguardava expectante a aproximação da ilha, na esperança de conseguir vislumbrar, de longe, o vulcão dos Capelinhos.
É verdade que o vulcão havia rebentado quase há um ano. No entanto quem por ali passava a bordo do Carvalho afirmava que ainda se via perfeitamente uma coluna de fogo. Tinha sido no final do mês de Setembro, do ano anterior que tudo começara. Entre os dias dezasseis e vinte sete de Setembro registara-se uma crise sísmica no Faial e no Pico, como há muito se não vira e que culminara com o rebentar de um vulcão, no final do mês, na parte norte da ilha do Faial. Uma enorme coluna de fogo emergira do seio da terra, espalhando uma chuva de cinzas sobre grande parte da ilha. Os abalos sísmicos foram prosseguindo e a coluna de fogo manteve-se bem viva e ameaçadora durante longos meses. Agora, no entanto, já não tinha nem a pujança nem a força inicial. Mas no início da crise, a lava emersa da terra era tanta e tão forte que até nas Flores, imune a todo o tipo de actividades sísmicas, ter-se-ia visto, por vezes, o céu mais enevoado e mais escuro devido às cinzas e aos fumos libertados pelo vulcão.
Agora era-me dada a oportunidade única de observar aquele fenómeno telúrico, embora já na sua fase decrescente, mas do qual tinha um medo terrível. Levantei-me ocupando um lugar estratégico a bombordo, na amarra do convés. Muitos passageiros já ali estavam com os mesmos intuitos. Passado algum tempo foi possível observar, lá ao longe, uma pequena e trémula coluna de fogo que saía da terra em espiral e se ia enrolando pelo céu acima até se perder no horizonte e na escuridão que de momento para momento começava a clarificar-se.
Voltei à espreguiçadeira e pouco depois adormeci. Quando acordei já era dia claro. O navio, muito lentamente, rodava a ponta da doca do Faial.
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POEMA DA AMARGURA
Procura,
com ternura,
a cura
da amargura.
Descura,
com bravura,
a agrura
da doçura.
Costura,
com finura
a lisura
da ternura.
Perjura,
com candura,
a cissura
da fartura.
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CASA COM JANELA SOBRE O MAR
Tia Jerónima sentou-se à janela da sala, apoiando-se com o braço direito, debruçado sobre o peitoril. O Sol há muito que se havia perdido no horizonte mas reinava, ainda, uma claridade, serena, silenciosa e acolhedora. A janela, encravada na empena oeste do minúsculo casebre, abria-se e despejava-se sobre um pequeno e estreito atalho, feito de pedregulhos toscos, emaranhados entre cascalho, desenhado sobre uma rocha a arfar de silvados e vinhedos, ali mesmo em frente e encavalitada sobre o mar. Descaído sobre o oceano, que se estendia como um enorme tapete azulado e fofo, aquele alcantil que, para além de uns canaviais e uma ou outra figueira ressequida, apenas carregava sobre si a casa de Tia Jerónima, assemelhava-se a uma espécie de trincheira natural, contra a qual, sobretudo em dias de vendavais e tempestades, o mar se atirava em laivos de raiva e uivos de ganância. Parecia um doido!
Naquela noite, porém, o mar estava calmo e sereno. Abraçado à intimidade do anoitecer, apenas fazia sentir a sua presença através de uma ou outra pequena onda que, rolando lentamente, se vinha desfazer, num leve e suave murmúrio, junto ao negro areal que o separava do aclive. Uma irrequieta tranquilidade atraente! Um murmúrio de silêncio enternecedor!
Tia Jerónima permanecia, absorta e alheada, sentada à sua janela com vista sobre o mar, com a mão direita sobreposta ao olhar, como que a tapar-lhe as incandescências que o espectro do astro-rei, no seu ocaso, deixara desenhadas no horizonte em traços amarelos, alaranjados, vermelhos e violetas. Mais além, mas muito longe, um crepúsculo emaranhado crescia muito lentamente e parecia tornar-se madrugada, cobrindo uma enorme cidade, de casas altíssimas, comboios, mexins, vapores e soldados, atravessada por rios da cor da esperança.
Sentada à janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita sobre o olhar, a aclarar-lhe incandescências ofuscadas, tia Jerónima via as casas a erguerem-se ao céu, o burburinho das ruas atafulhadas de pessoas, o fumo que se elevava das fábricas, os comboios que passavam a correr, os rios a deslizarem com suavidade, os barcos a perderem-se no horizonte, os homens a arfarem cansaço e os soldados a partirem para a guerra. No ar surgiam pássaros de espuma e nos rios navegavam barcos de papel, cor de laranja, carregados de lágrimas e soluços. Depois a cidade adormecia, as casas fechavam as janelas, forravam-nas de madeira, vestiam-se de escuro e dos telhados saíam rolos de fumo, negro e estilizado. A cidade adormecida era como se fosse uma grande fábrica, uma espécie de fóssil industrial que homens, sonolentos e com bonés de veludo, enfiados até às orelhas, nas manhãs escuras e friorentas, procuravam com avidez, engolindo-o como se fosse um chocolate gigante. Depois transformava-se numa labareda de fumo aguerrida e devoradora e a cidade regressava à florescência do casario que, agora, sobressaía mais tenazmente, tornando o universo esverdeado e salpicado de manchas brancas. E os homens, transformados em pastores, agarravam, com uma ganância desusada, aquelas manchas, enchendo-as dentro de sacos, carregando-os às costas como se fossem rolos de lã ou de linho. E a tia Jerónima, sentada à janela da sua casa, também deslizava naquele universo como se fosse uma nuvem de papel, caminhava como se fosse a sombra de uma árvore desfolhada, voava como se fosse um pássaro perdido e sem rumo.
E lá, em frente à casa com janela sobre o mar, a noite crescia desalmadamente, tornava-se completamente escura, sem Lua e com as estrelas muito tímidas e hesitantes. Mas a tia Jerónima permanecia sentada à sua janela, com o braço esquerdo debruçado sobre o peitoril e com a mão direita a anafar o silêncio da noite, a açular-lhe sonolências perdidas, a acariciar os sabores do escuro, emaranhada em sonhos ora de encanto e alegria ora de dor e sofrimento. Depois, quebrando um silêncio torturador, tia Jerónima soluçava e estremecia, imaginando o suplicar dos braços agonizantes de alguém que desaparecera, com o Sol, lá no outro lado do Mundo.
E lá pela noite dentro, já quase madrugada, tia Jerónima acordou estrebuchada. Fechou a janela que ficava sobre mar e, na claridade tímida duma vela colocada à cabeceira da sua cama, rezou uma oração crente e purificadora, por alma do seu António que a Calafónia, fatalmente, nunca lhe devolvera.
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DESCANSO LABORIOSO
“Enquanto se descansa ajunta-se o cascalho.”
Interessante adágio que espelha em plenitude a árdua e cansativa vida de trabalho a que estava sujeito o povo da mais ocidental freguesia açoriana. Na verdade, na Fajã Grane, em tempos idos, o trabalho era tão intenso e as atividades agrícolas tão exigentes que mesmo quando se descansava era imperioso trabalhar, realizando, é verdade que atividades mais leves, mas necessárias à vida agrícola e que neste adágio estão personificadas no simples ato de juntar o cascalho existente nos terrenos agrícolas e que era imperioso retirar pois era prejudicial ao cultivo do milho, das batatas, das couves e de todas as outras culturas.
Embora a Fajã Grande possuísse bons terrenos agrícolas, em muitos deles havia muitos pedregulhos misturados com a terra. Sabe-se que desde o início do povoamento o povo foi limpando os terrenos que pretendia cultivar e colocando quer o cascalho quer as grandes pedras que ia retirando do solo num canto do terreno, formando assim os tradicionais maroiços que, nas Flores, ao contrário de outras ilhas, serviam para o cultivo de figueiras e de parreiras, cujos figos e uvas eram muito apreciados.
Meu pai tinha um serrado no Porto, onde semeava milho, batata-doce e couves. A sul deste serrado e já na fronteira com o lugar da Caravela, o serrado tinha um grande maroiço. Para além de belas parreiras existiam ali duas grandes figueiras, uma de figos pretos e outra de bacorinhos. Em altura da safra, quando lá ia, deliciava-me quer com as uvas quer com os figos. Mas como o meu maroiço do Porto, existiam muitos outros maroiços, sobretudo nas Furnas, no Areal, o Porto, no Mimoio e em muitos outros lugares da freguesia onde havia terras de cultivo, o que significava que muito cascalho havia sido junto e muito ainda haveria de se juntar. Assim este adágio tinha grande sentido pois, assim como se deviam aproveitar os momentos de descanso do trabalho agrícola para ir limpando o terreno e ajuntando o cascalho, atirando-o para cima do maroiço, devíamos aproveitar todo o tempo para realizar pequenas tarefas pois a ociosidade, ontem como hoje, é a mãe de todos os vícios.
Para a combater havia pois que se ajuntar cascalho e atirá-lo para cima dos maroiços.
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UMA BATATA MUITO GRANDE
Era uma vez um velhinho e uma velhinha que viviam numa casinha humilde e pobre, que tinha, ao lado, uma pequenina horta.
Numa bela manhã de março, o velhinho acordou muito bem disposto. Sentou-se na cama, esfregou os olhos, levantou-se, abriu a janela, apreciou um sol muito soalheiro e disse à velhinha:
- Está na altura de semearmos as nossas batatas e o tempo hoje está muito bom.
Então, o velhinho e a velhinha foram para a horta, cavaram a terra, arrancaram as mondas, abriram regos e semearam as batatas colocando-as, depois de as cortar ao meio, muito direitinhas no fundo dos regos. Depois cobriram-nas muito bem com terra, alisaram o chão e, muito cansadinhos, voltaram para casa para descansar.
Naquela noite choveu muito e o velhinho e a velhinha ficaram muito contentes pois sabiam que aquela chuva havia de ajudar as suas batatas a nascerem. Por isso adormeceram muito felizes, ouvindo a chuva a cair lá fora.
No dia seguinte veio um sol muito quentinho e acariciador. O velhinho e a velhinha ainda ficaram mais contentes pois sabiam que, depois da chuva da noite, aquele sol benfazejo havia de ajudar ainda mais as suas as batatas, não apenas a nascerem mas também a crescerem, a tornarem-se muito, muito grandes. Seguiram-se muitas outras noites de chuva e muitos outros dias de sol e as batatas nasceram, cresceram com uma rama muito verdinha e com muitas flores brancas, amarelas e roxas.
Numa bela manhã de julho, o velhinho sentou-se na cama, abriu a janela, viu um sol muito acolhedor e disse à velhinha
- Ó mulher, está na altura apanhar as nossas batatas.
A velhinha concordou mas disse-lhe que naquele dia não podia ir com ele para a horta pois tinha que tratar dos animais, por isso, o velhinho dirigiu-se sozinho para a horta.
Ao chegar lá ficou muito contente pois as batatas estavam prontas para serem apanhadas. Reparando melhor viu num canto da horta uma batata enorme, uma batata muito, muito grande. Era uma batata gigante. O velhinho decidiu então que havia de apanhar primeiro aquela batata e levá-la para casa para a velhinha fazer com ela uma bela sopa para a ceia.
O velhinho aproximou-se, agarrou-se à batata e puxou, puxou, puxou mas a batata era muito grande e, por isso nem se mexeu. Preocupado o velhinho coçou a cabeça e disse baixinho:
- Como é que eu vou arrancar esta batata? Sozinho não consigo. Tenho que ir chamar a velhinha para ela me ajudar.
O velhinho foi à procura da velhinha. A velhinha veio, agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Não conseguimos arrancar esta batata. – Disse a velhinha. – Olha vou chamar o porco para nos ajudar. Ele é muito forte. Com a sua ajuda vamos conseguir arrancar a batata
A velhinha foi à procura do porco. O porco veio, agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Não conseguimos arrancar esta batata. – Disse o porco. – Vou chamar a vaca para nos ajudar. Ela é muito forte puxa carros e corsões. Com a sua ajuda, de certeza que vamos conseguir arrancar a batata
O porco foi à procura da vaca. A vaca veio, agarrou-se ao porco, o porco agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Não conseguimos arrancar esta batata. – Disse a vaca. – Vou chamar o cavalo para nos ajudar. Ele é muito forte, transporta grandes cargas. Com a sua ajuda vamos conseguir arrancar a batata
A vaca foi à procura do cavalo. O cavalo veio, agarrou-se à vaca, a vaca agarrou-se ao porco, o porco agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Não conseguimos arrancar esta batata. – Disse o cavalo. – Vou chamar o cão para nos ajudar. Ele também é muito forte, faz grandes corridas e ajuda os mais fracos. Com a sua ajuda vamos conseguir arrancar a batata.
O cavalo foi à procura do cão. O cão veio, agarrou-se ao cavalo, o cavalo agarrou-se à vaca, a vaca agarrou-se ao porco, o porco agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Não conseguimos arrancar esta batata. – Disse o cão. – Vou chamar o gato para nos ajudar. Ele também é forte. Com a sua ajuda vamos conseguir arrancar a batata.
O cão foi à procura do gato. O gato veio, agarrou-se ao cão, o cão agarrou-se ao cavalo, o cavalo agarrou-se à vaca, a vaca agarrou-se ao porco, o porco agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Não conseguimos arrancar esta batata. – Disse o gato. – Vou chamar o rato para nos ajudar. Ele também é forte. Com a sua ajuda vamos conseguir arrancar a batata.
O gato foi à procura do rato. O rato veio, agarrou-se ao gato, o gato agarrou-se ao cão, o cão agarrou-se ao cavalo, o cavalo agarrou-se à vaca, a vaca agarrou-se ao porco, o porco agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Não conseguimos arrancar esta batata. – Disse o rato. – Eu conheço uma cadelinha chamada Kika, Vou chamar a Kika para nos ajudar. Ela também é forte. Com a sua ajuda vamos conseguir arrancar a batata.
O rato foi à procura da Kika. A Kika veio, agarrou-se ao rato, o rato agarrou-se ao gato, o gato agarrou-se ao cão, o cão agarrou-se ao cavalo, o cavalo agarrou-se à vaca, a vaca agarrou-se ao porco, o porco agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram. Mas a batata, nada. Nem se mexeu.
- Estamos perdidos! Nem com a ajuda de todos estes amigos conseguimos arrancar esta batata. – Disse o velhinho muito desanimado – Esta batata é tão grande, tão grande que nem com a ajuda destes animais todos a conseguimos arrancar.
- Ela é tão grande, tão grande… - Disseram os animais em coro.
Vamos conseguir, - disse a velhinha. - Eu conheço um menino chamado Gonçalo que mora ali, perto da nossa casinha. Ele é muito valente, muito bom e muito amigo de ajudar os outros. Vou chamar o Gonçalo para nos ajudar. Com a sua ajuda vamos com certeza conseguir arrancar a batata.
A velhinha foi chamar o Gonçalo. O Gonçalo, muito contente, veio a correr e agarrou-se à Kika, a Kika agarrou-se ao rato, o rato agarrou-se ao gato, o gato agarrou-se ao cão, o cão agarrou-se ao cavalo, o cavalo agarrou-se à vaca, a vaca agarrou-se ao porco, o porco agarrou-se à velhinha, a velhinha agarrou-se ao velhinho, o velhinho agarrou-se à batata e puxaram, puxaram, puxaram, puxaram tanto e com tanta força que arrancaram a batata que saiu da terra e todos caíram para trás. A Kika caiu por cima do Gonçalo, o rato caiu por cima da Kika, o gato caiu por cima do rato, o cão caiu por cima do gato, o cavalo caiu por cima do cão, a vaca caiu por cima do cavalo, o porco caiu por cima da vaca, a velhinha caiu por cima do porco, o velhinho caiu por cima da velhinha Todos caíram no chão e mas a batata muito grande veio para fora.
Naquela noite, a velhinha que era um boa cozinheira fez uma enorme panela de sopa com a bata e juntou muitas couves e muitas cebolas que apanhou na horta
Todos comeram até se fartarem e quem mais comeu foi o Gonçalo.
Inspirado no Conto O Nabo Gigante de Alexis Tolstoi
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TELEMOVELAR
Segundo Ferdinand Saussure as línguas são organismos vivos pois nascem, crescem, vivem e morrem. Essa a razão pela qual na verdade hoje existem línguas mortas e essa, também, a razão pela qual a nossa língua se tem enriquecido ultimamente com o aparecimento de novas palavras sobretudo relacionadas com as novas tecnologias e a sua galopante ascensão.
Quando surgiu o telefone depressa nasceu a palavra telefonar. Com a chegada do telemóvel, no entanto, não surgiu um novo verbo relacionado com o seu uso porquanto o pequeno retângulo se destinava apenas a falar à distância de uma forma mais prática e sobretudo mais à mão do que o já velhinho telefone fixo.
Depressa, porém, o telemóvel adquiriu muitas outras funções tornando-se um companheiro muito útil e quase inseparável de cada um de nós. Apegamo-nos a ele muito mais do que os nossos avoengos se agarravam ao telefone. Pode mesmo dizer-se que o recurso ao telemóvel se tornou um verdadeiro vício, exagerando-se o seu uso, pelo que já foi proibida a sua utilização durante a condução e na descolagem e aterragem dos aviões. Mas como se pode verificar, quer num caso, quer noutro, as transgressões são muito frequentes e se não consta que algum avião tenha tido problemas ao aterrar ou a levantar, até porque neste caso a fiscalização por parte do pessoal de bordo dos aviões geralmente é eficiente, o mesmo se não pode dizer no que ao uso do telemóvel ao volante, onde as consequências são bastante trágicas.
É deste premente uso do telemóvel devido às suas variadíssimas funções parece estar a nascer uma nova palavra telemóvelar.
Há dias ao entrar numa casa de banho do aeroporto Francisco Sá Carneiro, enquanto aguardava o avião com destino aos Açores, dei de caras com um jovem a utilizar um urinol. Mas o jovem não se limitava apenas a urinar. Com uma mão na pila e outra no telemóvel, enquanto urinava dedilhava com destreza as teclas do telemóvel, isto é telemovelava.
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BALEIA BALEIA
Era por alturas dos fins de maio ou princípio de junho que chegava à Fajã uma leva de baleeiros. Alguns vinham do Pico, sobretudo os mestres dos botes, outros vinham das Lajes e um ou outro de Santa Cruz. Mas a maioria dos homens necessários para completar as companhas era recrutada na própria freguesia. Depois vinham das Lajes os dois botes devidamente apetrechados e o gasolina, a Santa Teresinha. Os botes eram varados no porto Velho e guardados ao relento, no cimo do varadouro, enquanto a Santa Teresinha permanecia ancorada no Boqueirão, do lado da Barra, de onde era retirada para terra apenas em dias de tempestade e de mar brabo.
O Vigia era o António Machado que durante muitos anos fora auxiliar do Mestre Manuel Manquinho, com residência fixa na Fajã, mas vindo também do Pico. Os oficiais e um ou outro marinheiro, fazendo-se acompanhar das mulheres e dos filhos, arrendavam uma casa e permaneciam na freguesia durante todo o verão até a safra terminar. Geralmente voltavam no ano seguinte. Os solteiros ou os que não traziam família hospedavam-se numa ou outra casa que para tal tinha disponibilidade. A estes juntavam-se os marinheiros da freguesia, entre eles os dois trancadores, o Urbano e o Francisco Inácio. Eram considerados dos melhores que havia na ilha das Flores. O sinal de partida era dado pelas vigias do Pico da Vigia, de binóculos em riste de manhã à noite. Logo um alvoroço percorria a freguesia de lés-a-lés. E lá iam os botes cheios de homens comandados por um oficial, umas vezes a remos, outras à vela ou rebocados pela Santa Teresinha. Alguns baleiros diziam que preferiam levar o bote à vela porque conseguiam fugir mais depressa quando a coisa dava para o torto. Outros, quando chegavam a terra, contavam façanhas extraordinárias. Um dia houve um bote que revirou e contava-se que os baleeiros haviam caído todos ao mar. Uma outra vez a baleia com o rabo atirou para cima do bote tanta água que esta deu um enorme salseiro que embateu na vela e o bote ficou de quilha para o ar. Para o endireitar foi o cabo dos trabalhos. Muitas vezes fora preciso cortar a corda do arpão, caso contrário teriam sido tudo arrastado o fundo do mar. Homens e bote.
Depois de rebentar o foguete lá iam eles. Saíam a Barra e sobre os rochedos negros que ladeavam o Porto Velho ficavam as crianças a sonhar que um dia seria o seu e as mulheres recomendando cuidados com a sacola da comida onde levavam peixe, torresmos, tortas, pão de milho, bolo e café ou vinho, murmurando orações e pedindo a Deus que nada de mal acontecesse aos seus homens.
A Fajã Grande possuía dois botes baleeiros e um gasolina, a Santa Teresinha. A época de caça à baleia, que alterava substancialmente a vida e os costumes da freguesia, começava em maio ou junho e prolongava-se até Setembro ou Outubro.
Há quem afirme que a ilha das Flores foi pioneira na caça à baleia nos Açores. Na verdade e de acordo com o investigador florentino Francisco Gomes, no seu livro Ilha das Flores: da Redescoberta à Atualidade, a primeira armação costeira dos Açores de que se tem notícia foi fundada na ilha das Flores, por volta de 1856/1857. Eram dois botes encomendados nos Estados Unidos por José Constantino da Silveira e Almeida, que capturaram em 1860 a primeira baleia em mar da ilha das Flores. O cetáceo rendeu, segundo aquele investigador, 80 barris de azeite, o equivalente a 2.500/3.000 alqueires de milho, vendidos com entusiasmo na ilha do Faial. Segundo o referido historiador só depois a arte foi-se alargando a outras ilhas, em especial ao Pico e Faial, cujo apogeu da baleação se deu no final dos anos trita do século XX e se manteve até 1986, quando a Comissão Baleeira Internacional proibiu a baleação comercial, baseada na Convenção Internacional para a Regulação da Atividade Baleeira.
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SEMPRE PICO
Embora seja lugar-comum é imperioso recordar e repetir que o Pico é a segunda maior ilha do Arquipélago dos Açores. Vizinha do Faial e muito próxima de São Jorge, o Pico tem uma superfície de 447 km², tendo o perímetro da sua orla costeira 151,84 km e, curiosamente é ladeada por 31 ilhéus, embora alguns deles sejam minúsculos outros gigantescos como o Deitado e o Em Pé, em frente a vila da Madalena. Mede 42 km de comprimento por 20 km de largura e a sua população é de cerca de 14,500 habitantes distribuídos por três concelhos e 7 freguesias.
Faz jus ao nome devido à sua majestosa montanha vulcânica, que culmina num pico pronunciado, o Pico Pequeno ou Piquinho. Trata-se da mais alta montanha de Portugal e a terceira maior montanha que emerge do Atlântico, atingindo 2 351 metros acima do nível do mar.
Administrativamente, a ilha é constituída por três concelhos: Lajes do Pico e Madalena, ambos com seis freguesias, e São Roque do Pico, com cinco freguesias. Pertencem ao concelho da Madalena as freguesias de Madalena, Bandeiras, Criação Velha, Candelária, São Mateus e São Caetano. Por sua vez o concelho das Lajes, a povoação e a vila mais antiga da ilha, é constituído pelas freguesias de Lajes, São João, Ribeiras, Calheta, Piedade e Ribeirinha, Finalmente as freguesias de São Roque, Santa Luzia, Santo António, Prainha do Norte e Santo Amaro constituem o concelho de São Roque. Religiosamente o Pico que forma uma única Ouvidoria possui dezanove paróquias, uma vez que o lugar da Silveira, pertencente às Lajes é paróquia, sendo a freguesia das Ribeiras constituída por duas paróquias: Santa Bárbara e Santa Cruz das Ribeiras.
Atualmente o Pico dispõe, entre as freguesias de Santa Luzia e Bandeiras, de um moderno aeroporto regional com ligações aéreas diretas com Lisboa, Terceira e Ponta Delgada. Possui um porto Comercial em São Roque e um de passageiros na Madalena, tendo ligações marítimas diárias com a cidade da Horta e as vilas das Velas. Durante os meses de verão.
Há quem considere o Pico a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ele lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atração. É mais do que uma ilha, segundo Raul Brandão é uma estátua erguida até ao céu e amolgada pelo fogo - é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.
Em termos de património cultural destacam-se, na Madalena, o Museu do Vinho, instalado em um antigo Convento das Carmelitas, o Museu da Indústria Baleeira, em São Roque do Pico, e o Museu Regional dos Baleeiros, nas Lajes do Pico. Destacam-se ainda o Forte de Santa Catarina, nas Lajes, assim como as igrejas, os conventos e os moinhos espalhados pela ilha. São tradicionais na ilha a festa e procissão do Senhor Bom Jesus, em São Mateus, as comemorações da Semana dos Baleeiros e a festa Nossa Senhora de Lurdes, nas Lajes, o Cais Agosto e a festa de São Roque, as festas de Santa Maria Madalena, a Semana das Vindimas, e as Festas do Espírito Santo.
A população dedica-se principalmente à agricultura, à pesca e à pecuária, esta última muito desenvolvida, em especial no concelho de São Roque do Pico. A vinha, outrora uma das grandes riquezas da ilha, sendo o vinho do Pico exportado para a Inglaterra e para a América do Norte, e que chegou a ser servido à mesa do próprio czar do Império Russo, foi gradualmente afetada pela praga do oídio na segunda metade do século XIX, perdendo importância. No entanto, a cultura da vinha ainda domina a parte ocidental da ilha, sendo a vinha Verdelho do Pico cultivada em pequenas quadrículas de terreno separados por muros de pedra solta de basalto, chamados localmente de currais. A sua extensão é tal que dariam cerca de duas voltas ao equador terrestre e a sua importância é tão grande que contribuíram para a classificação vinha do Pico como património da humanidade.
As indústrias da ilha estão, na sua quase totalidade, ligadas ao ramo alimentar: lacticínios, pesca, com a maior fábrica de conservas de atum do arquipélago dos açores, destilarias e moagens. No artesanato destaca-se a escultura em basalto e em osso de baleia, bem como rendas e bordados.
Notável e muito rica e variada é a gastronomia da ilha, nomeadamente no que toca aos produtos do mar. Os crustáceos como a lagosta, o cavaco e o caranguejo, os moluscos, como as lapas e as cracas, as lulas e os polvos servem de base a pratos variados e ricos. Entre os peixes destacam-se espécies como a abrótea, o chicharro, a moreia, a salema, o cherne, a garoupa, o espadarte e a veja que depois de escalada e seca se é designada como o bacalhau açoriano. Entre os vários pratos destaca-se o tradicional caldo de peixe. Por sua vez as carnes de bovino e suíno encontram-se presentes em pratos da culinária regional como molha de carne à moda do Pico, torresmos, linguiças e morcelas. Com a carne de vaca são feitas as celebérrimas sopas do Espírito Santo. Em termos de laticínios destacam-se os queijos de São João e do Arrife, ambos produzidos a partir do leite de vaca. São consumidos com vinho verdelho, vinho de cheiro ou outros produzidos localmente e pão de massa sovada. Em termos de doces destacam-se os pratos de arroz doce, massa sovada e rosquilhas. Em termos de digestivos destacam-se o bagaço do Pico, a aguardente de figo ou um dos vários licores a partir de amora, nêspera ou de uma angelica.
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DANIEL DE SÁ
O escritor Daniel de Sá nasceu na freguesia da Maia, ilha de S. Miguel, em 2 de Março de 1944. Viveu em Santa Maria de 1946 a 1959 onde fez o Curso Geral dos Liceus. Mais tarde concluiu o Curso do Magistério Primário na Escola do Magistério Primário de Ponta Delgada. Lecionou nos Fenais da Ajuda, cumprindo a seguir o serviço militar nas Caldas da Rainha, Tavira e Arrifes. Depois de um ano como professor na escola do ensino básico da Maia, partiu para Espanha, onde fez o noviciado em Moncada, Valência, onde estudou Filosofia. Frequentou Teologia no Seminário Diocesano de Valência e na Faculdade de Teologia de Granada. Em finais de 1973 regressou a S. Miguel, passando pela escola do ensino básico de S. Brás. A partir do ano letivo de 1974/75 lecionou, até à aposentação, na escola da Maia.
Exerceu vários cargos públicos. Entre outros, foi Secretário Regional da Comunicação Social e Desporto, na Junta Regional dos Açores, foi deputado nas primeiras duas legislaturas da Assembleia Regional e vereador da Câmara Municipal da Ribeira Grande; e membro da Assembleia Municipal deste concelho.
Foi um dos escritores açorianos que com mais frequência escolheram cenários não açorianos para situar geográfica e socialmente as suas obras, se bem que raramente viajasse para fora do arquipélago. Além disso, normalmente adaptou a sua escrita aos tempos históricos e à cultura das personagens. A sua escrita, reveladora de vasta erudição, foi muitas vezes ilustrada com histórias reais perspicazmente captadas na ilha, sobretudo na sua Maia.
Ganhou o prémio Nunes da Rosa, da Secretaria Regional de Educação e Cultura, com a novela Um Deus à Beira da Loucura, e foi por duas vezes vencedor do prémio Gaspar Frutuoso, de Literatura, da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Primeiro com Crónica do Despovoamento das Ilhas e depois com A Terra Permitida.
O seu livro Ilha Grande Fechada, juntamente com outros de autores também açorianos, fez parte de uma tese de doutoramento sobre Literatura Açoriana e Emigração, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, de Porto Alegre. O mesmo romance serviu de tema para duas teses de mestrado naquela Universidade, merecendo, em ambos os casos, um elogio do próprio júri. Foi o criador dos Encontros de Escritores Açorianos, tendo organizado os primeiros três, que se realizaram na Maia. É colaborador da imprensa, sobretudo açoriana, desde 1964. Colaborou em blogues publicando versos humorísticos com muita verve. Por vezes as suas colaborações surgem sob a forma de imitação intencional dos estilos de grandes escritores.
Obras principais: Génese. Angra do Heroísmo, Sobre a Verdade das Coisas, O Espólio, A Longa Espera, Bartolomeu, Um Deus à Beira da Loucura, Ilha Grande Fechada, A Criação do Tempo, do Bem e do Ma, Crónica do Despovoamento das Ilhas, E Deus Teve Medo de Ser Homem, As Duas Cruzes do Império, A Terra Permitida, O Pastor das Casas Mortas, Ver Açor, Santa Maria, a Ilha-Mãe e Ver Açor.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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O JOAQUINISMO E O CULTO AO DIVINO ESPIRITO SANTO NOS AÇORES
Numa das minhas aulas de História da Filosofia, no Seminário de Angra, o meu douto professor referiu-se ao abade Joaquim de Fiore, nascido em 1132 e falecido em 1209, definindo-o como um notável filósofo místico, defensor do milenarismo e do advento da idade do Espírito Santo. O seu pensamento deu origem entre outros movimentos filosóficos, ao chamado joaquinismo, pelo que ganhou fama de filósofo e sábio.
De seguida resumiu sucintamente o seu pensamento filosófico. Segundo ele, o tema das mais importantes obras de Joquim de Fiore é o da interpretação da visão profética das Sagradas Escrituras no contexto da História e a previsão do futuro da Igreja enquanto comunidade mística. Segundo ele existiriam três Estádios, ou Idades da História, no desenvolvimento do Mundo e da Igreja de Deus, correspondentes às três Pessoas da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito santo
A Primeira Idade correspondeu ao governo de Deus Pai e é representada pelo poder absoluto, inspirador do temor sagrado que perpassa o Velho Testamento. Correspondeu ao tempo anterior à revelação de Jesus Cristo.
A Segunda Idade inicia-se com a revelação do Novo Testamento e com fundação da Igreja de Cristo, em que, através de Deus Filho, a sabedoria divina que tinha permanecido escondida da humanidade se revela em Epifania. Correspondeu à contemporaneidade do autor
Finalmente a Terceira Idade, que há-de vir, corresponde ao domínio da Terceira Pessoa ou seja do Espírito Santo Paráclito. Será o advento do Império do Divino Espírito Santo, um tempo novo, onde serão alcançados o amor universal e a igualdade entre todos os membros do Corpo Místico de Deus, isto é entre os cristãos. No Império do Divino Espírito Santo, as leis evangélicas serão finalmente concretizadas, não só na sua letra mas no seu espírito, isto é, na mensagem que nelas está escondida e que, segundo Joaquim de Fiore será finalmente compreendida e aceite pela humanidade. Nesta Terceira Idade, a idade da graça redentora, não haverá necessidade de leis ou instituições disciplinadoras da fé, já que esta será universal e baseada directamente na inspiração divina, pelo que poderão ser dispensadas as estruturas institucionais do poder temporal da Igreja e a sabedoria divina a todos iluminará igualmente, ou seja todos beneficiarão de uma inteligência espiritual capaz de permitir a plena compreensão dos divinos mistérios. Assim todos podem ser doutos e imperadores.
Joaquim de Fiore acreditava que a Segunda Idade estava no seu fim e que o advento do Império do Espírito Santo estava próximo. O fim da Segunda Idade, a ser marcado por um cataclismo, era já prenunciado pela desordem então patente no mundo. Após essa transição dolorosa, a unidade cristã seria alcançada com a união entre as igrejas cristãs do ocidente e oriente e o fim dos cismas e os judeus veriam a verdade do Novo Testamento. O Império do Divino Espírito Santo seria pois a apoteose da História, durando até ao fim dos tempos, apenas terminado com a glória da segunda vinda do Redentor.
Perante isto, pode concluir-se que apesar do povoamento dos Açores só se ter iniciado a partir de 1432, quase 200 anos após o apogeu do joaquimismo, e do núcleo central da sua doutrina já ter sido condenado em 1256 pelo papa Alexandre IV, houve no arquipélago açoriano um claro reacender daquelas doutrinas, inspirando manifestações religiosas e ações rituais e simbólicas que perduram até aos nossos dias.
Por influência destas doutrinas trazidas pelos frades, nomeadamente pelos franciscanos, o culto do Divino Espírito Santo, então em apagamento na Europa devido à crescente pressão da ortodoxia religiosa, foi trazido para as ilhas. Aqui, as comunidades isoladas e sujeitas às pressões, medos, catástrofes e incertezas recorriam à proteção divina, adotando crenças e ritos ao Divino Espírito Santo que assim ganharam raízes e recuperaram vigor, adquirindo um claro cunho joaquinista que ainda hoje está bem patente nas festas que por estes dias se fazem em todas as ilhas.
Os Açores, e as comunidades de origem açoriana, constituem assim os últimos redutos onde as doutrinas de Joaquim de Fiore sobrevivem, e, a julgar pelo empenho que o povo, incluindo os mais jovens, continua a dedicar a estas celebrações e pelo recrudescer das Irmandades do Divino Espírito Santo, mantêm e manterão para sempre todo o seu vigor.
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FESTAS DO ESPÍRITO SANTO
Nos Açores, em todas as ilhas, as festas em honra e louvor do Divino Espírito Santo dominam esta altura do ano, atingindo o seu epicentro no domingo de Pentecostes, estendendo-se, no entanto, não apenas nos dias que o antecedem, mas também nos primeiros dias da semana seguinte, repetindo-se ou prolongando-se, em muitas freguesias, até ao domingo da Trindade. Estas festas, para além da parte litúrgica, onde sobressaem as celebrações da eucaristia e a organização de procissões e cortejos, constam geralmente da distribuição e da partilha da carne e do pão, entre todos e, de modo muito especial, junto dos mais pobres.
Na ilha do Pico este sentido de partilha tem um significado ainda mais abrangente e a ela, muito provavelmente, estão ligados rituais e costumes ancestrais, geralmente relacionados com promessas feitas pelos nossos antepassados em momentos de enorme angústia e aflição, em virtude de crises sísmicas devastadoras ou outras catástrofes dramáticas, durante as quais o povo solicitava o auxílio divino para acalmar as correntes de lava ou os ventos ciclónicos que assolavam e arrasavam a ilha, destruindo habitações, povoados e culturas, por vezes, pondo em causa a sobrevivência das populações.
Na realidade, os festejos em honra e louvor do Divino Espírito Santo constituem, na ilha montanha, uma genuína e fortemente enraizada tradição, muito provavelmente trazida pelos primeiros povoadores mas implementada com um cunho religioso e cultural muito forte entre a actual população de toda a ilha, incluindo os mais jovens, mantendo-se, ainda hoje, com rituais e celebrações muito semelhantes às dos tempos antigos, com destaque para um inusitado e interessante cerimonial em que os "imperadores" levam, em procissão, a coroa, até à igreja, com a qual, após a celebração da Eucaristia, são “coroados”. Realce também para a "função", evento peculiar, genuíno e agregador, que consiste, fundamentalmente, na participação colectiva num almoço em que praticamente se integra toda a população da freguesia, para além de muitos convidados, sentando-se à mesma mesa, saboreando as típicas e tradicionais sopas do Senhor Espírito Santo.
Mas o que mais revela este sentido de partilha mútua e de comunhão recíproca das festas do Espírito Santo, no Pico, é o facto de em todas as freguesias e até em alguns lugares de uma mesma freguesia, se distribuir por todos os habitantes e também pelos forasteiros massa sovada, numas localidades sob a forma de pão, noutras de rosquilhas e noutras de vésperas. Esta distribuição obedece a um calendário rígido, histórico e imutável, permitindo assim que a mesma pessoa possa receber o pão doce, não só em dias diferentes mas até, no mesmo dia, em várias freguesias e localidades da ilha. São milhares e milhares as rosquilhas, os pães e as vésperas cozidos, por estes dias, com o primordial objectivo de, simplesmente, os oferecer em louvor do Divino Espírito Santo, facto, aparentemente, tão transcendente que quase imperceptível por quantos visitam, pela primeira vez, a ilha nestes dias.
É o seguinte o calendário de distribuição do pão, oferecido pelos irmãos e levado em cortejo até à igreja para ser benzido, em louvor do Divino Espírito Santo, sendo que, freguesias há que partilham as suas ofertas em mais de um dia:
Sábado véspera de Pentecostes – Silveira.
Domingo de Pentecostes – Bandeiras, Candelária, S. Mateus, Companhia de Baixo (São João), Ribeira do Meio (Lajes), Santa Bárbara (Ribeiras), Calheta do Nesquim, Ribeirinha, Piedade, São Roque, Santo António e Santa Luzia.
Segunda-feira – Valverde (Madalena). Monte (Candelária), Santa Cruz (Ribeiras), Calheta do Nesquim, Ribeirinha, Piedade, Santo Amaro, Prainha do Norte e Cais do Pico (S. Roque).
Terça-feira – Madalena, São Caetano, (Companhia de Cima (São João) e Santa Cruz (Ribeiras).
Esta distribuição tem lugar junto aos "impérios", pequenas e singelas construções tendo no vértice do telhado a pomba branca do Espírito Santo e no frontispício a coroa e a data da construção e que ao longo dos séculos, foram sendo construídas em todas as freguesias e localidades mais importantes da ilha, constituindo um elemento interessante da arquitectura popular açoriana. Actualmente, ao lado de muitos destes pequenos templos construíram-se amplos salões que permitem uma maior funcionalidade a estes tradicionais e únicos festejos.
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DIA DE MATAR O GADO
A festa do Espírito Santo da Casa de Cima começava na sexta-feira antes do domingo de Pentecostes e era designada pelo Dia de Matar o Gado. Num dos domingos anteriores os cabeças haviam percorrido as casas da freguesia, a fim de arrolarem quem desejava comprar carne para o dia da festa do Senhor Espírito Santo. Igual procedimento havia de acontecer por altura das festas de S. Pedro e da Casa de Baixo.
Os cabeças primeiro arrolavam os mordomos. Cada qual declarava a quantidade de carne que pretendia para o dia da festa. Num desses domingos, ou se necessário em dois, de tarde, os cabeças, em cortejo, com os foliões e os símbolos do Divino Espírito Santo, percorriam as ruas da freguesia, a fim de saber a quantidade de carne que pretendiam, pois cada um é que pagava a sua. Além disso registavam os nomes dos mordomos que davam pão de trigo, uma vez que o pão era oferecido pelos mordomos que tinham mais posses e destinava-se como esmola para os pobres. Na verdade, este e o excedente de carne eram distribuídos pelos pobres da freguesia. Uma vez que todos compravam carne, indagavam e registavam apenas a quantidade que cada um desejava, escrevendo os nomes numa folha de papel, na qual registavam a quantidade de carne pretendida. Os que não eram mordomos ou os que o eram, mas da Casa de Baixo ou do Império de São Pedro, se desejassem, também podiam ser arrolados, indicando a carne desejada. Depois de calcular a carne necessária para a festa, quantidade que não variava muito de ano para ano, escolhia-se o gado para abater. Geralmente duas rezes bastavam.
Assim, na sexta-feira de tarde, o gado era trazido para junto da casa e amarrado junto ao pau da bandeira. Pouco depois organizava-se o cortejo para o Matadouro que ficava no Porto, num pequeno rolo que existia junto à Baía d’Água e onde, paredes meias com o caminho antigo, havia um pequeno nicho, construído para o efeito, onde era colocada a coroa. Ao lado as bandeiras, o testo e o tambor. O cortejo descia a rua Direita e a Via d’Água, até ao Matadouro. À frente a bandeira branca geralmente levada por uma criança, filho ou familiar de um dos cabeças. Depois os animais, devidamente amarrados, presos por uma corda e enfeitados com grinaldas de flores na cabeça. Seguiam-se a coroa e as bandeiras vermelhas transportadas por familiares dos cabeças. Atrás os foliões, muitas pessoas, algumas munidas do material necessário para a matança e de paus e recipientes para trazer a carne e as vísceras, no regresso, já com os animais abatidos. Os sinos repicavam e os foguetes estralejavam tanto na ida com na vinda. Os foliões acompanhavam com os seus cânticos, com destaque para o Lavrador da Arada e a Minha Vaca Lavrada. Uma vez mortos, esfolados e limpos, os animais eram partidos em quatro bons pedaços e transportados, de palanca, aos ombros, em cortejo até à casa, sempre acompanhados pelo cantar dos foliões, pelo repicar dos sinos e por muito povo, sobretudo crianças. As mulheres e familiares dos cabeças traziam as vísceras e o sangue em alguidares transportados à cabeça. As primeiras para limpar, guisar e fazer caçoila, O sangue para fazer o sarapatel. Ao chegar à Casa a carne era presa em fortes ganchos de ferro e, mais tarde, colocada no chão, mas em cima de uma boa camada de folhas de cana roca muito fresca e verde, à espera de ser cortada durante a noite. Esta parte da casa onde ficava a carne havia sido dividida com bancos, para que à noite se pudesse fazer a Alvorada e no fim desta, os jogos, mas num espaço bem mais reduzido do que nos dias anteriores. À da meia-noite, os cabeças, acompanhados por um grupo de homens experientes, começavam a desmanchar a carne e a parti-la, formando os quinhões de cada mordomo, de acordo com o que combinara, quando a coroa andara pelas casas a arrolar os mordomos.
De manhã, depois da missa, o pároco vinha benzer a carne.
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NAS CASAS DO ESPÍRITO SANTO
A Cabra-Cega era um dos jogos mais praticados pelas crianças, na Fajã Grande por alturas das Festas do Senhor Espírito Santo, sobretudo nas noites de Alvorada no sábado depois de distribuir a carne e no domingo durante a tarde. Quer a Casa de Baixo, quer a de Cima enchiam-se de gente nesses dias. As crianças não se acomodavam e entre outros jogos nunca faltava a Cabra Cega.
Para o realizar a criançada interessada em participar formava círculo, no meio da casa, dando as mãos umas às outras. Antes, porém, haviam escolhido uma delas para fazer de cabra-cega a qual era encurralada no meio da roda, depois de lhe serem tapados os olhos com um lenço ou outro pano qualquer, havendo alguém que certificasse que ela nada conseguia ver.
Depois obrigavam-na a dar três ou quatro voltas sobre si mesma, a cabra-cega dirigia-se para junto de um elemento da roda, enquanto os outros jogadores andavam à volta da cabra-cega tocam-lhe levemente, com as mãos para a desorientar e chamavam por ela dizendo cabra-cega, cabra-cega, cabra-cega, a fim de a baralhar e confundir ainda mais.
Ela, sempre de cara tapada tentava agarrar um dos jogadores. Depois de o conseguir a roda parava de andar e a cabra-cega tinha que identificar o jogador que agarra, o qual nunca falava para não ser reconhecido pela voz. Era com as mãos, apalpando o cabelo, o rosto, os olhos, os braços, as roupas que a cabra-cega o tentava identificar. Só quando a cabra-cega conseguia adivinhar quem era o jogador que agarrara, esse jogador era vendado e passava a ser a nova cabra-cega. Se não conseguisse identificar o participante que agarrara, a cabra-cega tinha que tentar apanhar outro e, da mesma forma, identifica-lo. O objetivo principal do jogo era o de que a cabra-cega reconhecesse um participante pelo tato, e que não permanecesse muito tempo com os olhos vendados.
o nome do jogador que apanhou.
Por alturas das festas, muitas outras brincadeiras se faziam nas Casas do Espírito Santo, em que participavam não apenas as crianças mas até os adultos.
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SARAPICO
Sarapico, pico, pico
Quem te deu tamanho bico?
Foi a velha Chocalheira
Come ovos e manteiga.
Os Cavalos a correr
E meninas a aprender.
Qual será a mais bonita
Que se vai esconder
Arás do burro da Inês
Cada uma por sua vez.
Sarapico, pico, pico
Quem te deu tamanho bico?
Foi o filho da rainha
Que tá preso na cozinha
Salta a pulga p’ra balança
Pesa o rei que vai à França
Os cavalos a correr
E as meninas a aprender.
Qual será a mais bonita
Que se vai esconder,
Atrás do burro da Inês,
Cada uma por sua vez.
Cantilena Popular (Fajã Grande).
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ALVORADA SANTA
A semana que antecedia o Domingo de Pentecostes era a semana das Alvoradas na Casa de Cima, o mais antigo império do Espírito Santo da Fajã Grande pese embora a Casa da Cuada tenha sido a primeira a ser construída. As Alvoradas começavam na terça e tinham lugar em dias alternados, ou seja, terça, quinta e sábado, pese embora nos restantes dias a Casa se abrisse e muitas pessoas, sobretudo jovens, para ali se deslocasse para jogos e brincadeiras.
As Alvoradas começavam fora da porta. Apenas a meio da cantoria os foliões entravam na casa e iniciavam a folia junto do altar onde estava a corroa. No fim eram cantadas as Ave Marias e os Oferecimentos. Até ao domingo, seguinte os foliões acompanhavam sempre a coroa, incluindo o levar as sortes, os cortejos para matar o gado e para a igreja e a distribuição da carne, durante a qual percorriam todas as ruas da freguesia, visitando as várias casas. Hoje sabe-se que esta devoção ao Espírito Santos, a distribuição de carne e pão e as próprias cantorias dos foliões assim como muitos outros costumes remontam às celebrações religiosas realizadas em Portugal a partir do século XIV, nas quais a terceira pessoa da Santíssima Trindade era festejada com banquetes coletivos designados de Bodo aos Pobres com distribuição de comida e esmolas.
Na verdade, a devoção à Terceira Pessoa da Trindade teve origem na promessa da rainha, D. Isabel de Aragão, por volta de 1320. A Rainha teria prometido ao Divino Espírito Santo peregrinar o mundo com uma cópia da coroa e uma pomba no alto da coroa, que é o símbolo do Divino Espírito Santo, arrecadando donativos em benefício da população pobre, caso o marido, el-rei D. Dinis, fizesse as pazes com seu filho legítimo, D. Afonso, herdeiro do trono. D. Isabel não se conformava com o confronto entre pai e filho legítimo em vista da herança pelo trono, pois era desejo do rei que a coroa portuguesa passasse, após sua morte, para seu filho bastardo, Afonso Sanches. A rainha Santa Isabel passou a suplicar ao Divino Espírito Santo pela paz entre o marido e o filho, evitando, assim, um conflito iminente.
A devoção ao Espírito Santo chegou às Flores, assim como a todas as ilhas, mas com matizes diferentes de umas para outras. Uma delas são as Alvoradas, ou seja os cantares de louvor, as folias e os agradecimentos dedicados ao Espírito Santo, exclusivas das Flores e Corvo. Na Fajã Grande existiam vários grupos de foliões que por altura das festas em louvor ao Espírito Santo levavam a cabo interpretações de canções/cantorias, algumas com séculos de existência e que tinham diferentes ritmos e letras consoante o momento da festa, como era o caso das Alvoradas. Na verdade o Espirito Santo, e suas festas são para todos açorianos um ponto de referência na sua crença e devoção.
Com séculos de história e muitas adaptações, por vezes novas criações, todas as freguesias da Região Açoriana, tem um ou mesmo mais "Impérios" ou "Casa do Espirito Santo" onde são celebradas/festejadas as festas ao Divino. A Fajã Grande tinha quatro casas e seis impérios, contando com os dois de São Pedro.
De ilha para ilha, no entanto, os usos e costumes variam, mas têm sempre em comum, pelo menos a coroa o símbolo máximo do Espirito Santo e as bandeiras. Também comum era o facto de na base desta devoção estava a partilha, o dar o que se tinha em abundância, aqueles que mais precisavam. Mas também eram comuns a todas as ilhas o convívio, a alegria, a folia. Na Fajã Grande imperava a Alvorada Santa.
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GAFE IMPERDOÁVEL
A ilha do Corvo, apesar de, em tamanho, ser a menor do arquipélago açoriano, é incontestavelmente uma das mais belas. De origem vulcânica, como as restantes, é famosa pela sua originalidade e pureza natural, sendo também notável pela simples e humilde idiossincrasia dos seus habitantes Além disso e para os amantes da natureza e de paisagens naturais, de mar, de pássaros e pastagens a ilha do Corvo é um recanto ubérrimo, um paraíso inconcebível.
Com um clima favorável e de baixa amplitude térmica, é mais procurada no verão, altura em que as ligações aéreas e marítimas estão mais facilitadas. Mas apesar de por veres rigoroso e intempestivo o inverno oferece um clima mais agradável do que o do continente. E favorece a prática de desporto de aventura e natureza, assim como pesca, observação de pássaros e turismo.
A ilha é composta por um único povoado, a Vila Nova do Corvo e juntamente com as Flores constitui o grupo ocidental dos Açores.
Ora foi precisamente este paraíso idílico que a TVI e a Plural escolheram para algumas filmagens da telenovela a Única Mulher. Assim uma equipa de filmagens, juntamente com alguns protagonistas da Única Mulher, entre os quais Lourenço Ortigão e Sara Prata deslocaram-se à ilha do Corvo, onde gravaram algumas imagens que, recentemente foram apresentadas em alguns dos primeiros episódios da terceira temporada daquela telenovela.
Dado o facto de a mesma passar na TVI em horário nobre e de ter uma das maiores audiências de sempre de todas as novelas das televisões portuguesas, a apresentação de belíssimas imagens da mais pequena e mais isolada ilha açoriana, constitui um êxito extraordinária. Uma divulgação notável da ilha do Corvo.
Além disso, os benefícios para a ilha e até para os Açores são importantíssimos e, quer as equipas de filmagens quer os atores estão encantados com a mais pequenina ilha açoriana, com a sua beleza natural, a sua pureza, a generosidade e a simpatia das suas gentes. Os próprios atores que estiveram a gravar algumas cenas da telenovela partilharam nas redes sociais várias fotos da sua estadia naquela ilha. Por sua vez, os habitantes do Corvo também ficaram felizes com esta visita e muitos quiseram tirar fotos com os atores para mais tarde recordar.
Mas um facto estranho aconteceu! Uma gafe imperdoável!
Ao apresentar a telenovela, num dos diálogos do episódio de ontem, dia seis de maio, um personagem, a determinada altura, dirigindo-se à filha, profere a seguinte frase:
- "Queres que o pai descubra a verdade e vá a correr para Portugal?"
Imperdoável! Como dizia alguém: Não havia necessidade.
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ADOREMOS COM AFETOS D’ALMA
A sala era pequena, mas muito branca e iluminada. Num dos cantos o altar sobre o qual fora colocada a coroa de prata com o cetro. Ao lado, encostadas à parede e semi desfraldadas as bandeiras vermelhas debruadas a amarelo e branco com desenhos representando os símbolos do Paráclito. Coberto com toalhas branquíssimas, enfeitado com rosas, lírios e sécias, iluminado com velas acesas, o altar resplandecia em brilho, simplicidade e fé. A sala estava repleta e comunicava com o pátio por uma porta amplamente escancarada. Cá fora o povo apinhava-se, cochichando as últimas do dia. Lá dentro o silêncio entrecortava-se com o lampejar titubeante das velas e com o adocicado cheiro das flores.
Às nove em ponto Tia Laura, acolitada pela Deolinda do Chibante e pela Amélia, a filha do mordomo. iniciou a cantoria do terço em louvor do Divino, depois do foguete estalejar nos ares pelas mãos do Silvano. Todos se benzeram e persignaram. Até os homens que enchiam o pátio, a cozinha e o corredor.
- Adoremos com afeto de alma, o Espírito Santo Divino! – Cantavam as três mulheres.
Logo um coro de vozes abruptas e pouco sincronizadas redarguiam:
- Que dos céus descendeu sobre nós, ó incêndios de amor divino.
As três mulheres insistiam e o coro voltava a retorquir. Dez vezes com a mesma música e a mesmas invocações. Outras tantas vezes quantas as Ave Marias de cada mistério do Rosário da Virgem Maria. Ao chegar à décima, Tia Laura que ia contando as invocações pelas camândulas de um terço acastanhado, dava sinal de mudança, levantando o braço bem alto para que todos vissem. As mulheres, sobretudo as mais atentas, alteravam, de imediato, a cantoria:
- Glória ao Pai que nos criou, glória ao Filho que nos remiu!
Os homens não se faziam esperar:
- Glória ao Spirito San, que em suas graças nos concebiu!
Depois, unindo todas as vozes, as da sala, do corredor, da cozinha e dos pátios:
- Fazei ó Santo Espírito, a Deus Pai, Filho, amar. A um só Deus em três pessoas, no Céu pra sempre adorar. E logo continuavam, agora alterando a ordem das invocações.
No fim do terço, todos juntos iniciavam e cantavam a Salve Rainha. Depois, com profunda intensidade e comoção de voz, cantavam, três vezes: Senhor Deus de Misericórdia/Virgem Mãe de Deus, rogai por nós. A Florinda voltava a assumir a presidência, oferecendo Pai-Nossos sucessivos, que eram rezados por todos: pelos irmãos falecidos e pelas intenções do mordomo. O Terço terminava com o “Oferecimento ao Divino Espírito Santo”, durante o qual cantavam: Ó Senhor Espírito Santo/Nós roguemos com clamor/Mandai oprimir à terra,/Que não haja mais tremores. Sois pai de misericórdia/Livrai-nos de todo o mal/Não castigueis com tremores/Esta ilha de ofendal. Não desprezeis a fé grande/Com que nós recomendamos/Fazei como Pai Divino/Naja que nós o merecemos. Barca onde embarcou Cristo/Na galera tão real/Feita em tão bela hora/Para aquele general. À popa leva sentado/Santo António com seu véu/Que rica viagem de anjos/Leva Jesus para o Céu. Senhor que lá estais em cima/Nesses Céus de alegria/Vos peço que nos chamais/Para a Vossa companhia. Andavas tão vigiado/Sem saberes da partida/Morte de uma ocasião/Vida nova vida. Chega-te à confissão,/Se te queres confessar/ Morte da ocasião/ É o laço do pecado. Mil vezes cada dia/ Tua alma com diligência/ Toma paz e alegria/Que é da boa consciência. Quando Deus formou a terra/Bons e maus Deus os criou/Quando nos Céus se encerram/Só os bons Deus os guardou. Ó Senhor eu vos ofereço/Esta nossa devoção/Seja honra e glória Vossa/Para nossa devoção.”
Terminado todas estas orações o Manuel Luís, o dono da casa e mordomo nesse ano, retirando o cetro do interior da coroa, distribuía-o pelos presentes que o passavam de mão em mão. Enquanto se cantava o hino “Alva Pomba”, o cetro passava pelas mãos de todos, que o osculavam com o maior respeito, dignidade e devoção.
Era o terço cantado durante a novena de preparação para a Terça-Feira, o dia da festa do Espírito Santo, em São Caetano do Pico.
O Terço do Espírito Santo, ainda hoje cantado em São Caetano, como se cantava há quarenta e há cem anos, é, incontestavelmente, uma celebração de caris profundamente religioso e que, a julgar pelo
próprio texto, transmitido por tradição oral, remonta, muito provavelmente, aos primórdios do povoamento da ilha e aos tempos em que a mesma era abalroada por crises sísmicas frequentes e por outras calamidades, como se pode depreender de alguns dos textos cantados. O terço é constituído por cinco partes, nas quais se repete uma invocação dez vezes seguidas, sendo que a orientadora canta a primeira parte e o povo a segunda, situação que se alterna nas dez invocações seguintes. É este o texto, cantado cinquenta vezes, repartido por cinco blocos de dez invocações cada, que se diferencia do cantado noutros lugares, dali bem próximos.
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EMANUEL JORGE BOTELHO
Emanuel Jorge Ferreira da Cruz Botelho nasceu na cidade de Ponta Delgada, em 11 de Agosto de 1950, Licenciou-se em Ciências Político-Sociais e seguiu a carreira de professor. Contudo, tem-se distinguido como poeta e animador cultural. Faz parte do Grupo de Intervenção Cultural Açoriano (GICA) e fundou e dirigiu, conjuntamente com Eduardo Bettencourt Pinto, a revista Aresta. Coordenou o suplemento literário “Raiz”, do jornal Correio dos Açores. Muitos dos seus poemas são publicados em tiragens artesanais e imaginativas, tendo raramente publicado um livro tradicional.
Como poeta pode-se considerar de vanguarda, utilizando uma escrita provocadora e mergulhando nas estilísticas surrealistas. O seu livro Agite Antes de Usar foi prefaciado por José Sebag.
As suas principais obras: Consciências de Mim que a Ti Devo, Agite Antes de Usar, Mas o Território Não é o Mapa, Cesuras, As Mãos, as Crinas, Asas e Penas e Perguntas Queimadas.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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ÉS FINGE
O que te perturba é o que és?
Então finge seres o cavaleiro das nuvens adormecidas.
Sobe o deserto das inseguranças permanentes
E sozinho, medita no silêncio pálido da madrugada.
As portas estão cerradas e as lareiras ainda não se acenderam.
A água das ribeiras secou, o mar povoou-se de bruma.
Ainda nenhum pássaro cantou.
O que te perturba é o que és?
Então finge seres o cavaleiro das florestas acinzentadas.
Vagueia na planície das revoluções atrofiadas
E sozinho peneira o suco dos rumores indiscretos.
As caves estão cheias de silêncio e de bafio e as lezírias amareladas e apodrecidas.
Os ninhos das gaivotas foram incinerados, os lírios perderam a cor branca.
As miragens das montanhas encharcaram-se de penumbra.
O que te perturba é o que és?
Então finge seres o cavaleiro das flores sem pétalas e sem perfume.
Desce, sozinho, as escadas que conduzem aos recônditos da solidão
Beja o vento e agarra-o como se fosse uma rosa vermelha.
As angústias foram institucionalizadas como dogmas e o vinho é amarelo,
O orvalho iluminou a face dos mortos, o rosto dos descrentes encheu-se de brilho.
As orgias dos matagais foram proibidas por decreto
O que te perturba é o que és?
Então finge seres o libertador das estrelas perdidas entre o restolho das procelas.
Grava, com o estilo da soturnidade, retalhos de lume sobre a lava negra
E desenha grinaldas de anémonas cor-de-rosa nos raios do sol matinal.
As nuvens nunca se esquecerão de proteger a tua audácia
E as noites azuladas da primavera acorrentar-te-ão ao cais da inocência
Porque és quem finge.
És? Finge.
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NOVA CAMINHADA
A primeira etapa da tua vida escolar terminou. Muitos foram os que te ajudaram nesta primordial e importante caminhada, com destaque para os teus pais, a tua educadora, a auxiliar de educação e os teus colegas de turma. Também estiveram contigo, a acompanhar-te e apoiar-te, a tua irmã, os teus avós, os teus tios os teus primos, os teus amiguinhos e todas as pessoas que trabalham na tua escola. Nunca os deves esquecer.
Agora uma outra etapa vai começar. Embora semelhante à primeira será muito diferente dela. Exigirá muito mais de ti, o que se compreende porque tu, agora, já és maior, mais forte, mais capaz. Assim como na primeira etapa, também agora, nesta nova caminhada todos os que estão ao teu lado te vão ajudar e apoiar, tentando fazer dela um importante e agradável momento da tua vida que, com toda a certeza, te vai enriquecer e trazer-te muita alegria e muita felicidade, mas também muito esforço e alguns sacrifícios, fazendo de ti uma aluna trabalhadora, estudiosa, brilhante, permitindo-te aprender coisas maravilhosas e fantásticas.
Assim como na primeira, desejamos nesta nova etapa da tua vida escolar que o sucesso seja o teu caminho, que a alegria e a felicidade sejam as companheiras de todos os teus dias e que a vontade de aprender se transforme num hábito permanente. Assim, transformarás o estudo num contentamento, o trabalho num prazer e o esforço num hábito agradável. Luta sempre com força e dignidade pelos teus ideais, porque a partir de agora há caminhos mais longos, mais exigentes e com maiores dificuldades. Mas tudo será fácil se a bondade, a simplicidade, a honestidade e a amizade forem os baluartes do teu caminhar.
Segue, sempre, progredindo, incólume, na demanda da dignidade. Conta sempre com os que estão ao teu lado para te ajudarem e entre estes estão os teus avós Alda e Carlos.
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PAPEL NADA
No Seminário Menor de Ponta Delgada, assim como no de Angra, era costume o papel higiénico ser da responsabilidade de cada utente das latrinas, medida geralmente aceite por todos. Como era cada qual a usar o seu papel, com o qual sempre se munia quando pretendia ir fazer uma necessidade grande, não havia desperdícios ou gastos supérfluos. Bem recomendo, agora, aos meus netos que também o poupem. Mas eles, nada. Duma só vez gastam mais do que eu utilizava no Seminário durante uma semana.
Mas no Seminário a compra dos bens necessários aos alunos, nos quais, obviamente se incluía o papel higiénico, era feita pelo Prefeito, que para tal distribuía pelos alunos uma requisição onde cada qual escrevia o que necessitava. Normalmente produtos de higiene, material escolar e pouco mais. Tudo o que estivesse para além do permitido era riscado.
Ora logo nos primeiros dias em que cheguei pela primeira vez ao Seminário de Ponta Delgada, recebi a tal folhinha de requisição para as minhas compras. Pouca coisa. Entre elas no entanto teria que requisitar o tal papel que eu já vira nas mãos de alguns colegas mas de que não sabia o nome. Ainda pensei escrever papel de limpar o rabo. Mas como cuidei que isto fosse ofensivo para a dignidade do Senhor Padre Perfeito, contive.me. Enchi-me de coragem, levantei-me e dirigi-me para a secretária do Perfeito, estrategicamente colocada a meio da sala e perguntei-lhe simplesmente:
- Como se chama o papel?
Ao que ele muito atarefado a registar e a somar aquele amontoado de requisições que, aos poucos, lhe caíam em catadupa sobre a mesa, respondeu:
- Nada1 Nada, Vai para o teu lugar.
Cuidando-me esclarecido, regressei para o meu lugar, sentei-me na minha carteira, peguei na requisição e numa caneta e zás. Escrevi de imediato, no meio das outras compras: 1 Rolo de papel Nada.
No dia seguinte recebi as compras, mas o tal papel, nada. Não apareceu e o nome estava riscado na minha requisição.
Fiquei perplexo, porque as compras eram de quinze em quinze dias. Como consequência tive que andar mais duas semanas a limpar o rabo em pedacinhos de jornais e de outros papéis que ia encontrando por aqui e por ali. Num dia de maior aflição até tive que arrancar uma folha do caderno de significados de Francês.
Na véspera da requisição seguinte, perguntei a um colega, mais experiente naquelas andanças, como se chamava o papel com que se limpava o rabo. Ele esclareceu-me, mas confuso perguntei:
-Escreve-se com agá ou sem agá.
- Sem agá. – e comentando para o lado - Bem se vê que és das Felores.
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O CURRAL DAS GALINHAS
Na Fajã Grande, na década de cinquenta, não havia casa que não tivesse um curral de galinhas. Até a do senhor Padre Pimentel assim como em todas as outras mais abastadas. É que as galinhas tinham um papel de relevo na alimentação, não apenas pela carne mas sobretudo pelos ovos. Além disso o custo da sua alimentação era fácil e barato, uma vez que eram alimentadas com milho que abundava na freguesia mas também com ervas e verduras, nomeadamente com erva-santa e ainda com o farelo que sobrava do peneirar da farinha. Ao farelo juntava-se água, fazia-se uma massa a que se adicionava, por vezes, couves cortadas, cascas de batatas picadas ou outras sobras de comida, a fim de que o cardápio das ditas cujas ficasse mais suculento.
As galinhas eram criadas num curral, construído para o efeito, junto de casa. O curral era um pequeno espaço, geralmente retirado à courela da porta. Era murado com paredes bastante altas, muitas vezes encimadas com arame farpado ou rede porque as atrevidas das galinhas se não fossem piadas ou se não tivessem as asas amarradas ou cortadas, saltavam cá para fora e iam por os ovos onde bem entendessem. Depois era o diabo para os encontrar. Além disso esgaravatavam e davam cabo das colheitas por ali existentes, Os currais, geralmente, situavam-se junto ao pátio traseiro de cada casa, cuja parte inferior havia sido transformada em poleiro. Este era uma pequena concavidade escura, tendo a um canto o linheiro, devidamente preparado para elas porem os ovos. Nos currais mais afastados do pátio contruíam-se poleiros de madeira, ou seja, pequenos casotos ou encravados na aba duma parede, ou até colocados no meio do curral. Havia quem aproveitasse este espaço para nele construir o estaleiro.
No entanto, quem tinha hortas, por entre as terras de mato, tapava-lhes bem as paredes, amarrava e cosia as asas às galinhas e soltava-as na horta, com a dupla vantagem de lhes retirar as ervas daninhas e de lhes ir lançando algum estrume. Nas hortas também se construía o poleiro, ou adaptando uma furna ali existente ou construindo um de madeira, semelhante aos dos currais. Por vezes um cesto velho, deitado, também servia de poleiro. Mas, neste caso surgia um pequeno problema. É que as atrevidas das galinhas apanhando-se à solta decidiam pôr os ovos onde bem queriam e entendiam, aqui e além, muito escondidinhos e mudando de sítio em cada dia, o que obrigava os donos a uma tarefa árdua, incómoda, demorada e por vezes improfícua para lhes descobrir os esconderijos. Era costume, para evitar tal estouvado procedimento, deixar-lhes um ovo no linheiro inicial ou um objeto que imitasse um ovo e assim, as parvas, cuidando cada uma que ele era seu, iam, à vez, lá desovar os restantes.
Na verdade, por incrível que pareça, os currais das galinhas, apesar de simples e modestas construções, tiveram um importante papel na economia e sobretudo na alimentação da população fajãgrandense.
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GUERRA NA CAPOEIRA
Este era mais um dos textos que liamos nos livros escolares e que pleno de realismo, se enquadrava no nosso quotidiano, por isso com este e com muitos outros delirávamos. Essa a razão pela qual os decorávamos e recitávamos a torto e a direito.
A Guerra da Capoeira era um deles, talvez o mais interessante por estarmos constantemente a ver as galinhas nos currais a empertigarem umas com as outras por tudo e por nada que encontrassem. Até um simples grão de milho. Rezava assim o texto:
Está a capoeira toda alvoraçada
Franga poedeira com crista encarnada
Achou uma espiga de milho dourado
Vem de lá o galo e dá-lhe uma bicada
O pato marreco dá-lhe uma patada
Fica a capoeira toda alvoraçada
E assim se arma a guerra por causa de nada.
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MÃE
Mãe:
sobre o restolho da lava estonteada
construíste o caminho da verdade.
Mãe:
sobre o titubear duma aurora amordaçada
alteaste o perfume da dignidade.
Mãe:
sobre o sufoco duma vida cerceada
açulaste o brilho da bondade.
(E apenas tiveste,
ao teu lado,
uma titubeante brisa matinal.)
Mãe:
Foste senhora, rainha, deusa!