PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PAPÃO FEIO
Em criança, todos nós, de forma mais ou menos inconsciente, fizemos as nossas “asneirasitas”, manifestámos algumas birras, chorámos quando devíamos estar caladinhos, enchíamo-nos dos pés à cabeça de sarampo e bexigas loucas, apanhávamos defluxo, mexíamos no que não devíamos, surripiávamos, às escondidas, uma colherzita de açúcar, atirávamos o gato para o curral das galinhas, dizíamos nomes feios e “entregávamos”, enfim e numa palavra, metíamos o nariz onde não éramos chamados.
Os nossos pais, para nos castigar e corrigir daquelas pequeninas malícias, as quais, mais do que os prejudicar, lhe dificultavam e obstruíam as inúmeras e árduas tarefas do seu quotidiano agrícola e, sobretudo, doméstico, lá foram criando alguns monstros supostamente idealizados para nos amedrontar. Entre eles o Papão Feio, o Coiso-Mau, o Boiceiro e tantos outros.
E não é que as ameaças, muito naturalmente, ultrapassavam os efeitos desejados e o medo apoderava-se de nós, inocentes e frágeis criancinhas, a ponto de nos aterrorizarem e até, por vezes, nos tirarem o sono?
Talvez porque exagerassem nos arquétipos concebidos, talvez porque se arrependessem de os ter criado, os nossos antepassados tentaram afastá-los. Já era tarde, mas em boa hora o fizeram, porque assim nasceram algumas belas canções que as nossas mães cantavam sobre o nosso berço, enquanto esperavam que o leite colocado em cima do tisnadíssimo fogão de vidro do candeeiro a petróleo amornasse para depois o meter numa garrafa, já vazia, de xarope de benzo-diacol, colocando-lhe uma mamadeira no lugar da rolha, simulando, assim, os modernos biberões. Uma dessas canções que ouvi tantas vezes cantar sobre o berço de meus irmãos mais novos era precisamente “O Papão Feio”, felizmente já registado em CD, através duma excelente interpretação de Maria Antónia Esteves, baseada numa cuidadosa recolha feita na Fajã Grande, por seu tio, o P.e José Luís de Fraga e cuja letra, a seguir reproduzo:
“Vai-te embora papão feio,
De cima do meu telhado.
Deixa dormir o menino,
Um soninho descansado.
Vai-te embora papão feio,
De cima desse loureiro,
Deixa dormir o menino,
Que está no sono primeiro. “
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LENDA DA DESCOBERTA DA ILHA DE SANTA MARIA
Segundo uma antiga lenda, Gonçalo Velho Cabral marinheirodo Infante, frade devoto Nossa Senhora, Mãe de Deus, por ordem do Infante Som Henrique, fez-se ao mar numa caravelac, fazendo uma promessa à Virgem de dar o nome d’Ela à primeira terra que encontrasse no mar Oceano.
As viagens marítimas dos descobrimentos eram geralmente perigosas, difíceis, demoradas e imprevisíveis. Os marinheiros dependiam do vigia, no alto cesto da gávea quase na ponta de um mastro, para olhar o horizonte desde o raiar da madrugada até ao anoitecer e tentar descobrir terra.
Gonçalo Velho esquadrinhava os mapas, anotava as correntes e rezava à Virgem Santa Maria. Passaram-se calmarias e tempestades, noites e dias, meses... Foi então que num dia de verão, no dia 15 de agosto, festa da Assunção de Nossa Senhora amanheceu um dia claro, suave, de céu limpo. A vista alcançava grandes distâncias.
Na linha do horizonte foi surgindo uma nuvem, que foi se agigantando, ganhando forma e nitidez. A dada altura o gajeirojá não tinha mais dúvidas e gritou:
- Terra! Terra à vista!
Gonçalo Velho Cabral e a restante marinhagem começavam o dia, como era hábito nessas alturas, com orações a Deus e a Nossa Senhora para que os ajudasse a encontrar terras novas. Estavam a rezar a Avé Maria e nesse preciso momento pronunciavam a Santa Maria.
Gonçalo Velho considerou que se tratava de um milagre de Nossa Senhora a lembrar-lhe a promessa que tinha feito. Esta era a primeira ilha descoberta nos Açores, a ilha mãe, que recebeu de imediato o nome de Santa Maria.
Segundo a lenda, esta fé de Gonçalo Velho perpetuou-se no local, onde ainda se mantém grande devoção em Nossa Senhora, festejada efusivamente no mês de Agosto de cada ano.
NB - Texto parcialmente retirado da Wikipédia.
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A CALDEIRINHA
A Caldeirinha, encastoada bem lá no alto, sobre a Rocha da Ponta, era um dos mais deslumbrantes e emblemáticos lugares de quantas existiam na Fajã Grande. Situada num planalto de singela beleza e singular rusticidade, a Caldeirinha como que se misturava com o verde das relvas, das queirós, dos juncos, do tamusgo e dos vinháticos, se envolvia com o perfume salificado do oceano, cujos salpicos e respingos, apesar de distante, recebia ao de leve, se confundia com o silêncio que sobre ela desabava em catadupa emanado das escarpas circundantes e, por fim, ornava-se com o colorido das hortênsias que em bardos multicolores dividiam as propriedades dos qua ali as possuíam.
Como os restantes lugares dos matos da Fajã Grande, a Caldeirinha, na década de cinquenta, tinha um papel preponderante e de relevo não apenas no quotidiano das famílias que ali possuíam propriedades, mas também na economia da própria freguesia, por quanto grande parte daquele andurrial era zona de concelho, isto é, zona todos, onde pastava grande parte das ovelhas da Fajã e sobretudo da Ponta e que, nos meses de março e setembro, eram ajuntadas e tosquiadas nos dias de fio. Na verdade, apesar de, vocacionada desde sempre como local de pastoreio de gado vacum, nas partes mais altas e nas escarpas dos montes circundantes pastavam ovelhas, ao desvario, por sua conta, apenas recolhidas nos dias de fio. Numa espécie evasão ocasional e paradigmática, os ventos e, sobretudo as nuvens da Caldeirinha, também funcionavam como avisos meteorológicos para a população da freguesia. De facto, a Caldeirinha, enigmaticamente e devido à sua altitude e ao seu posicionamento geográfico, como que se transformara num verdadeiro centro informativo, numa espécie de boletim meteorológico, onde se podia ler e adivinhar a força do vento, a chuva, o tempo dos dias seguintes a cada dia. Mas a Caldeirinha também se apresentava como uma espécie de granja onde, juntamente com vacas, ovelhas, ervas e queirós, misturadas com coloridos carreiros de hortênsias a tapar valados e grotões, um lugar de excelência, de informação e de grande utilidade, pois era ali que em dias enevoados, cinzentos, chuvosos, se juntavam muitos homens, a ceifar bracéu, a roçar feitos, a cortar queirós para a matança do porco, ou a desbravar a maldita e perversa cana roca ou simplesmente a tratar do gado e que, vezes sem conta e se galvaniza em momentos de alegria, em encontros mágicos, em convívios gratificantes, entrelaçados em singela e genuína camaradagem. Era ali que almoçavam por vezes até repartindo os seus próprios cardápios. Em suma, a Cadeirinha, em tempos recuados, era uma espécie de mito, ou seja, um local de sonhos idílicos, de fascinações extasiantes, de enlevos arrebatadores, porque de rara beleza, grande utilidade e excessivos encantos. Uma espécie de epicentro do trabalho árduo, do convívio, do cansaço e da amizade. Um verdadeiro paraíso.
A Caldeirinha a oeste fazia fronteira com o Alto da Rocha do Vime, a Sul com o Bracéu e o Queiroal, a norte com a freguesia de Ponta Delgada, já pertencente ao Concelho de Santa Cruz e a Oeste com as relvas dos matos da Ponta e com o Risco.
A origem do seu nome muito provavelmente estará ligada ao facto de, embora situada num planalto, é ladeada por vários montes, pelo que vista de cá debaixo, de longe se assemelha a um pequena concavidade ou a uma caldeirinha.
Ali, naquele lugar de encanto e beleza rara, tudo era sublime e transcendente. Até o ar era perfumado com o bafo das vacas e das ovelhas, com o cheiro do poejo, da cidreira e da erva-nêveda, e adocicado com o verde das queirós e dos fetos, com o perfume das hortênsias.
Numa palavra a Caldeirinha era um lugar de encanto, de beleza rara e que, aparentemente, até parecia ser beijada pelo roncar dos aviões que sobrevoavam a ilha, num vai e vem contínuo entre a América e a Europa.
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AGUARELA DO ENTARDECER
Plantado sobre a lava negra,
Sem árvores,
Sem rios,
Sem pássaros,
Deserto,
Mas envolto em bruma densa.
Apenas o Sol
(estrebuchado e chocho)
O acaricia com fulgor
E uma gaivota olha-o de longe.
É o monte das neblinas eternas,
Desenhado,
Como se fosse uma aguarela do entardecer.
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INEBRIANTE SIMPATIA
Dos “Senhores” presentes no encontro, foi dos poucos cujo percurso no Seminário, como aluno, abrangeu, parcialmente, três décadas. Isto porque, entrando para o SEA, em Setembro de 1949, manteve-se ao longo de toda a década de cinquenta e terminou o curso de Teologia já na década de sessenta, mais concretamente, em 1961. Além disso, pertenceu ao mais antigo dos cursos que se fizeram representar no Encontro. Recorde-se que, no entanto, vivem nas ilhas, exercendo o múnus sacerdotal e possivelmente outras actividades ou, eventualmente, já reformados, muitos alunos de cursos anteriores e que terminaram a sua formação académica no Seminário de Angra em plena década de cinquenta.
O Senhor em causa exerceu quase toda a sua actividade profissional, trabalhando a nível da Segurança Social, do Emprego e da Formação Profissional, sendo durante muitos anos o Director do Centro de Emprego e Formação Profissional de Ponta Delgada, estando actualmente reformado.
A sua presença no encontro foi extraordinária e de grande importância, revelando-se um excelente narrador e um apuradíssimo contador de “estórias”, com destaque para “A Cruz Azul”, “A Gata” e muitas outras. Além disso também foi um fiel intérprete de fotografias antigas, como a da “Despedida”, de textos e poemas de outrora, enfim de tudo o mais que a memória de muitos já tinha esquecido. Senhor duma boa disposição permanente e de uma alegria constante e contagiante, granjeou, ao longo dos três dias do Encontro, uma simpatia inebriante por parte de todos e obteve um protagonismo natural e inédito, tornando-se, em cada momento, quer nas suas atitudes quer nas suas palavras, muito apreciado, envolvente e acolhedor. Foram notáveis e inesquecíveis as suas prestações, quer em momentos de jocosidade e lazer, como na leitura do “Et gallus cantavit”, durante o jantar do primeiro dia, no refeitório do Seminário, quer em momentos solenes e de grande emoção, acolitando durante a celebração da missa em memória dos professores e alunos falecidos. Teve ainda um papel importante, na tarde de sexta-feira, ajudando a decifrar algumas mensagens escritas em tempos idos. Alem disso contagiou-nos a todos com a sua alegria, encantou-nos com a sua boa disposição e galvanizou-nos com a sua permanente vontade da fazer daquele Encontro o mais belo de todos os Encontros, ou, como alguém diria “não foi “mais um” mas foi “o” excelente reencontro de colegas desencontrados ao longo de mais de quatro décadas”.
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A VELHA FERREIRA
Os pobres são e serão sempre pobres e menos nobilizados do que os ricos ou até mesmo do que os remediados. Mas se sobre um pobre ainda cai o infortúnio da ingenuidade e do pouco entendimento, ou se à pobreza física se junta a pobreza de espírito, o impropério do desdém, do menosprezo, por vezes até do gozo e do apoucamento é inevitável. Mais imperioso numa comunidade pequena, onde todos se conhecem e se encontram a cada hora e a cada momento do dia.
Assim era na Fajã Grande em tempos idos relativamente ao tratamento dado aos mais idosos. Os ricos, que diga-se em abono de verdade não abundavam, eram tratados por senhores, as ricas por donas, os remediados e as respetivas esposas ou as suas viúvas recebiam o interessante título de tios ou tias, enquanto os pobres eram simplesmente alcunhados de o velho ou a velha.
Assim acontecia com uma pobre e idosa mulher que morava numa casa logo no início da Tronqueira, de apelido Ferreira. Como era muito pobre e um pouco desatinada de costumes e hábitos era tratada, apesar do respeito que a sua provecta idade devia impor, pela velha Ferreira ou simplesmente a Ferreira.
Viúva e mãe de dois filhos, a Ferreira vivia dos parcos recursos de uma ou outra pequena courela que possuía e que ela própria a muito custo trabalhava. Dos filhos, um era um rapaz que depois de ser apurado nas sortes, pois era muito saudável, forte e um pouco mais atinado, partiu para a tropa e abandonou definitivamente a freguesia. O outro filho era uma rapariga, a Jerónima, como a mãe, muito simples, ingénua e desatinada. Na escola não aprendia, traçando-se-lhe o destino de ter que ajudar a mãe na árdua e difícil vida do campo, adquirindo assim o seu mísero sustento. Mais tarde casou com um pobretanas de má catadura que, segundo constava não a tratava nada bem. No meio de alguma violência doméstica a pobre Jerónima talvez nunca atingiu a felicidade a que todo o ser humano tem direito.
Certo dia, depois de ela própria lhe ter tirado o leite, conduzia uma vaca esquelética e lazarenta para o pasto, acompanhada de um filho, ainda criança. Ao passar junto à Casa do Espírito Santo de Baixo, em cuja banqueta estavam sentados a conversar e a falquejar alguns homens, o garoto, sem que ninguém lhe perguntasse o que quer que fosse, voltando-se para os eles exclamou em alto e bom som:
- Meu pai meteu a cabeça de minha mãe na poça do palheiro das vacas.
A pobre e ingénua Jerónima prontamente respondeu, em tom ameaçador:
- Cala-te! Quando chegares a casa a tua é que vai para poça!
NB – Esta estória é real, apenas se alteraram, para não ferir suscetibilidades, os nomes das personagens intervenientes.
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LENDA DAS VARAS
Conta-se que há muitos séculos, a população de uma das ilhas açorianas tinha caído num grande desleixo para com o seu semelhante: havia desavenças por todo e qualquer motivo e todo o tipo de abusos. Nas igrejas os padres pregavam pedindo penitência e humildade e anunciavam castigos de Deus. Mas o povo não se emendava, continuava com os seus abusos e desavenças, maltratando-se uns aos outros.
Certo dia começaram a sentir-se grandes tremores de terra. Toda a ilha era abalada com muita violência. No cimo de um dos montes mais altos da ilha começou a sair fumo seguido de fogo e de uma grande erupção. Cinzas vulcânicas e lavas desceram do monte, aterrorizando as populações que nas partes baixas da ilha viam as lavas incandescentes a vir na direção das suas casas, destruindo-as e matando os seus animais. O castigo para os pecados tinha chegado, gritavam os padres nos altares e as pessoas de boa alma nas ruas. Do alto do monte foram atiradas pedras incandescentes até grandes alturas e a lava correu vulcão abaixo numa ribeira lenta, muito quente e caudalosa, em direção ao mar. Os abalos eram cada vez mais fortes.
Nos povoados as pessoas choravam, juntavam-se nas igrejas e rezavam, impotentes, perante a violência da natureza. Outras desorientadas, corriam de um lado para o outro numa tentativa vã de encontrar abrigo. Foi então que um fradinho teve a ideia de todos, cheios de fé saírem numa procissão fazendo preces a Deus para que parasse a erupção. Com eles levavam coroa do Espírito Santo de um dos Impérios da ilha e iam dentro de um quadro formado com as varas do Espírito Santo.
Seguiram pelas ruas cujas casas se encontravam no caminho do rio de lava. Aproximaram-se o mais possível da lava que corria lenta e pastosa, e nesse local atiraram as varas do Espírito Santo para o chão, de forma a que formassem um traçado, um caminho que queriam que a lava tomasse, que a levasse ao mar.
Fizeram-no com tanta fé que pouco depois o rio de lava começou a mudar o seu curso, encaminhando-se para o mar, seguindo assim o caminho traçado pelas varas do Espírito Santo. A população ainda chorosa e atónita, estarrecida de medo e admiração, começou a agradecer ao Divino Espírito Santo. Fizeram-Lhe muitas promessas por os ter protegido da lava.
Essa a razão por que ainda hoje se conservam as varas juntamente com outros símbolos do Espírito Santo.
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UM POUCO DE HISTÓRIA E ECONOMIA DA ILHA DO PICO
Durante a Guerra Civil Portuguesa (1828-1834), entre absolutistas e miguelistas a ilha do Pico foi ocupada sem resistência pelos liberais.
Isto refletiu-se na economia da ilha, mais agravada ainda em meados do século XIX, altura em que a produção de vinho entrou, denodadamente, em crise devido o ataque do Oídio (1852) uma verdadeira e desastrosa praga, que, oriundo dos Estados Unidos, chegou à Europa, alastrando-se por vários países, incluindo Portugal e chegando em força à ilha do Pico. Demorou a recuperação dos vinhedos, fazendo-se sobretudo à base de plantação de novos bacelos. No entanto a crise da vinha provocou, em alternativa, o desenvolvimento do cultivo de frutos como as laranjas, ameixas maçãs, pêssegos e figos, sendo estes também utilizados na produção de aguardente. A produção de fruta amentou sensivelmente na ilha Montanha, atingindo níveis de produção tão altos que permitiram a exportação da mesma, em larga escala, mas apenas a nível regional, sobretudo para a vizinha ilha do Faial. Desta forma, tornou-se um hábito diário a deslocação de picoenses para o Faial com o objetivo de proceder à venda da fruta, costume que se manteve até meados do século passado, altura em que ainda existia uma lancha que fazia a ligação entre as duas ilhas, denominada lancha da fruta.
Por esta altura também atingia o seu píncaro a pesca ou caça a baleia, transformando o Picoa e mais concretamente a vila das Lajes, no principal centro baleeiro dos Açores, durante o período áureo da caça ao cachalote. Realce para a grande qualidade e excelente qualidade dos baleiros picoenses, muitos deles emigrados sazonalmente para outras ilhas, nomeadamente para as Flores. Após o declínio desta atividade que resultou da cessação da caça, no último quartel do século XX, o Pico e os seus homens, sempre voltados para o mar, sem nunca desistir dele, lançaram-se na pesca do atum e na indústria de conservas, e, mais recentemente, na observação de cetáceos, transformada em notável atividade turística,
Em Julho de 2004, a UNESCO considerou a Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico como Património da Humanidade. A área assim classificada engloba os lajidos das freguesias da Criação Velha e de Santa Luzia. Por sua vez o Parque Natural da ilha do Pico, engloba a área da Montanha do Pico e o Planalto Central assim como outras zonas de proteção especial. Recentemente realizou-se no Pico a maior feira agro pecuária dos Açores.
A paisagem vulcânica da ilha do Pico foi considerada uma das 7 Maravilhas Naturais de Portugal.
Recorde-se que a cultura da vinha está associada aos primeiros tempos do povoamento, nos finais do século XV. Sobre isto alguém escreveu: O vinho verdelho, a partir da casta do mesmo nome, ganhou reputação mundial ao longo dos séculos, chegando à mesa dos czares russos. A partir do século XIX são introduzidas novas castas que dão origem a vinhos de mesa brancos e tintos. O modo de cultivo, contra a aspereza dos terrenos vulcânicos quase sem terra vegetal, em currais, que são áreas muradas de pedra negra, de muito pequena dimensão, marca igualmente a cultura da Ilha do Pico.
NB – Este texto contém alguns dados retirados da Net.
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LENDA DO MONTE BRASIL – ILHA TERCEIRA
(Texto de Ângela Furtado Brum)
Segundo a tradição, o príncipe dos mares vivia apaixonado por uma linda princesa de cabelos louros que vivia próximo aos seus domínios. A princesa, entretanto, não correspondia aos seus amores por já se encontrar apaixonada por outro príncipe. O senhor dos mares vivia consumido por ciúmes que muitas vezes o levavam à violência, e decidiu chamar uma fada ao seu reino marinho, com o objetivo de mudar o rumo aos acontecimentos.
A fada veio e tentou durante bastante tempo que a princesa desistisse do seu amor e se apaixonasse pelo Senhor do Mar. Fez magias e feitiços e exerceu todas as suas influências, mas sem nada conseguir devido ao profundo amor da princesa pelo seu príncipe. Furioso, o senhor dos mares acabou por expulsar a fada dos seus domínios.
Um dia, os dois apaixonados, que até ali tinham vivido só da troca de olhares e de suaves devaneios, trocaram o primeiro beijo. Foi um beijo rápido, mas o sussurro dos apaixonados foi escutado pelo senhor e príncipe dos mares, que acordou do leito de rocha de basalto negro e areia vulcânica onde dormia.
A fada também ouviu e atravessou apressadamente os céus em direção ao reino do príncipe dos mares, pois via a oportunidade de se vingar do príncipe, por quem entretanto se tinha apaixonado, e da princesa que lhe roubava a felicidade.
Quando chegou perto do Senhor do Mar, viu-o furioso a bater-se contra a terra com furiosas e encapeladas ondas cobertas de espuma branca e disse-lhe baixinho:
- Príncipe do mar, chegou a hora da vossa vingança. Aqui estou para fazer o que mandardes.
Cego pelo ciúme e pela raiva, este ordenou-lhe em tom de ódio:
- Correi, fada, fulminai o príncipe que roubou minha amada. Mas... lembrai-vos, só a ele!
Aceitando o desafio com a cabeça e convidando o Senhor do Mar a assistir à vingança que ia preparar, a fada levou-o pela mão em direção à praia onde estavam os dois apaixonados. Lá foram encontrar a princesa de cabelos soltos, dourados ao sol poente, levemente reclinada sobre o seu apaixonado.
Rapidamente, a fada soltou a mão do Senhor do Mar e se precipitou sobre o par enamorado, fazendo um encanto: o príncipe ficou transformado num grande monte (o Monte Brasil) coberto de denso arvoredo, levantando-se altivo de frente para o mar. A princesa recusou-se a abandonar o seu apaixonado e ficou para sempre reclinada na posição em que se encontrava. Com o passar dos milénios, transformou-se na baía e na cidade de Angra do Heroísmo. Encontram-se os dois unidos e embalados para sempre pelas noites e pelos dias, pelo eterno soluçar angustiado do Atlântico, príncipe e senhor dos mares.
Furtado-Brum, Ângela, Açores, Lendas e Outras Histórias.
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ARMAS DE SABUGUEIRO E CADEIRINHAS DE JUNCO
Talvez porque ainda pairasse sobre nós o espectro da segunda Guerra Mundial, talvez porque ouvíamos muitas estórias e relatos sobre piratas que antigamente atacavam a ilha, não apenas a população mas também muitos navios que por ali passavam, carregados de mercadorias que, vindos das Américas e demandavam as Flores na procura de rumo que os guindasse nas sendas das rotas europeias e norte-africanas, talvez por se encafuar, no nosso subconsciente, que a história da humanidade era um relato permanente de batalhas e guerras, talvez por isto e por aquilo e talvez por coisa nenhuma, mas simplesmente porque havíamos de construir os nossos próprios brinquedos com o material de que dispúnhamos, uma das brincadeiras muito frequentes das crianças, nos anos 50, na ilha das Flores, era a da construção de armas de sabugueiro, com balas de raiz de cana roca, de bagas de sanguinho e de zimbro, com as quais nos entretínhamo-nos a dar tiros contra tudo e contra coisa nenhuma e, sobretudo, a ouvir o estrepitante estalido das ditas cujas, quando disparavam.
Fazer uma arma de sabugueiro era fácil. Bastava possuir uma boa navalha para cortar um tronco não muito grosso de uma árvore de sabugueiro. O pedaço de tronco a cortar deveria ser rectilíneo e com um tamanho aproximado de dois palmos de criança. Depois de cortado e devidamente alisado nas pontas, com uma verga ou com um vime empurrava-se o miolo do respectivo pedaço de tronco de sabugueiro, de modo a que este saísse totalmente e o sabugueiro ficasse furado duma ponta a outra, como se fosse um túnel, formando uma espécie de tubo. De seguida cortava-se um garrancho de incenso, de preferência com uma das metades mais grossa do que a outra. Uma parte do incenso, um pouco mais pequena do que o sabugueiro, deveria ser cortada, “falquejada” e raspada com um pedaço de vidro, de maneira a formar um cilindro que penetrando no tubo do sabugueiro se ajustasse ao mesmo sem grandes folgas, de tal modo que a parte mais grossa empeçasse e não entrasse no tubo, formando uma espécie de êmbolo. Com a navalha, cortavam-se dúzias e dúzias de pedaços de raízes de cana roca, à semelhança de pequenas rolhas ou juntavam-se as bagas de zimbro ou sanguinho, destinadas a tapar ambas as extremidades do tubo de sabugueiro. Uma vez bem metidas no mesmo deveriam ser bem apertadas, aparando-se toda a parte da rolha que não entrasse, de modo a ficar rasa nas extremidades do tubo. De seguida com o pau de incenso ia-se empurrando uma das rolhas que, aos poucos, ia entrando no tubo, comprimindo o ar, até empurrar a rolha da outra extremidade, atirando-a para bem longe e provocando um enorme estalido. A rolha empurrada ficava a ocupar a da parte da frente que havia sido atirada e colocava-se nova rolha na parte traseira, repetindo-se a operação cada vez que se pretendesse dar um novo tiro.
Uma arma de sabugueiro, quando bem-feita, atirava a bala para uma distância bastante considerável, provocava um ruidoso estalido e, se acertasse na corpo de alguém, doía a valer. Ai se doía!
As meninas, por sua vez, porque pouco afeitas a estas actividades bélicas, entretinham-se a fazer as cadeirinhas de junco. O junco era uma planta herbácea que crescia abundantemente, nas Flores, quer nos terrenos alagadiços, vulgarmente designados por lagoas quer nas margens das ribeiras e com mais abundância ainda nas zonas mais altas e rochosas da ilha, sobretudo nos matos, onde inclusivamente havia um lugar que fazia jus a este nome – o Rochão do Junco.
De tão abundante que era o junco, nem era aproveitado na totalidade, sobretudo porque o seu uso se destinava exclusivamente para secar os currais dos porcos, substituindo a cana roca e os milheiros ou para cama do gado nos palheiros substituindo os fetos e o restolho do trevo e da erva da casta. Por isso mesmo, o junco crescia e multiplicava-se de forma extraordinária, acabando por apodrecer no mesmo sítio onde nascia e crescia, para voltar a nascer e crescer de novo. Estava pois sempre à mão, o junco. Além disso o seu caule cilíndrico possuía uma mobilidade e uma flexibilidade que convidavam à criatividade. As meninas, nas suas brincadeiras, corriam a apanhar os caules do junco, verdinhos, aveludados e maleáveis e a fazer com ele as interessantíssimas “cadeirinhas de junco”, para brincar, por vezes, colocando-as nas casitas de papelão das bonecas de trapos com cabeça de loiça ou de casca de milho que elas próprias ou as mães construíam. Escolhiam os caules melhores e os mais rechonchudos e seleccionavam o maior, com o qual se armava as costas da cadeira, colocando-o em semicírculo sobre os dedos indicador e anelar, do lado das costas da mão, dando-lhe, de seguida, alguma folga. Depois e do lado interior da mão colocavam, horizontalmente, um outro caule, dobrando-se sobre este as duas pontas do primeiro que ficavam presas entre os dedos. De seguida colocavam um outro caule, também horizontalmente e paralelo ao anterior, dobrando, da mesma forma, as suas extremidades e procediam assim até obter seis ou mais caules horizontais sucessivamente dobrados nas pontas e que formavam o assento da cadeira. Retirada toda esta estrutura da mão, prendiam e amarravam em quatro as extremidades dobradas dos caules, que depois de cortadas do mesmo tamanho formavam os quatro pés da cadeira. Obtinham assim um produto final de belo efeito, ou seja, um brinquedo de rara singularidade, de notável beleza e de considerável fascínio
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PEDRADAS
“Quem tem janelas de vidro não deve atirar pedradas.
Passa um dia, outro dia e encontra as suas quebradas.”
Notável doutrina a que contém este adágio, muito utilizado antigamente na Fajã Grande. Numa sociedade onde todos se encontravam e reencontravam diariamente, onde todos conviviam e em que todos ocupavam os mesmos espaços, impunha-se o respeito pelo outro, o fazer-lhes o bem e não o mal. A convivência diária, a luta pelo pouco que cada um possuía, as guerrilhas, os mexericos, as queixas e, sobretudo, o malfadado hábito de se meterem na vida de uns e outros, ou até de se regozijar com o mal alheio, não garantiram uma sociedade equilibrada, sem guerrilhas, ódios e injustiças. Era necessário, pois, a instauração de um novo tempo, de um diferente modus vivendi, próprio dos que pretendem ser virtuosos e bons, não apenas evitando prejudicar os seus semelhantes mas até de os ajudar. Nesta sociedade, fechada, pequena e bastante limitada económica e socialmente, impunha-se a vivência em plenitude do princípio, primeiro e principal, de toda a moral natural: Bonum est faciendi maluque evitandum, ou seja, todos devemos Fazer o bem e evitar o mal.
Mas o adágio vai mais longe, lembrando que a prática deliberada e consciente do mal, mais cedo ou mais tarde voltar-se contra quem o pratica. Havia pois que reforçar a vivência da ética e tentar ir na prática quotidiana além da dimensão do proibitivo. Com efeito, ao citar este adágio pretendia-se não apenas desvalorizar as regras que proíbem atos contrários ao bem comum, mas sobretudo potencializar a prática do bem, do fazer algo pelos outros, de os ajudar. Este adágio, afinal demonstra que na Fajã Grande como em todas as outras localidades do mundo a educação para ética se deve fundamentar mais na dimensão do proibido, ou seja, naquilo que não se deve fazer, descuidando a dimensão do que se deve sentir e do bem que se deve fazer. A ética pela lógica da proibição legisla atitudes, neste caso através de um simples adágio, que na verdade devem ser tidas no nosso viver quotidiano, na nossa prática diária, no encontro com o próximo. Quem tem bom fundo, quem conhece a verdade, quem pugna pela dignidade, quem tem respeito pelo outro e, sobretudo, se for cristão deve tornar-se virtuoso, não esperando em nenhum momento pautar a sua vida pelas proibições mas sim nos princípios em que acredita. Entre estes está o respeito pelo outro. Nisto consiste a consciência moral. O adágio apenas tenta ajudar os menos capazes de atingir tal desiderato.
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AND THE WINNER IS PORTUGAL
Finalmente caiu o pano sobre o Campeonato de Futebol Europeu, o Euro 2016. And the winner is PORTUGAL Hoje, na verdade foi o dia que o Senhor fez, o dia de todas as decisões. Portugal e França disputaram, numa final inédita, o jogo que deu a conhecer o novo campeão europeu. Foi Portugal, após 120 minutos de jogo, que venceu a França por 1-0, com golo de Eder.
Recorde-se que as duas seleções tiveram percursos sensivelmente diferentes até chegaram à final de Paris. Portugal, na verdade, não começou da melhor forma, terminando a fase de grupos no 3.º lugar do grupo em que estava inserido, (Islândia, Áustria e Hungria) com três empates em três jogos, somando apenas três pontos. Nos oitavos de final, no sistema mata-mata a equipa lusa esteve um pouco melhor apesar de ter que ir a prolongamento para eliminar o seu adversário, a Croácia. Seguindo em frente, nos quartos de-final Portugal foi forçado ao desempate através da marcação de grandes penalidades para eliminar a Polónia. Só nas meias-finais é que Portugal venceu a partida nos 90 minutos regulamentares com uma vitória por 2-0 sobre o País de Gales.
Por sua vez a França teve um percurso mais vitorioso. Os gauleses terminaram a fase de grupos no 1.º lugar do Grupo A, com duas vitórias e um empate. Mas na fase seguinte revelaram algumas dificuldades para eliminar quer a Roménia, quer a Albânia visto que os golos das vitórias só surgiram em período de compensação, resolvendo, no entanto, todos os jogos no tempo regulamentar, incluindo a eliminação, nas meias-finais, da atual campeã do mundo, a todo poderosa Alemanha.
Lamentáveis as afirmações de alguns responsáveis e jogadores franceses, nomeadamente, as de Jérôme Rothen, antigo jogador da seleção francesa, que afirmou literalmente Portugal não tem hipóteses nenhumas na final e Renato Sanches não tem nenhuma visão de jogo. Outros franceses consideraram o jogo de Portugal nojento, muito faltoso e mau. Para os franceses, pelos vistos Portugal não merecia vencer este europeu. Razão tinha o treinador Português, Fernando Santos, quando na véspera declarou em tom jocoso, perante as insinuações dos franceses:
- Não me importo nada de na segunda-feira ler nos jornais franceses: “Portugal não mereceu mas venceu”.
Por sua vez a casa irlandesa de apostas Paddy Power, nas vésperas da final, deixou no seu site um apelo polémico
Querida França:
Por favor, por favor, por favor, vence Portugal e faz Cristiano Ronaldo chorar. Fá-lo chorar lágrimas salgadas.
Estariam os responsáveis destas afirmações simplesmente a recordar Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal” ou a pré-anunciar o que um jogador francês havia de fazer ao melhor jogador do mundo?
Verdade é que no fim do jogo as lágrimas de Cristiano Ronaldo, dos restantes jogadores e de todos os portugueses foram bem doces, simplesmente porque Portugal venceu a todo poderosa França e é o campeão da Europa.
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LENDA DAS FEITICEIRAS
Antigamente, na Fajã Grande muitas pessoas ainda acreditavam que existiam feiticeiras, pese embora a sua referência e as histórias que sobre elas se contavam, mais se destinassem a amedrontar as crianças do que a esclarecer os adultos. Pretendia-se, assim, amedrontar os mais pequenos, meter-lhes medo a fim de se tornarem mais submissas, mais dóceis e menos endiabradas. Algumas pessoas mais idosas contavam por vezes, que nos seus tempos de infância existiam feiticeiras, as quais saíam de casa, somente, entre a meia-noite e a uma da madrugada. Também se dizia que elas se encontravam nos cruzamentos dos caminhos onde dançavam nuas mas ninguém as conseguia ver, pois eram invisíveis e não se conheciam umas às outras. Quando desse a pancada da uma hora e elas não estivessem em casa, já não podiam regressar ou então se o tentassem fazer já não conseguiam não ser vistas nuas. Para se precaverem voltavam sempre um bocadinho antes de bater uma hora.
Contava entre as várias estórias que, certa vez, houve uma feiticeira que deixou que batesse a uma hora sem ir para casa e foi apanhada por um homem, toda nua que a reconheceu e viu que era sua própria mulher.
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OS LAVADOUROS DE MADEIRA
Embora situada numa zona não apenas de muitas grotas e ribeiras mas também de muitas nascentes, apenas na década de cinquenta a freguesia da Fajã Grande foi abastecida com rede pública de água. Mesmo assim e nessa altura muitas famílias não meteram água em casa, uma vez que o custo de tal adesão era muito elevado para as mais pobres, tanto no que à instalação de canos e torneiras dizia respeito como ao custo da mão-de-obra até da taxa a pagar mensalmente. Por isso até aos anos cinquenta e sessenta muitas mulheres eram obrigadas a deslocarem-se às ribeiras mais próximas para lavar a roupa. Mas para a maioria das casas as ribeiras ficavam bastante longe e perdia-se muito tempo em idas e vindas, pelo que eram possíveis apenas uma ou duas idas semanais aos locais onde se lavava, destinadas às roupas mais sujas, às peças maiores e mais difíceis de lavar. As roupas mais leves, as peças mais pequenas e menos sujas eram lavadas em casa, em selhas, indo-se se buscar água a uma fonte ou nascente mais próxima. Ora estas selhas tinham como anexo os célebres lavadouros feitos de madeira, muitos deles de fabrico caseiro outros encomendados nos carpinteiros.
Os lavadouros caseiros eram constituídos por uma grossa e pequena tábua de madeira, geralmente de cedro e de formato retangular. A parte inferior, que entrava na selha com água era cortada em forma de v, formando duas espécies de pés que se fixavam no fundo da selha. Num dos lados e um pouco acima dos pés a tábua era escavada, de maneira a formar uma espécie de regos muito próximos uns dos outros ou escarpas simétricas e sucessivas nas quais a roupa, depois de encharcada e ensaboada era esfregada. A extremidade superior da tábua era lisa a fim de que caso a mulher encostasse o peito não se magoasse ou ferisse.
Para o seu uso, bastava colocar a tábua transformada em lavadouro dentro da selha, fixá-la muito bem e esfregar a roupa como se um lavadouro de pedra ou de cimento se tratasse.
Mas o mais interessante para a ganapada miúda é que estes lavadouros quando não usados e colocados nas selhas com água se assemelhavam a um verdadeiro varadouro de parcos. Assim a selha cheia de água era o oceano imenso e infinito onde os pequenitos barcos feitos com pedacinhos de madeira transitavam e que depois eram arrastados pelo lavadouro acima a servir de varadouro e colocados em terra. O diabo era arranjar água para encher a selha… Perante essa dificuldade pedia-se à mulher que lavava a roupa que depois de terminar a sua tarefa não despejasse a água que, mesmo assim suja era o nosso oceano, com a vantagem de, no fim, depois de tanto patinharmos nela, ficássemos com as mãos lavadinhas e a cheirar a sabão azul.
Lavadouros de madeira1 Utensílio de grande utilidade para as mulheres e delirante brinquedo para as crianças, dos quais atualmente existem pequenas réplicas, vendidas como peças de artesanato.
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A VELHA E A LATA
Era uma velha
Que andava a varrer
Com a lata no rabo
Quanto mais a velha varria
Mais a lata no rabo batia
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DE ILHA DE SÃO DINIS A ILHA DO VINHO
Hoje sabe-se que, de acordo com documentos históricos, nomeadamente pelo testamento do Infante Dom Henrique, que a ilha do Pico, na época dos Descobrimentos Portugueses era designada por ilha de São Dinis. Estranhamente, algum tempo depois, nalguns outros documentos, nomeadamente na cartografia do século XIV, é denominada por ilha dos Pombos.
Acerca do seu primeiro povoador, que terá demandado a baía das Lajes por volta de 1460, Frei Diogo das Chagas refere o seguinte: "O primeiro homem que se pratica por certo haver entrado nesta Ilha para a povoar foi um Fernando Álvares Evangelho, o qual vindo a buscar a tomou pela parte do Sul, (…) saltou em terra onde se diz o penedo negro, e com ele um cão que trazia, e o mar se levantou de modo que não deu lugar a ninguém mais saltar em terra, e aquela noite se levantou vento, de modo a que a caravela no outro dia não apareceu, e ele ficou na Ilha com seu companheiro, o cão; e nele esteve um ano sustentando-se da carne dos porcos, e outros gados bravos, que com o cão tomava (pois o Infante quando as descobriu, em todas mandou deitar gados, havia nelas, quando depois se povoaram, muita multiplicação deles" Cf. Chagas, Frei Diogo. Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores.
Por sua vez Frei Agostinho de Monte Alverne, sugerindo que o povoamento primitivo se fez pela zona da Madalena e São Mateus, com colonos vindos do Faial, acrescenta e esclarece "Outros dizem que os primeiros povoadores foram os que mandou Job Dutra, da ilha do Faial, porque estando à sua janela, vendo esta ilha do Pico pela parte sul, mandou um barco de gente para a povoar por esta parte, onde hoje é a freguesia de São Mateus. E é esta ilha tão fragosa, que, povoando-a estes por esta parte e os outros pela outra, dois anos estiveram sem saberem uns dos outros, nos quais o capitão Job Dutra mandou pedir a capitania e a alcançou, e uns e outros povoadores se avistaram e festejaram muito." Cf. Frei Agostinho de Monte Alverne. Crónicas da Província de São João Evangelista.
No que ao seu governo diz respeito, em 1482, a ilha do Pico foi integrada na Capitania do Faial pela Infanta D. Beatriz, em virtude de Álvaro de Ornelas, seu primeiro capitão do donatário não ter tomado posse efetiva da ilha.
Em 1501, Lajes do Pico foi elevada a Vila e sede de concelho por el-rei Manuel. Por sua vez, São Roque do Pico tornou-se vila em 1542. A Madalena é a mais nova vila picoense apenas adquirindo esse estatuto em 1712.
Além da agricultura (trigo, pastel), da pecuária e da pesca, a economia do Pico, desde o início do povoamento, foi marcada pelo cultivo da vinha e a produção de vinho. Sobre elas, o Padre António Cordeiro escreveu: "O maior fruto, e mais célebre desta Ilha do Pico é o seu muito e excelente vinho, e quantas mil pipas dê cada ano (…) as outras ilhas, as armadas, e frotas, os estrangeiros o vão buscar, e o muito que vai para o Brasil, e também vem para Portugal; a razão deu-a já o antigo Frutuoso Liv. 6 cap. 41, dizendo que o vinho do Pico não só é muito, mas justamente o melhor, (…), porque é tão generoso e forte, que em nada cede ao que na Madeira chamam Malvazia; antes parece que este vence aquele, porque da Malvazia, pouca quantidade basta para alienar um homem do seu juízo, não se acomoda tanto à saúde; porém o vinho passado do Pico, emprega-se mais em gastar os maus humores, confortar o estômago, alegrar o coração, e avivar, e não fazer perder o juízo, e uso da razão, além de ser suavíssimo no gosto, e muito 'confortativo', ainda só com o cheiro; e por isso é muito estimado…" Cf. Pe. António Cordeiro. História Insulana das ilhas a Portugal Sujeitas no Oceano Ocidental.
A cultura da vinha na ilha do Pico foi apurada, ao longo dos séculos, com o auxílio, primeiro, dos frades Franciscanos e, mais tarde, dos Dominicanos. Por sua vez os Jesuítas, nos séculos XVII e XVIII também tiveram uma notável ação na cultura da vinha e no fabrico do vinho na mais jovem ilha açoriana, transformando-a e dando-lhe o estatuto de verdadeira ilha do vinho.
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PERDÃO
O António Tenente era um exímio pescador mas tinha um feitio dos diabos. Autoritário, impulsivo, rabugento, teimoso e, sobretudo, incapaz de perdoar ofensa que lhe fizessem. Anos a fio, na “Senhora da Ajuda”, à pesca da albacora, o afastamento prolongado da família como que o abrutalhara, filtrando-lhe a sensibilidade, arrefecendo-lhe os sentimentos, gravando-lhe, na alma, o restolho da solidão, da apatia e da indiferença. Tornara-se frio, solitário, insensível, implacável e, sobretudo, casmurro. Agora, apenas o mar e só o mar lhe domava os sentimentos e satisfazia os desejos. O mar, para o Tenente, parecia ter-se tornado numa paixão rude, num fascínio relutante, num encanto achaboucado. O mar era algo de que jamais se havia de separar e, mesmo agora, já trôpego e pouco afoito a aventuras em águas distantes e profundas, longe da costa, arrastava-se, até ao Cais e passava horas e horas ali, ora sentado sobre a rocha a olhar, sombriamente, o horizonte perdido, ora a pescar de pedra. Hábil e expedito, caniço bem aparelhado, peixe bem engodado e era um abarrotar de sargos, prumbetas, vejas, garoupas, castanhetas, salemas e um ou outro peixe-rei. Enchia a casa, a mulher pagava favores às vizinhas e ainda vendia uma ou outra cambulhada mais robusta e substanciosa.
O Tenente tinta três filhas. A mais velha, a Ermelinda havia-se perdido de amores pelo Augusto, o filho do Chico do Cabeço, ele, também, um velho e experiente pescador de traineira. O Tenente e o Chico, porém, não se falavam. Pior. Odiavam-se a tal ponto que nem se podiam ver. Enredos e discussões a bordo da “Senhora da Ajuda” geraram ameaças, despoletaram insultos e, sobretudo, cimentaram ódios, que, dificilmente, se haviam de dissipar. Ermelinda sabia-o e temia que o progenitor algum dia anuísse ao namorico. O coração, porém, fora mais forte. A simpatia inicial transformara-se em paixão e esta, em namoro. Afinal, ele, o Augusto, também a amava e muito.
Correram os dias, intensificou-se o namoro, divulgou-se pela freguesia a novidade, a qual, rápida e célere, foi parar aos ouvidos do Tenente. Muniu-se o facínora duma corda dobrada em quatro e esperou a filha, ao lusco-fusco, perante os choros e imprecações da mulher que, adivinhando a borrasca, implorava clemência.
Mal entrou Ermelinda em casa, surge-lhe, pela frente, o Tenente, furibundo e terrífico, de chicote em riste, indagando, em tom ameaçador:
- É verdade que namoras o filho daquele pulha? – Perante o silêncio comprometedor da rapariga, o Tenente insistiu, ao mesmo tempo que lhe assapava, como rito inicial da zurzidela, uma forte chicotada nas costas, com a corda que, momentos antes, dobrara em quatro.
Como Ermelinda continuasse calada, pese embora os gritos da mãe que a todo o custo tentava libertar a filha da fúria do pai, este, empurrando a mulher, assapou na rapariga uma nova vergastada e ainda uma terceira. A moça, por entre gemidos de dor e gritos de angústia, caiu por terra, esvaindo-se em sofrimento. Prostrada, ao lado, a mãe alvoroçara-se em choros e berreiros que em nada demoviam o facínora da sua pertinaz atrocidade. Encarando a filha, com os olhos a abarrotar de raiva, furioso e colérico, o Tenente ameaçou:
- Ou esqueces o filho daquele bandido para sempre ou sais por essa porta fora imediatamente.
Muito a custo, Ermelinda, lavada em lágrimas e arquejar em dor, levantou-se em silêncio, abriu a porta e saiu, enquanto o pai continuava a vociferar impropérios e injúrias.
Com o corpo dorido e a alma perfurada, Ermelinda foi procurar alento em casa dos pais do Augusto. Recebeu-a a mãe que o rapaz passava os dias no mato, a roçar. Saia alta madrugada, levava consigo um pedaço de bolo e queijo, uma garrafita de vinho e lá ia, trabalhando à jorna. Regressou já noite, surpreendendo-se com a presença de Ermelinda. O pai, ao lado, até parecia que saboreava com enlevo mesquinho o desprezo a que o Tenente botava a filha, vangloriando-se, cinicamente, de a ver ali, destronada, sofrida, humilhada, pedinte, afastada do aconchego familiar. Casasse o filho com quem quisesse mas ali em casa, rebento de tão ruim cepa, filha daquele Caim, nunca havia de pernoitar, nem lhe havia de lhe chegar uma febra que fosse de comida, nem uma coberta de cama, ou outro provento qualquer.
Fez-se o casamento à socapa, sem boda e sem enxoval e foi o Aníbal, para quem o Augusto, habitualmente, trabalhava e que lhe alojara a moça, que lhe arranjou uma casa, velha e decrépita, um pardieiro, onde, apesar de tudo, poderiam, ao menos, colocar uma barra, uma mesa e acender o lume. Nesse dia o Tenente, a propósito de renovar a cédula, partiu para o Faial na lancha da manhã e voltou na da tarde…
Envoltos em penúria, abalroados por privações mas dignificados pelo amor, sem terras, sem vinhas, sem gado, com parcos recursos, mas fugindo aos vitupérios dos progenitores, Augusto e Ermelinda fixaram-se ali, recuperando e melhorando, aos poucos a velha casa que o amigo lhe emprestara.
Chegou o primeiro rebento. Novamente os ouvidos do Tenente se aferroaram com a novidade. Vociferou, uivou, recalcitrou e protestou, jurando que neto do pelintra do Chico do Cabeço nunca lhe haveria de entrar em casa.
Certa tarde, porém, ao passar junto ao pobre casebre onde morava a filha, parou, espreitou e viu. Viu que um garotito, talvez já com dois anitos, saltava, pinchava, corria com alegria e deslumbramento como se fosse a criança mais feliz do mundo. Cabelos loiros e encaracolados, olhos azuis, rosto muito branco e pele macia, a criança aspergia docilidade, irradiava ternura, emanava inocência. O Tenente, não se conteve. Impulsivamente, saltou o muro e viu-se no pequeno quintal, junto à porta do humilde casebre. O petiz, como que descobrindo, no rosto calejado do velho, uma onda de ternura tão grande como o mar, pressentindo que aquele homem o desejava abraçar, correu na sua direcção, de braços abertos, agarrando-o e abraçando-o, como se sempre o tivesse conhecido. Lágrimas grossas, amargas, dolorosas mas emotivas escorriam dos olhos e cobriam o rosto calejado do Tenente, que, simultaneamente, também se abraçava ao neto, idolatrando-o na sua cândida inocência.
E quando Ermelinda, apercebendo-se de que alguém lhe rondava o casebre, assumiu à porta, chamando o “António”, o pai voltou-se. Ela vendo-o embebido naquele idílio, também se dirigiu para ele de braços abertos, exclamando:
- Está perdoado, meu pai!
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MARGARIDA BRUM
Margarida Brum nasceu nos Açores e licenciou-se em História na Faculdade de Letras de Lisboa. Professora há mais de vinte anos, orientou estágios, colaborou com vários departamentos do Ministério da Educação e foi co-autora na elaboração de vários programas do Ensino Secundário. Literariamente tem-se revelado como ficcionista.
Obras publicadas: Enquanto Esta Música Durar És Só Minha e Em Casa de Estranhos.
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O FIO
Todos os anos, nos meses de Março e Setembro, os Cabeças, através de um edital afixado na porta da igreja da Fajã, com duas ou três semanas de antecedência, anunciavam o dia de Fio.
De imediato, todos os que tinham ovelhas bravas no baldio preparavam com acentuado denodo e excessivo desvelo o dia em que mais de metade da freguesia partiria para o Mato a fim de conjuntamente proceder à recolha e tosquia dos ovinos.
Aos homens competia juntar o gado, tarefa nada facilitada por parte dos animais que frequentemente se aventuravam em fugas estonteantes por entre fragas e grotões, a que nem os cães punham cobro. Às mulheres, por sua vez, competia a preparação e o transporte da comezaina, e não era pouca. É que o ajuntamento dos ovídeos iniciava-se pela madrugada, a tosquia terminava ao lusco-fusco e o regresso a casa prolongava-se pela noite dentro.
No dia marcado todos se levantavam alta madrugada. Os homens e os rapazes caminhavam para o mato, ainda noite escura. Na véspera, reunidos com os Cabeças, haviam combinado e formado vários grupos. Um, o dos mais novos e expeditos, ia pela Fajãzinha, subindo a Rocha da Figueira até às lagoas. Aí dividir-se-ia, entrando uns pela Burrinha e outros pela Água Branca. Os restantes grupos seguiam pela Rocha: um com destino ao Queiroal, outro ao Morro Alto e Pedras Brancas, enquanto o último, que incluía os mais velhos, ficaria na zona do “curral”, sobranceira ao Rochão Grande, a fim de controlar e afunilar a chegada dos ovinos e evitar o mais possível a sua fuga. Acompanhados pelos cães, protegidos do frio do Mato por grossos casacos, amparados a enormes bordões de araçá e saco a tiracolo partiam em bandos, arfando em loucas correrias e longas caminhadas, proferindo, em colaboração com os cães, uivos alucinantes e pungentes. Só assim era possível ajuntar as ovelhas bravas em toda zona do baldio, desde o Queiroal à Água Branca e conduzi-las até ao “curral”.
Em casa as mulheres enchiam cabazes e cestos de vimes brancos, usados habitualmente para ir lavar a roupa à ribeira, com pratos e tigelas a que sobrepunha postas de peixe frito, torresmos e toros de linguiça, talhadas de inhames, quartos de bolo do tijolo, fatias de pão de milho, pedaços de queijo, um bule cheio de café com leite, algumas maçãs e as tesouras de tosquiar.
Mal o Sol começava a raiar, iniciavam a longa e difícil caminhada em direcção ao “curral”, a fim de que chegassem a tempo para que os homens tivessem a primeira refeição logo a seguir à recolha das ovelhas.
Era no Alagoeiro que as mulheres, esperando umas pelas outras, juntamente com as crianças, se juntavam para iniciar a íngreme subida da Rocha. Carregando pesados cestos e cabazes, ajeitados à cabeça protegida com uma rodilha de pano, acompanhadas pelas crianças que levavam as cestas e os cabazes mais leves, formavam uma enorme e compacto pelotão, em direcção à Ribeira. Aí voltavam à esquerda para o lado da Figueira, junto ao chamado largo do Arame. Em breve entravam na primeira das trinta e duas voltas da Rocha que, desenhadas em ziguezague, somavam degraus após degraus, num escalar contínuo, íngreme e quase infinito. O pelotão, logo ao iniciar a subida, começava a desfazer-se, transformando-se numa fila compacta que se estendia entre o verde dos socalcos e das ravinas, o negro dos andurriais e dos penedos, como que delineando um filamento serpenteado e colorido que avançava lentamente.
Para trás ficavam as casas, os campos amarelados de milho e o oceano azul e infinito. Ao perto as relvas de um verde muito verde, entrelaçadas entre florestas escuras de faias, incensos e criptomérias, por onde deslizava a Ribeira das Casas.
Ao chegar à Furna do Peito, as mulheres que seguiam à frente paravam. Era um dos lugares da Rocha institucionalizado para o descanso. A furna era uma enorme concavidade encravada num sítio mais saliente e pedregoso da Rocha e cuja forma se assemelhava a um gigantesco peito humano, razão óbvia do seu epíteto. Era lá que os homens descansavam ou se abrigavam e protegiam das intempéries, quando desciam com as latas de leite penduradas em paus de araçá ou quando subiam com o gado. A maior parte das mulheres entrava, poisava os cestos e cabazes no chão e sentava-se a descansar, enquanto muitas outras permaneciam nos degraus circundantes.
Pouco depois a subida recomeçava A coluna ora caminhava em descampados rectilíneos, ora escalava degraus e degraus feitos de pedras rústicas, protegidos por pequenos bardos de queiró e vinhático. A Fajã, agora, surgia como numa vista aérea, onde se divisava o vermelho escuro dos telhados, misturado com o verde amarelado das courelas. Ao longe a mancha negra do baixio, recortada por caneiros e enseadas, onde as vagas crespadas se desfaziam em constante e esbranquiçado rodopio. O oceano, mais azulado, surgia calmo e como que inclinado, a despejar-se sobre a freguesia. No meio e ladeado pela Baixa-Rasa, o ilhéu do Monchique, maior, mais negro e muito próximo.
As voltas da Rocha, no entanto, sucediam-se umas às outras como que teimando em não ter fim. A própria coluna já se dividia e subdividia em pequenos grupos. Algumas mulheres maldiziam a sua sorte e arrependiam-se de ter saído de casa, enquanto outras não o declaravam por vergonha. Na volta do Descansadouro, onde havia uma outra furna mais pequena do que a do Peito, as mulheres voltavam a poisar os cestos sobre uns muros ali existentes, efectuando um segundo e merecido descanso. Era o meio da subida.
Pouco depois reiniciavam a marcha, cada vez mais amarga e mais cansativa.
Finalmente, chegavam à retemperadora Fonte Vermelha! Para além de saciar a sede, na que se dizia ser a melhor água da ilha das Flores, era a certeza de faltarem poucas voltas para o cimo da Rocha.
As mulheres de rosto avermelhado como maçãs apodrecidas, a limpar suor e a proferir imprecações, retiravam os cestos da cabeça, guardavam as rodilhas de pano multicolor debaixo do braço e formavam fila diante da fonte de água miraculosa. Miraculosa porque balsamizava o cansaço, suavizava o esgotamento físico resultante de tão longa e íngreme subida e retemperava as forças e o ânimo para continuar. A água jorrava, incessantemente, de uma pequena e tosca bica, encravada num tufo da Rocha, onde cada um colocava uma folha de incenso ou de sanguinho, para ter acesso mais higiénico e eficiente ao consumo do cristalino e diáfano fiozinho.
Consoladas com o hausto milagroso, muitas mulheres exclamavam:
- Isto é que é um consolo! Foi posta aqui por Deus, para nos retemperar as forças! Pena é estar tão longe das casas! Uma fonte assim na Praça é que era… Nem o Rossio, na Fajãzinha tem água tão boa e tão fresca,
Todas bebiam, muitas voltavam a beber e a fonte nunca secava. Corria sempre, dia e noite, jorrando um frágil mas contínuo veio, lá bem do interior da terra. Mesmo que ninguém a procurasse para beber, a água continuava a brotar e caía solitária mas sussurrante, formando, no chão, uma poça que, depois de cheia escoava pelos degraus e encostas da Rocha, transformando-se num pequeno regato.
O pelotão aglomerava-se de novo. A paragem junto à fonte proporcionara às mais retardatárias ocasião para se juntarem à coluna e reiniciar a marcha em conjunto. Finalmente a minúscula furna dos “Dez Reis”, a indicar que faltavam apenas dez voltas para a cancela do cimo da Rocha. Era o fim da subida.
Chegar ao cimo da Rocha era um alívio. O cansaço porém convidava a novo descanso, logo a seguir à cancela do Couceiro, onde ao longo dos tempos os homens que por ali passavam diariamente haviam criado uma espécie de logradouro. Junto a uma alta parede, que os abrigava dos ventos frios do Norte, haviam construído uma bancada de pedra tosca onde se sentavam a descansar, a conversar e a esperar uns pelos outros para depois iniciarem em conjunto a longa caminhada que os esperava até às longínquas relvas do Queiroal, da Burrinha ou da Água Branca. Ali o ar era puro, fresco e exalava um cheiro a poejo e a erva-néveda. Além disso, as que iam mais aliviados do peso dos cestos e cabazes podiam apreciar uma vista deslumbrante. A poente vislumbrava-se a ampla fajã, delimitada pela Rocha e pelo oceano. Ao longe, a enorme planície da Fajãzinha, com um alcantil sobranceiro, donde irrompiam cascatas de um esbranquiçado flavescente que, ora se perdiam entre o arvoredo, ora se salientavam nos socalcos das ravinas. Lá longe o casario disperso, a perder-se entre os cerrados de milho e os prados verdejantes. Depois a floresta de um verde escurecido onde se escondiam as poucas casitas da Cuada. Finalmente, mais ao perto, a Fajã, com as casinhas aninhadas junto à igreja e protegidas pelo Pico da Vigia e pelo Outeiro. Cercando o enorme semicírculo, o oceano, azul, infinito e cada vez mais inclinado, onde calmo e ronceiro navegava um enorme e esbranquiçado paquete que se encaminhava-se na direcção do Monchique e da Rocha da Ponta.
Pouco depois a coluna começava a deslizar sobre alfombra fresca e perfumada das relvas, tornando a caminhada mais suave e menos perigosa do que a da Rocha. As casas da Fajã e o Oceano haviam-se perdido de vista. Agora só o verde silencioso e fresco do Mato. Ao fundo o Queiroal povoado de relvas, separadas por tapumes de hortênsias multicolores. Mais aquém, a Ribeira das Casas, na sua infância, com o seu enorme, temível e fundíssimo Caldeirão e, mais ao perto ainda, o Calhau do Touro, que nos dias de vento forte emitia aulidos semelhantes aos dos bovinos, razão porque granjeara aquele nome estranho e esquisito.
Com o Sol já quase a pique o pelotão atingia o tão almejado portal que dava da relva do Bacelar para a do Fragoso, onde se situava “o curral” das ovelhas. Separava-as uma enorme cancela, feita de paus de cedro, pregados uns nos outros, em rendilhado pouco simétrico, que rodava sobre ganchos de madeira encravados numa grossa parede e fechava-se do lado oposto com uma enorme e desconexa cravelha. Logo a seguir o “curral”, um fosso rectangular, cavado num canto da relva. Num dos extremos tinha um portal de pedra, que alguém já destapara. Precedia-o um enorme átrio, também cavado na relva e que se ia afunilando até desembocar no Curral.
Ao chegar junto do “curral” das ovelhas, as mulheres poisavam os cestos e os cabazes sobre a relva demarcando o território necessário à colocação de utensílios e gado. As mais lestas corriam para apanhar as áreas melhores e mais próximas do “curral”, enquanto as outras escolhiam os sítios mais abrigados. A relva perdia o verde e transformava-se num tapete multicolor, salpicado de pessoas, de toalhas, de cestos e de cabazes.
Os grupos de homens que haviam caminhado de manhã, regressavam agora juntos, com o gado, enquanto outros formavam uma espécie de cordão com o fim de impedir a fuga dos ovinos. Uma enorme algazarra, misturada com o latir dos cães, começava a ouvir-se. Os grupos haviam-se juntado, no cimo da ladeira da Burrinha e conduziam um enorme rebanho do Rochão do Junco ao Rochão Tamujo, onde ficava o “curral”. De repente, este enchia-se e transformava-se num espesso e denso manto negro e branco. Um dos cabeças fechava o portal e dava ordens para que todos saíssem.
Os homens esfomeados, a arfar cansaço e com as roupas encharcadas de suor e humidade procuravam familiares e comida. Todas as famílias se sentavam ao redor dos cestos petiscando as diversas vitualhas que até ali tinham sido transportadas.
Depois de retemperadas as forças com a primeira refeição, homens, mulheres e crianças chegavam-se para a orla do “curral”. Uma vez dada a autorização, cada qual entrava no “curral” e procurava os animais que tinham assinalado nas orelhas o sinal denunciador de lhes pertencer: “Na direita, forcada e troncha com três mossas. Na esquerda, troncha fendida com mossa”.
É que cada família da freguesia, possuidora de ovelhas bravas no baldio, tinha, por tradição hereditária, um sinal constituído por um conjunto de marcas diversificadas nas orelhas dos animais, que os identificavam como sua pertença. Assim os homens e os rapazes desciam ao curral e procuravam o seu sinal nas orelhas de quantos ovinos lhes passavam pelas mãos, até encontrar os que lhes pertenciam. Depois, amarravam-lhes pés e mãos e entregavam-nos a um familiar que os ia, sucessivamente, aconchegando, no sítio que inicialmente demarcara, enquanto o curral se ia esvaziando lentamente. Por fim ficavam apenas os cordeirinhos e uma pequena quantidade de carneiros e ovelhas, que haviam escapado às recolhas anteriores.
Em seguida, os homens, regressando aos seus locais, munidos de tesouras bem amoladas, iniciavam a tosquia, enquanto as mulheres enchiam a lã em cestos e sacos.
Uma vez tosquiada, cada ovelha era testada: se não desse leite, libertava-se na direcção do baldio, caso contrário era sinal de que tinha cria a qual, muito provavelmente, estaria no “curral”. Era necessário procurá-la e só a mãe a poderia identificar. Por isso os donos amarravam aos pescoços das presumíveis progenitoras lenços ou panos de cores diversas, atiravam-nas de novo para “o curral”e colocavam os mais pequenos à espreita. O vigia nunca podia perder de vista a sua ovelha a fim de identificar a cria logo que mamasse na mãe. O dono saltava para o curral e apanhava ovelha e cria, desenhando, nas orelhas desta, as marcas que a identificariam como sua pertença. No próximo Fio, já feita carneiro ou ovelha, seria facilmente identificado pelo proprietário.
Por vezes era necessário a intervenção dos cabeças para julgar os batoteiros que se apoderavam de crias que não lhes mamavam nas ovelhas, negando-lhes, assim, o direito às que de facto não lhes pertenciam.
Tosquiadas todas as ovelhas, e despejado o curral, homens e mulheres voltavam a sentar-se na relva amachucada por pessoas e gado para novo repasto. Depois, carregando sacos e cestos de lã e um ou outro carneiro para abate, iniciavam o regresso a casa, calcorreando atalhos e veredas, até ao cimo da rocha. Finalmente a descida do famigerado alcantil, enquanto o Sol amarelecido e avermelhado se ia escondendo no horizonte até o dia escurecer por completo.
Dento em breve chegariam as noites longas de Inverno e os serões, durante os quais se cardava e fiava a lã. Enquanto os homens batiam a sueca, algumas mulheres, puxando as cardas, transformavam a lã em fofas pastas, enquanto outras, rodopiando o fuso com destreza, transformavam as pastas em fios que, depois de dobados, ou entravam na urdideira e mais tarde no tear para se tecerem mantas e cobertores ou eram tricotados por mãos mágicas transformando-se em casacos, sueras e peúgas.