PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NOVEMBRO (DIÁRIO DE TI ANTONHO)
Para mim este mês de novembro é um dos mais tristes do ano. Nunca me agradou lá grande coisa. Para além de ser um mês em que os campos estão quase desertos e muito pouco produzem é um mês escuro, desolado e muito triste. Não há flores nem frutos, a não ser as castanhas, e as folhas das árvores tornam-se amareladas e caem. Novembro é também o mês durante o qual na igreja da nossa freguesia se celebram as novenas das almas, durante as quais se reza e se recordam todos os mortos desta freguesia desde do cimo da Assomada até ao fim da Via d’Água. Todos os dias o nosso pároco invoca os defuntos de todas as casas, uma por uma…
O mês de novembro é pois um mês de luto e de tristeza. Quando eu era criança até me assustava ao ver, à noite, na nossa igreja muito escura, aquele cadafalso coberto com um pano negro, debruado a amarelo. O pároco durante as cerimónias também se vestia com paramentos pretos, assim como o povo vestia roupas escuras, sobretudo os mais velhos. Tudo na igreja estava envolto num ambiente fúnebre e sinistro, que causava susto às crianças e contribuía para a tristeza que se estampava nos rostos dos adultos. Além disso todos os dias, à noite, a fim de chamar o povo para as novenas e orações, os sinos da igreja dobravam a finados, como se tivesse morrido alguém. Diziam os nossos avós que era o enterro do velho Laranjinho.
Durante as novenas, umas vezes em português outras lá nos arrevesados latins, o pároco só falava do inferno e das penas que lá havíamos de sofrer se morrêssemos em pecado. Que susto e que tormento!
- “Libera animus omnium fidelium defunctorum de poenis inferni. – Proclamava nos latins. E acrescentava - Requiescant in pacem! Ao que o respondia o povo:
- Amen!
Outras vezes terminando o sermão, o pároco dizia em português:
- Livrai as nossas almas das fauces do leão, não as engula o abismo e não caiam nas profundezas tenebrosas do inferno”.
Na Fajã Grande sempre houve uma devoção muito grande às almas do Purgatório. Para além de se recordarem com sufrágios e orações especiais durante este mês que lhes era dedicado, todas as casas, no dia da matança do porco, guardavam a língua e traziam-na para a igreja, a fim de ser arrematada. Com o dinheiro de todas as línguas o mordomo das almas mandava celebrar missas por todos os defuntos da freguesia. No dia um era feita uma derrama pela freguesia, na qual se juntavam sacos e sacos de milho, cujo dinheiro da venda tinha o mesmo fim.
Por tudo isto é que este mês de novembro era um mês especial dedicado particularmente aos fiéis defuntos. Mas muito, muito triste!
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A BATALHA DE OURIQUE
Pedro deambulava, solitário, a custo e timidamente, por um caminho ermo, ladeado por árvores gigantescas e sombrias. Aqui e além, alguns transeuntes, mudos, de olhar esbugalhado e ansioso, embrulhados em farrapos acinzentados, amparando-se a grossos bordões, caminhavam vagarosamente. À medida que prosseguia, o caminho ia-se tornando mais apertado e esconso. Finalmente uma cancela, na qual Pedro se pendurou, espreitando para o interior. À sua frente uma enorme campina, despovoada sob um céu pardacento e acinzentado. Lá ao longe bardos de hortênsias floridas, azuis, rosadas e brancas, como que a protegê-la de invasores e separá-la de outras pequenas propriedades. No centro um gigantesco pináculo de basalto negro simulando uma gigantesca catedral. Ao redor uma infinidade de pequenos calhaus, dispostos quase simetricamente ao redor do pináculo faziam lembrar pequenas casas, simulando uma pequena cidade medieval. As próprias ruas e vilelas estavam perfeitamente desenhadas, pese embora se mostrassem muito estreitas, enviesadas e, obviamente, desertas. Um enorme silêncio pairava no ar.
Pedro entrou e subindo o pináculo sentou-se lá bem no alto, como se tivesse subido às torres sineiras da fictícia catedral. Nesse preciso momento, rompendo o silêncio das vielas, entrou uma barulhenta mesnada de besteiros que, exausta, terminara uma enorme e sangrenta batalha. Comandava a mesnada um valoroso cavaleiro que lutava ao lado de um príncipe, combatendo os infiéis sarracenos que teimavam em não o deixavam que o príncipe conseguisse alargar as fronteiras do seu pequeno reino, na tentativa de obter definitivamente a sua independência.
As hostes regressavam apressadamente à cidade. Vinham desfalcadas e a arfar de cansaço mas felizes. O príncipe, os fronteiros, os ricos-homens e senhores de pendão e caldeira, chefes de mesnadas, os cavaleiros, peões e peonagem chegavam exaustos mas plenos de regozijo e satisfação. Esmar, rei de Santarém, juntamente com outros quatro reis haviam sido derrotados, no dia 25 de Julho, dia do glorioso mártir São Tiago, sem apelo nem agravo, em Ourique, numa memorável batalha em que o inimigo incluía no seu ciclópico exército forças conjuntas das praças mouras de Sevilha, Badajoz, Évora e Beja, para além das de Santarém.
A viagem, de regresso à deserta cidade, foi longa e o destino dos guerreiros diferente. O príncipe havia como que sido obrigado a suspender a peleja e a curvar-se perante o monarca tirano, assinando, com ele, um tratado de paz, desistindo, assim, das pretensões de se tornar rei independente, prestando vassalagem ao inimigo.
De repente soaram três ribombares de canhões, seguidos de outros três. Pedro revolveu-se na cama e acordou estrebuchado. Era a mãe que o chamava para ir levar as vacas ao Outeiro Grande. Só depois havia de seguir para a escola. Talvez a senhora professora o chamasse para prestar contas do que, na lição de História, explicara na véspera – A Batalha de Ourique.
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A SOMBRA DAS ORQUÍDEAS
Uniu-os um ocasional e imprevisível destino. Ele viera passar férias a Lisboa, a casa duma irmã que tinha residência na Travessa de Ceuta. Ela morava ali perto, na Rua do Arco do Cego.
Foi uma manhã inolvidável, na piscina dos Amigos de Vénus. O pai dela, Agapito Reboredo, era sócio do grémio e um dos membros mais destacados da direção. Ela tinha entrada gratuita e, lá dentro, gozava privilégios e regalias das quais, por nada deste mundo abdicava. No epicentro das suas opções estavam os banhos na piscina e os bailes em dias de festa. Ele, ilhéu nativo, sedento de mar e de praia, também desejoso de banhos que a enormíssima e industrializada Lisboa lhe negava, optou pela piscina mais próxima, a dos Amigos de Vénus. Uma amiga dela que o conhecia e sabia-o açoriano informou-a. A sua estirpe, também açórica, foi motivo de aproximação. Coincidência das coincidências! A ilha era a mesma e ele até conhecia, embora vagamente, alguns familiares dela. A amizade solidificou-se. Além disso, ela soube-o deslocado, sozinho, desocupado, quase perdido na enorme urbe ulissiponense. Necessitava de alguém que o acompanhasse, que lhe ajudasse a tornar mais atrativos e aliciantes os dias que havia de passar na capital. Ela estava ali para isso. Contasse com ela.
Nadaram e mergulharam ao lado um do outro, dependuram-se no mural da piscina, com displicência e à vontade, em amena cavaqueira. Tudo nele a empolgava e ele sentia por ela uma desusada e estranha atração.
Chamava-se Marilda e era de uma beleza rara e invulgar. Olhos ligeiramente rasgados, negros, espetados num rosto acetinado, branco e macio, banhado por convulsões atraentes e dulcificantes. A boca um mito de sublimidade a abrir-se com deslumbrante suavidade, a aspersar um sorriso doce, macio e atraente. O corpo esbelto, elegante, altivo, fascinante e sedutor.
No dia seguinte voltaram às instalações do grémio. Desta feita, juntos. Por condescendência do pai ele nem precisava pagar a entrada. Era o que faltava! Voltaram à água, aos mergulhos, à conversa no mural da piscina, onde os seus corpos seminus e gelados, emocionalmente, se tocaram. Ele sentiu um enorme arrepio. Pela primeira vez sentia o aveludado, sedoso e sublime de um corpo de mulher. Nova investida por parte dela que, assim dava mostras de que o queria, de que tinha uma enorme vontade de amarfanhar para si, de o envolver, de o amar. Ele excitou-se ainda mais quando ela, talvez por acaso, talvez propositadamente, lhe encostou a coxa direita aos genitais. Foi como se um enorme abalo removesse avassaladoramente as águas calmas e sossegadas da piscina. Um frémito melífluo, alienígena e arrebatador assolou-o perturbadoramente.
No regresso convidou-o para entrar em sua casa. Que não tivesse pejo! Os pais não estavam mas havia, sempre, por ali irmãos mais novos a entrar e a sair. Aliás, sabia que os pais, à tardinha, ao regressarem do trabalho, teriam muito gosto em conhecê-lo. Tinham manifestado esse desejo, na véspera, quando lhes falara dele.
Anuiu. Foi uma tarde de encanto e de sonho! Mostrou-lhe os recantos da casa que, a partir de agora, havia de considerar como sua. Levou-o para o seu quarto e permitiu que se deitasse na sua cama. Passearam pelo jardim contíguo às traseiras do velho casarão, em desusado contubérnio. Tudo os unia, tudo os fascinava. Tudo nele a atraía, tudo nela ele desejava. Chegaram os pais, Foi tão deslumbrante o fascínio que o convidaram para jantar. Logo no primeiro dia! Chegou a casa, tardíssimo, com as inerentes preocupações de quem o aguardava, cuidando que se havia perdido nos meandros da gigantesca e labiríntica capital.
Voltaram à piscina no dia seguinte e em todos os outros dias. Cada vez mais unidos, mais deslumbrados e, aparentemente, mais apaixonados. Foram uns dias singulares, aqueles. Num agosto seco e nebuloso mas atrativo e sorridente. As manhãs na piscina com as águas muito quietas e, por vezes, aloiradas por uma nesga de sol que lhe entrava de sudoeste, a agitarem-se, apenas mas permanentemente, com as envolvências descomunais e transviadas que exalavam dos seus corpos, com os murmúrios silenciosos mas muito vivos e persistentes dos seus desejos recíprocos. Ao lado, a lufa-lufa da cidade, com as pessoas a zumbirem, os carros a agastarem-se e o sol a correr, como um louco, que deseja afogar-se no Tejo. Ao longe, as cadeiras do poder a estuporarem os assentos a partirem os varões laterais, enraivecidas com o azul deslumbrante e bonançoso de cada madrugada. Desesperavam os mafarricos da ordem inócua, os pregadores da inocência camuflada, os predadores das aventuras de inocentes paixões. Senhores da inveja redutora! Donos do ódio rastejante! Como serpentes esperavam, à socapa, a inocência despretensiosa da presa sobre a qual haviam de cravar as suas garras e lançar o seu veneno malévolo, horripilante, desolador e mortífero.
Era domingo. Ele ia subir ao pódio a fim de desenfrear a acutilância da sua indomável singularidade. Consagrar-se-ia com arquétipo da excelência. Temia e tremia. Foi ela quem o ajudou. O sucesso bateu-lhe à porta, transpôs os umbrais da superioridade, rondou a esfera da excelência e consagrou-se exageradamente, com a agravante de acicatar ainda mais a inveja reinante e rondante.
Ele agradeceu-lhe. Sem ela não subiria aquele píncaro. Para além de bonita, bela, sublime ela era douta, sensata, competente. Uma senhora!
Foi numa tarde em que regressaram mais cedo da piscina. O sol ainda não se esquivara mas o dia anunciava um morrer morno, tristonho e embaciado. Estavam sós. Ela deu-lhe a mão e conduziu ao jardim que ficava nas traseiras da mansão. Sentaram-se muito juntos numa campânula ornada com a sombra de orquídeas gigantes. Corria uma aragem, serena, fresca e deslumbrante. Ela agarrou-se muito a ele e aos poucos foi deslizando, até sentar-se no seu colo. Os corpos colados, arquejantes, silenciosos. Sem que lhe desse tempo, sobre ele despejava algo de inédito e insólito! Cobria-o com uma dádiva, generosa e doce. Uma entrega total! Um silêncio sublime! A redoma de cristal perfumada a alecrim, onde desde há muito o haviam enjaulado, partia-se, repentinamente. O chão revolvia-se em convulsões persistentes e enigmáticas. As árvores, ao redor, balouçavam com frémitos indizíveis e a luxúria de um ou outro pássaro mais arrogante cerceava o perfume dos muros adormecidas e cobertos de limos verdes. Era a hora do silêncio eterno, etéreo e etérico.
Ela, por fim, desfazendo aquele sopro de silêncio indomável, olhou-o enternecida e risonha. Amavam-se. Amavam-se desastradamente. Encandeando os olhos um no outro, regressaram ao silêncio. Uma, duas, muitas vezes. Até ao resto da tarde, até que o sol, já frouxo e amolecido, fenecesse por completo.
Regressou a casa, louco. Uma abóboda escura, indecisa, tremenda, amortalhada de orquídeas em flor, cobria-o. O rosto afogueara-se de uma áurea, indisfarçável e denunciadora. Marilda, agora com os seus lábios sedosos, ávidos de entrega e senhores de tão doce sublimidade, não lhe saía do pensamento. Cegava-o por completo. Desejava ardentemente chegar ao dia seguinte. Não havia de esperar pelo recanto das orquídeas. A partir de agora era a piscina, o quintal, o quarto dela, o jardim da cidade que ficava mais próximo, para onde programavam passeios em fim de tarde. Agora que lhe tocara o corpo, que lhe saboreara os lábios, que se envolvera com o seu perfume, que lhe sentira o arfar dos seios e até lhe afagara o cetim dos fémures, ela parecia-lhe cada vez mais próxima e, sobretudo, mais bela, mais atraente, mais pura, mais digna, mais sedutora. O rosto macio e acetinado esbanjava doçura. O corpo, belo e sedoso ombreava uma pureza divinal. Era verdadeiramente bela. E ousava supor que para ela, ele próprio também não lhe era indiferente, embora nunca o confessasse, antes o ocultasse com desvarios audazes e falaciosos.
Os pais não desconfiavam, ou se desconfiavam não se importavam rigorosamente nada. Num passeio a Sintra, simulou indisposição. Impunha-se regressar a casa, imediatamente. Ele havia de a acompanhar… Nem um nem outro dos progenitores se opôs e regressaram, os dois, sozinhos, como se fossem um do outro. Numa noite de sonho!
Começaram os passeios mais frequentes ao jardim da cidade que ficava perto da Arco do Cego. Era um lindo jardim com uma descomunal riqueza botânica, onde passavam as tardes, num doce enlevo, aureolado pela frescura das sombras dos arvoredos, pelo emaranhado dos seus ramos, o verde das suas folhas, o silêncio dos seus troncos ou encafuados nos labirintos das suas raízes gigantes. Por vezes regressavam ao silêncio, numa troca recíproca de beijos e carinhos. A paixão recíproca, una e indivisível avançava avassaladoramente. Ambos sabiam, mas nenhum o confessava. Sem nunca falarem, sabiam ambos que se amavam.
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AMANHÃ É DOMINGO
Amanha é Domingo
Toca o sino
O sino é de ouro
Mata-se o touro
O touro é bravo
Ataca o fidalgo
O fidalgo é valente
Defende a gente
A gente é fraquinha
Mata a galinha
Para a nossa barriguinha.
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A SEGUNDA CASA DO CIMO DA ASSOMADA, DO LADO DO OUTEIRO
Na segunda casa da Rua da Assomada, do braço esquerdo do ípsilon que, lá bem no cimo, junto ao Vale da Vaca, a rua formava, ramificando-se em duas vielas, no caminho que dava para as terras de cultivo, de mato, para as relvas, para o Covão e Outeiro Grande, para a Quada, para os Lavadouros e terminava no Curralinho, já muito próxima da Ladeira do Covão e como que abrigada pela encosta da Pedra d’Água pertencia à Marquinhas José Fragueiro. A casa situava-se na curva ao lado do Palheiro do Tomé e como que estava enfiada numa espécie de buraco muito abaixo do nível do caminho. A dona era uma senhora muito bondosa mas doente e que vivia pobremente e sozinha. Para além de não ter terras, nem dinheiro, tinha uma doença incurável, o que se agravava por não ter recursos com que se tratasse: uma das pernas estava, tão inchada, tão inchada que quase ultrapassava em grossura o diâmetro da sua própria cintura. A sua casa era muito pobre, não tinha dinheiro para o petróleo, nem para os fósforos, nem para a farinha, nem para o café, nem para nada, por isso alumiava-se com a luz do lume e alimentava-se com o que cultivava numa pequena courela e do que as pessoas lhe ofereciam. Como eu passava muitas vezes por ali quando ia levar as vacas ao Outeiro Grande, via-a frequentemente ou sentada sozinha nos degraus da casa ou a juntar garranchos no caminho, derrubados pelo vento ou deixados cair pelos molhos dos transeuntes e com os quais iria acender o lume. Por vezes parava um pouquinho, pois ela conversava muito comigo e olhava-me com tanta doçura e carinho que parecia uma mãe. A casa era muito velha e rústica, feita de pedra e situada numa espécie de buraco ou fundão, de tal modo desnivelado do caminho que apenas o telhado ficava paralelo a este. A casa, frente à qual existia um pequeno mas bem cuidado jardim, comunicava e dava acesso ao caminho através de uma íngreme e tosca escada de pedra, que terminava, na parte superior, num pequeno portal, sem portão ou cancela. A casa era pequenina e o seu interior, pobre e escuro, limitava-se a uma cozinha com piso térreo e a uma outra divisão assoalhada que servia, simultaneamente, de sala e quarto de dormir. Vivia pois, a senhora Mariquinhas José em péssimas, limitadas e lastimáveis condições a que se aliava uma enorme pobreza e um exagerado desconforto. Vivia sozinha e não tinha parentes na Fajã que se conhecessem. Constava, apenas, que tinha uns primos no Mosteiro, os quais, no entanto, nunca a procuravam.
Mas… pior do que tudo isto, a Marquinhas José era muito doente. Para além de outras maleitas menores, tinha uma doença terrível na perna esquerda. Esta estava de tal modo inchada que bem se podia igualar, em espessura, à cintura da sua dona, dificultando-lhe, de sobremaneira, o andar, já de si lento e vagaroso. No entanto e apesar de todas estas limitações e contrariedades, fazia, ela própria, toda a sua vida quotidiana: cozinhava os parcos alimentos de que dispunha, acarretava baldes de água a uma fonte bem distante, arrumava e lavava a casa e a roupa e até transportava, à cabeça e sob uma rodilha, pequenos molhos de garranchos de lenha, que ia apanhar a uma belga que tinha para os lados da Cabaceira. Também era ela que trabalhava uma escassa courela que possuía atrás da casa e que lhe ia dando meia dúzia de maçarocas de milho, uns pés de couve e algumas batatas. Algumas pessoas da freguesia ajudavam-na, dando-lhe, de vez em quando, um pouco daquilo que também possuíam e cultivavam nos seus campos.
Mas apesar de pobre, desventurada, sofredora e estigmatizada pela solidão a Marquinhas José do Cimo da Assomada, parecia ser uma pessoa feliz e conformada com o seu infortúnio, pois tinha sempre um agradável sorriso no seu rosto, uma contagiante ternura no seu olhar e uma sincera afabilidade nas suas palavras.
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SACUNTALA DE MIRANDA
Sacuntala de Miranda nasceu em Ponta Delgada, em 1934, sendo filha de Lúcio de Miranda, goês, professor de matemática do liceu de Ponta Delgada e de uma senhora micaelense. Ainda criança Sacuntala acompanhou os pais à Índia, onde tencionavam fixar-se, mas acabaram por regressar e fixar-se em São Miguel. Em Ponta Delgada, Sacuntala completou o ensino liceal, após o qual se matriculou na Faculdade de Letras de Lisboa, onde se licenciou em Ciências Históricas Filosóficas. Ainda estudante iniciou uma militância nos meios políticos da oposição ao fascismo e ao colonialismo e trabalhou como redactora na revista Eva. Foi regente de estudos no Colégio Moderno e deu aulas na Sala de Estudo André de Resende. Acabou presa pela PIDE mas participou activamente na agitada campanha de Humberto Delgado, em 1958.
Em 1960 partiu com a família para um longo exílio na Inglaterra, onde foi destacada resistente à ditadura portuguesa, com participação política e cultural junto dos emigrantes. Esteve também na Argélia. Trabalhou nos mais variados empregos e também na Biblioteca da Universidade de Londres. Foi assistente de investigação no Departamento de Sociologia da Universidade de Essex. Licenciou-se em Sociologia em Londres e foi assistente do Departamento de Investigação do Sindicato dos Transportes.
Depois do 25 de Abril, regressou a Portugal e trabalhou na Secretaria de Estado da Emigração, durante os governos provisórios, considerando-se saneada com a queda do 5.º governo, de Vasco Gonçalves. Passou a trabalhar no Centro de Investigação Pedagógica do Instituto Gulbenkian de Ciência e foi consultora da Open University inglesa sobre os sistemas educativos dos países periféricos.
No início da década de oitenta retomou a carreira universitária, como assistente na Universidade Nova de Lisboa e, mais tarde, professora do Departamento de História, onde, sob a orientação do Professor A. H. Oliveira Marques, fez o doutoramento com uma investigação acerca das relações económicas entre Portugal e a Inglaterra (1891-1939), tema que já havia iniciado em Londres sob a orientação do Professor E. J. Hobsbawn.
Tem-se afirmado como escritora memoralista, com uma autobiografia intitulada Memórias de um peão nos combates pela liberdade, onde faz revelações e análises da resistência antifascista em Lisboa e na Inglaterra da maior importância para a compreensão deste conturbado período.
É uma notável historiadora de temas de história económica e de história política e da emigração, sendo a sua historiografia marcada pelas opções ideológicas da esquerda do marxismo. Entre as suas obras destacam-se as duas teses, a de licenciatura, sobre a revolução de Setembro de 1836, pioneira nos estudos da política portuguesa do século XIX, e a de doutoramento, sobre a dependência económica portuguesa entre 1890 e 1939.
Tem ainda contribuído para o estudo da história açoriana, nomeadamente com participação em colóquios na ilha de S. Miguel, de onde se destaca um ensaio referente ao «ciclo da laranja» entre 1780-1880, que é a mais completa visão de conjunto sobre este tema central da economia e sociedade micaelense nos séculos XVIII e XIX e estudos sobre a emigração e movimentos de revoltas populares. J. G. Reis Leite
Obras principais: Portugal. O círculo vicioso da dependência, Quando os sinos tocavam a rebate. Lisboa, A emigração portuguesa e o Atlântico 1870-1930, A Revolução de Setembro de 1836 – geografia eleitoral, O ciclo da laranja e os “gentleman farmers” da ilha de S. Miguel, 1780-1880 e Memórias de um peão nos combates pela liberdade.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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A GROTA DOS PAUS BRANCOS
A Grota dos Paus Brancos, como a maioria das grotas e ribeiras da Fajã Grande, situava-se na rocha. Neste caso recebeu o nome não apenas da rocha por onde deslizava e escorria, mas também do lugar onde as suas águas caíam perdendo-se na Ribeira dos Paus Brancos, ainda afluente da Ribeira das Casas e muito distante dela. A grota escoava-se pela rocha dia e noite, com enorme afluência de água, através de inúmeros veios, regatos e grotões, entre o verde dos arvoredos, dos fetos e da cana roca, a serpentear por entre rochedos, caindo, finalmente, em chão raso, onde formava uma espécie de rego que ia alimentando uma ou outra lagoa ali existente, indo finalmente aumentar o curso da ribeira que ladeava a rocha desde os Lavadouros até à rocha das Águas.
A Rocha dos Paus Brancos que dava o nome à grota, situava-se por baixo do alto do Rochão Grande, do Rochão Tamusgo e do Curral das Ovelhas, situados lá bem altos, no Mato. Na década de cinquenta ainda existia uma vereda de acesso ao mato pela Rocha dos Paus Brancos quase paralela à grota, mas muito pouco utilizada como forma de acesso ao Mato. Apenas servia como caminho para quem tinha propriedades naqueles andurriais. Do lado sul, ou seja da banda da Fajãzinha a, Rocha dos Paus Brancos ligava-se a Mateus Pires e à Rocha da Alagoinha. A sul prolongava-se até à Escada-Mar. Como a das suas congéneres, a água da Grota dos Paus Brancos escorria da rocha, era muito abundante e alimentava, exuberantemente, as pastagens e terrenos circundantes, transformando alguns em verdadeiros pântanos, fazendo com que a erva crescesse tanto que as assemelhava às lagoas das Covas, da Ribeira das Casas, da Figueira, das Águas, embora com o senão de ficarem bastante distantes do povoado. Assim como noutras grotas, nomeadamente na do Vime, lá para os lados da Ponta e na da Figueira, a Grota dos Paus Brancos também sulcava a rocha em escarpas por onde descia em pequenos veios de água, uns a enriquecerem o caudal da grota, um ou outro a escorrer, isoladamente, até ao sopé da rocha, perfurando chão, a perdendo-se nas suas entranhas, para mais a baixo, já em terreno plano, reaparecer, engrossando o caudal da grota, esta sim a alagar as pastagens e, sobretudo, a alimentar os inhames que por ali proliferavam, criando ao seu redor uma vegetação exuberante. Para além da quantidade, os inhames de água daquelas paragens, assim como os de outras lagoas da Fajã, nomeadamente os da Ribeira das Casas, eram de excelente qualidade.
A origem do topónimo Paus Brancos parece ser de fácil e simples explicação. Decerto que provinha do facto de naquele lugar e até na Rocha com o mesmo nome existirem inicialmente muitos paus-brancos que aos poucos terão desaparecido devido ao arroteamento e transformação de algumas terras de mato em pastagens e lagoas e, mais tarde, devido à plantação de criptomérias.
O pau-branco é uma árvore endémica açoriana, existente em quase todas as ilhas do arquipélago. Atinge os oito metros de altura, tem folhas lanceoladas a ovaladas, com flores brancas e frutos de tom azulado escuro, semelhantes aos da oliveira, árvore a cuja família pertence, mas curiosamente a oliveira não vegeta nos Açores. A sua madeira é muito apreciada e utilizada sobretudo no fabrico de móveis.
Cuida-se que no início do povoamento das ilhas o pau-branco que se desenvolve juntamento com o incenso e a faia, ambos ainda hoje muito abundantes nas ilhas, existiria em grande quantidade nas Açores. No entanto, com o início da colonização, as zonas mais soalheiras e de melhor terreno foram assoreadas dando origem a terrenos agrícolas para cultivo dos cereais ou a pastagens para a criação de gado, o que provocou um enorme desbaste da mancha florestal primitiva. As espécies menos resistentes, como o pau-branco foram as mais prejudicadas. Atualmente, dado o abandono de muitos campos agrícolas e pastagens, as espécies mais persistentes como a faia e, sobretudo, o incenso são as mais privilegiadas e protegidas pela natureza.
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CAGARROS SALVOS
A campanha SOS Cagarro deste ano, que decorreu, nas ilhas dos Açores, de 15 de Outubro a 15 de Novembro, permitiu salvar, naquelas ilhas, cerca de 6.100 aves, valor só ultrapassado em 2013.
A campanha SOS Cagarro realiza-se desde 1995, visando a conservação destas aves marinhas, assim como a promoção da participação pública em eventos de sensibilização e educação ambiental.
Segundo Filipe Porteiro, foram anilhadas 1.321 aves e estiveram envolvidas 561 brigadas, que englobaram 148 parceiros e cerca de 3.100 pessoas, tendo sido salvos mais de 6.100 cagarros e registaram-se 196 cagarros mortos e 56 feridos. O responsável explicou que os cagarros que são resgatados de atropelamentos e ataques de gatos e cães ou outros perigos, são anilhados e libertados, garantindo-se assim que possam fazer a sua primeira migração para o hemisfério Sul.
O diretor regional dos Assuntos do Mar disse que pela primeira vez foram organizadas brigadas científicas em sete das nove ilhas dos Açores, que visaram a recolha de informação sobre esta ave, em colaboração com a Universidade dos Açores, os Parques Naturais de Ilha, organizações não governamentais e outras entidades.
“Com as brigadas científicas esperamos ter dado mais objetivos para compreender melhor a espécie e as interações com as atividades humanas, como a iluminação pública”, frisou Filipe Porteiro. Tentou-se dar à campanha SOS Cagarro 2016 uma dimensão de ecoturismo, uma vez que “várias entidades, como as casas rurais, podem oferecer este produto aos seus turistas”.
O responsável pela campanha ainda explicou que os cagarros, que são resgatados de atropelamentos e ataques de gatos e cães, ou outros perigos, são anilhados e libertados, garantindo-se, assim, que possam fazer a sua primeira migração para o hemisfério sul.
NB – Dados retirados do Forum Ilha das Flores
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A CABRA E A PRINCESA
Conta-se que há muitos, muitos anos, havia um homem que vivia no lugar das Furnas e tinha uma cabra que se apresentava sempre com um olhar muito estranho, que até parecia que se entristecia e se alegrava como se fosse uma pessoa. Além disso a cabra tinha o hábito de se aproximar mansamente das pessoas, especialmente das crianças sobretudo das que haviam sido batizadas há pouco tempo.
- Mas ali havia coisa, - murmurava o povo.
Na verdade tanto se cochichou, tanto se mexericou, tanto se inventou e tanto se falou que, algum tempo depois, correu pelo povoado a notícia de que a cabra teria sido encontrada pelo dono, à beira mar, talvez abandonado por um navio de piratas, durante a noite e que tudo poderia ser obra do diabo. A partir de então todas as pessoas e muito especialmente as mães com filhos pequeninos ao verem a cabra fugiam aterrorizadas com os seus filhos debaixo de um braço e os cestos de batatas, da roupa ou de outra coisa qualquer que carregavam, no outro.
Mas o que ainda mais espantava o povo era o facto de que a demoníaca cabra levantava as mãos e se colocava nas pontas dos pés diante das crianças para as observar como se esperasse algo delas.
Certo dia, já não suportando mais tal assédio por parte da estranha cabra, as mães juntaram-se e em magote correram a queixar-se ao padre que paroquiava a freguesia, contando o que se passava e que tanta consumição lhes dava.
O padre tentou acalmá-las dizendo que aquilo nada tinha a ver com o demónio e que, muito provavelmente, acontecia porque a cabra, simplesmente queria brincar com as crianças ou, no mínimo, no caso das crianças recém-batizadas lamber os óleos sagrados com que as crianças eram ungidas no dia do seu batismo. Chegou mesmo o reverendo a afirmar, em tom de gracejo e escandalizando os seus paroquianos que provavelmente se trataria de uma princesa encantada que com os óleos sagrados quebraria o seu feitiço.
Mas afinal tinha razão o prebendado. Na verdade, certo dia a cabra encontrou uma criança, que saía da igreja ao colo da madrinha e acabadinha de ser batizada. O famigerado animal pôs-se, de imediato, nos bicos dos pés e, sem que alguém o impedisse, lambeu a criança na testa. E o estranho aconteceu pois a cabra, de imediato, se transformou numa bela princesa, mantendo, no entanto, os seus pés iguais aos de uma cabra.
Alguns dias depois, porém, numa noite escura como breu, ouviu-se, para os lados das Furnas o barulho da sirene de um navio que ali terá ancorado. A partir desse dia nunca mais ninguém pôs a vista em cima da princesa, cuidando o povo que teria sido levada naquele estranho navio.
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JERICOPO
Copo, copo, jericopo
Jericopo, copo cá.
Quem não disser três vezes:
Copo, copo, jericopo
Jericopo, copo cá,
Por este copo não beberá.
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LENGA-LENGA
Era uma vez uma vaca
Chamada Vitória
Morreu a vaquinha
Acabou-se a história
E depois?
Depois…
Morreram as vacas
Ficaram os bois
Era uma vez
Um rei e um bispo
Acabou-se o conto
Não sei mais do que isto.
Era uma vez um cadeirão
Casou com uma cadeirinha
Nasceu um barquinho
Não quis estudar…
Foi para banco de cozinha
Era uma vez
Um rei e uma rainha
Acabou-se a história
Que era pequenina.
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CASA COM VISTA PARA O RIO
O Doutor Rafael Fernandes, um dos mais conceituados juízes dos tribunais de Lisboa, a pedido seu, foi colocado na comarca de São Romão, Reguengos de Alvaraz. Para além de possuir uma casa que herdara dos avós paternos, a uns bons trinta quilómetros da Vila de São Romão, cuidava o ilustre magistrado que ali, sozinho, numa pequena vila de um interior cada vez mais desertificado, poderia, com maior facilidade, carpir a enorme mágoa que o atingira nos últimos tempos e da qual antevia não mais se libertar.
Na verdade e desde o falecimento da esposa, inesperadamente vítima de um cancro que a atingira fulminantemente, que Rafael Fernandes fenecia como se fosse a mais frágil vergôntea de uma árvore da qual haviam retirado toda a seiva e cortado as raízes mais profundas. Amara muito a Joana, dedicara-lhe um carinho inexaurível e com ela vivera um deslumbrante e deleitoso idílio a que apenas a morte, abruta e irrevogável, pusera termo. Agora permanecia numa pasmaceira inédita, isolado de tudo e de todos, numa inextinguível e diária clausura a que apenas as horas a que era obrigado a passar no tribunal punham termo. O tribunal de São Romão e a casa de São Leonardo decerto nunca lhe haviam de mudar o destino e nunca o curariam da mágoa e da dor que o atormentavam mas talvez lhe dessem uma mais adequada e suportável oportunidade de prantear aos quatro ventos quanto sofrimento e tristeza lhe trespassavam a alma. Ali podia isolar-se, fechar-se, retirar-se, esconder-se do mundo, mais facilmente. Sabia que em Reguengos de Alvaraz ninguém o conhecia e ele próprio cuidava que nunca havia estar com disposição para conhecer quem quer que fosse.
Nos primeiros meses de vida judicial em São Romão, o novo magistrado aboletou-se numa pequena pensão, a única existente na vila. O ambiente, porém, era péssimo e a comida muito má. As horas que passava no velho quarto de que disfrutava pareciam-lhe anos. Os jornais eram raros, as revistas quase não existiam e os programas de televisão, para além dos telejornais, pouco lhe interessavam. Passava as horas que lhe sobravam e os fins-de-semana fechado no quarto, a ler. Mas os livros de que dispunha e que lhe interessavam depressa se haviam esgotado.
Finalmente, num sábado de sol e de bom tempo, farto de estar fechado no quarto, decidiu deslocar-se a São Leonardo, à casa que, por herança, ali possuía. Embora sendo uma residência de veraneio, construída pelos avós maternos, para além de possuir ótimas condições de habitabilidade desfruía de uma belíssima vista para o rio. Era uma magnífica vivenda, em muito bom estado de conservação, de dois andares, com quartos grandes e arejados, com uma enorme sala, a servir simultaneamente de cozinha, com um quarto e garagem no rés-do-chão. Mas o que de mais precioso tinha e que mais cativou o juiz de São Romão foi a admirável vista que dali se desfrutava. Isolada de outras habitações, com janelas e portadas voltadas a sul e com um belo alpendre no piso superior, alva de neve, a casa era uma verdadeira e admirável mansão. Ali, no remanso daquele cenário quase deserto mas de uma beleza rara, poderia dar aso à sua solidão, quiçá sublimando-a um pouco.
Um único problema, no entanto, obstaculizava que Rafael, de imediato, trocasse as acritudes e dissabores do quarto da Dona Pureza, em São Romão, pela casa de São Leonardo. Desabitada deste há muito, a mansão que os avós lhe haviam deixado precisava de uma profunda e eficaz barrela, a que se sentia incapaz de se aventurar. Além disso muitos móveis e cortinados necessitavam de ser substituídos e era necessário adquirir roupas de cama, algumas loiças e um ou outro utensílio de cozinha. Coisa de pouca monta, mas que exigia requinte e bom gosto. Regressou a São Romão a pensar em São Leonardo e de como havia de sair daquele imbróglio.
Alguns dias depois, apareceu-lhe no tribunal um homem que preencheu um documento onde constava ter residência precisamente em São Leonardo. Um pouco receoso, até porque nunca confundia os interesses pessoais com a atividade profissional, o doutor Rafael Fernandes pediu para lhe falar quando ele terminasse de tratar o assunto que ali o trouxera. O homem anuiu de bom grado. Que o senhor doutor dispusesse à vontade. Pretendia o meritíssimo juiz de São Romão saber se o senhor Gonçalves conhecia alguma mulher em São Leonardo que desse dias para fora, isto é, que fizesse limpeza em casas, que ele estava necessitado desse serviço e havia de pagar bem.
Bem sabia José Gonçalves que o senhor doutor juiz possuía uma casa em São Leonardo, no Caminho do Engenho, que havia pertencido aos seus avós, de quem vagamente se lembrava. Quanto a encontrar mulher que fizesse limpeza o senhor doutor não poderia ter batido a melhor porta. A sua esposa já trabalhara muitos anos como empregada doméstica na vila de Macieira e umas horas que fosse, agora que estava desempregada, seriam muito bem-vindas.
Acertou-se que no dia seguinte, após terminar o trabalho, o juiz de São Romão se deslocaria a São Leonardo, a fim de conhecer a dona Irene e de com ela acertar todos os detalhes.
- Não tem que enganar, senhor doutor. – Explicava o Gonçalves. – Ao chegar a São Leonardo, vira na primeira saída à direita, como se fosse para a sua casa. Anda uns metros e depois de passar um pequeno cruzamento, encontra, um pouco mais afastada do caminho, uma casa amarela. É a única casa amarela que existe na rua, por isso não há que enganar. Eu vou avisar a minha mulher a fim de que esteja por casa, por volta das sete horas.
- Combinado, - rematou o doutor Rafael Fernandes, agradecendo a simpatia e disponibilidade do senhor Gonçalves
O ford azul estacionou em frente ao portão de José Gonçalves. O juiz saiu e olhou a casa a certificar-se que possuía as características que lhe tinham sido referenciadas pelo proprietário. Um pouco a medo, andou mais uns passos, olhou ao redor e descobrindo, junto à porta da cozinha, um corsa metalizado, seguiu na sua direção, batendo levemente na porta que de imediato se abriu. Emergindo de entre a penumbra da cozinha, surgiu uma jovem de uma beleza rara e invulgar. Um rosto branco, salpicado de ternura, madeixas escurecidas sob a tez acetinada, os olhos de um castanho esverdeado a contagiarem quem os contemplasse e um sorriso, aberto, franco, terno e acolhedor. Rafael estremeceu. Aparentemente embaraçados, fixaram um no outro os olhares transparentes, aureolando-os num sorriso tímido mas recíproco. Permaneceram assim, durante alguns segundos, num balbuciar mudo e eloquente.
Por fim Rafael, tentando refazer-se do acanhamento inicial, adiantou:
- Desculpe menina, mas pelas indicações que tenho cuidei que fosse esta a casa do senhor José Gonçalves e da sua esposa, a dona Irene.
- Sim, sim. É esta – retorquiu a rapariga deixando transparecer uma leve excitação no rosto. – Vou chamar a minha mãe!
Pouco depois, subindo os degraus que davam para as traseiras da casa, surgiu uma mulher, baixa, forte, de meia-idade, cabelos já a esbranquiçarem:
- Boa tarde! Deve ser o senhor doutor, juiz de S. Romão. – Depois desculpando-se – Devia tê-lo esperado na sala. Que vergonha! Receber o senhor doutor à porta da cozinha. Lúcia vai abrir a porta da sala para receber o senhor doutor…
- Que não, que não pensasse em tal coisa. Estavam muito bem ali, que não ia demorar. Apenas o tempo necessário para combinar o que dela necessitava… - Desculpava-se Rafael, enquanto tentava fixar o nome: - Lúcia!
E ficou combinado que a dona Irene começaria as limpezas no dia seguinte. Demorasse o tempo que fosse necessário. Uma casa há tanto tempo abandonada e fechada tem muito que limpar…
Sem que fosse esperado, Rafael voltou a casa dos Gonçalves no dia seguinte. Vinha apenas lamentar-se por se ter esquecido de, na véspera, deixar algum dinheiro à dona Irene, a fim de que ela comprasse vassouras, panos, esfregões e detergentes… Lúcia não estava… Por certo que não contava com ele…
Foi a dona Irene que o recebeu:
- Não se devia ter incomodado. Não era preciso deixar nenhum dinheiro. Nem deveria ter feito uma viagem tão grande… Quando precisar alguma coisa ou necessitar de mandar um recado o senhor doutor pode fazê-lo pela minha filha, Lúcia, que trabalhava em São Romão…
- Trabalha em São Romão?! – Exclamou Rafael despedindo-se.
- Chama-se Lúcia e trabalha em São Romão… Interessante, muito interessante… - Murmurava o meritíssimo juiz no regresso à pensão da dona Pureza.
E no dia seguinte, estranhamente, decidiu voltar a São Leonardo e à casa dos Gonçalves. Lúcia tinha sido informada pela sua progenitora da visita que o juiz lhes fizera na véspera e, por isso, embora assolada por uma enorme dúvida, esperava-o ansiosamente.
Não sonhou em vão!... À tardinha, Rafael Fernandes regressou a São Leonardo e, novamente, bateu à porta dos Gonçalves, alegando desejar saber se a barrela iniciada pela dona Irene dois dias antes, já estaria pronta e se a casa do Caminho do Engenho já teria condições de habitabilidade. Estava farto da pensão onde vivia pelo que desejava ardentemente mudar-se para São Leonardo. Foi Lúcia que o recebeu e, disfarçando sem sucesso a sua excitação, ouvia-o silenciosa. No seu íntimo desejava que se fixasse em São Leonardo mais depressa possível. Na véspera incentivara a mãe a despachar-se com as limpezas… Mas foi a dona Irene que se apressou a intervir, esclarecendo:
- Limpinha, limpinha já está, senhor doutor… Mas as roupas de cama…as loiças… alguns móveis… não estão lá em muito boas condições.
- Amanhã é sábado! Era um ótimo dia para comprar, pelo menos o essencial. – Retorqui Rafael. - Mas não sei onde, não conheço nada em Reguengos de Alvaraz, a não ser o tribunal de São Romão, a pensão da Dona Pureza, a minha casa e, claro, a casa da família Gonçalves.
Riram. De seguida dona Irene esclareceu:
- Olhe, senhor doutor, em Macieira a Casa Viriato, mesmo no centro da vila, vende todo o tipo de roupas de cama e toalhas. E à entrada da vila há uma loja de móveis. Quanto às loiças, utensílios de cozinha e eletrodomésticos pode comprar tudo no Supermercado Terra Mar, também em Macieira. Infelizmente eu não o posso acompanhar amanhã. Mas a Lúcia tem muito bom gosto e, claro, conhece, tudo em Macieira, talvez ela não se importe de acompanhar e de ajudar o senhor doutor a comprar tudo o que necessita…
Lúcia enrubesceu o rosto. Rafael olhando-a com ternura, indagou:
- Não se importaria Lúcia de me ajudar nesta tarefa tão difícil? Ficar-lhe-ia muito grato…
Lúcia acenando afirmativamente esboçou um sorriso do tamanho do mundo, ao mesmo tempo que no seu íntimo sentia uma ânsia inexaurível misturada com uma felicidade sublime.
À hora combinada Rafael estacionou, mais uma vez, em frente ao portão do Gonçalves. Já o havia feito várias vezes e isso provocou um indelével mexerico na vizinhança.
- Queredo mulher! Nunca se viu tamanha pouca vergonha nesta freguesia! Há mais de oito dias que aquele homem vem a casa do Gonçalves. Não deve de ser coisa boa!...
- Olha e até já leva a tresloucada da rapariga a passear. E olha como ela vai toda apinocada! – Comentavam.
Alheio a mexericos o juiz conduzindo o ford azul olhava de soslaio Lúcia sentada a seu lado e que se havia apresentado exageradamente bela, exalando um perfume suave e doce. A viagem até Macieira, apesar de curta, foi longa e silente. Por vezes entreolhavam-se e sorriam levemente. Outras o silêncio era tal que quase se ouvia o arfar ansioso de seus corações.
Em Macieira escolheu-se a mobília mais adequada. Lúcia, numa tarde, acompanhara a mãe nas limpezas e conhecia muito bem os recantos da casa onde Rafael iria viver… Por isso prontificou-se a ajudar:
- Ali este um sofá que servirá muito bem na sala… Mais além uma poltrona… Esta cama para o quarto dos fundos… Seguiram-se as roupas de cama, alguns utensílios de cozinha e loiças… Tudo muito simples, moderno e funcional. Tudo o que o senhor doutor necessitava para recomeçar a sua vida em São Leonardo.
- Senhor doutor, não. Rafael, por favor. Aliás, se não te importas, Lúcia, podemos começar a tratarmo-nos por tu…
Lúcia enrubesceu novamente e um pouco a medo, mas num gesto de indelével simplicidade, fez um sinal afirmativo com a cabeça e, pela primeira vez, na presença dele, balbuciou:
- Rafael!
No último fim-de-semana de Abrl a casa do Caminho do Engenho estava recheada com tudo o que era minimamente necessário para ser habitada, pelo que no domingo o meritíssimo juiz de São Romão fixou-se definitivamente em São Leonardo. À noitinha recebeu a visita da família Gonçalves. Vinham dar as boas vindas ao senhor doutor trazer umas batatas, umas cebolas, meia dúzia de ovos e, sobretudo, oferecer os seus préstimos…
Ao despedirem-se José Gonçalves, em jeito de graçola, sugeriu:
- Como ambos trabalham em São Romão, podiam fazer uma vaquinha. Numa semana um levava o caro um, na semana seguinte o outro.
- Ótima ideia senhor Gonçalves, ótima ideia – Atalhou o juiz. – Se a Lúcia não se importar amanhã levo eu o meu. Depois veremos…
Lúcia, na verdade, não se importava nada.
- Será um prazer viajar na companhia do senhor doutor… do Rafael, quero dizer… - Emendou a medo.
A senhora Irene, sem que o marido notasse suspirou, disfarçando:
- Para além do mais… ela sempre poupa um dinheirinho…
No sábado seguinte, depois do almoço, por vontade explícita dos pais, Lúcia foi a casa de Rafael convidá-lo para vir jantar à sua casa. Não podia recusar.
Lúcia entrou. Recordava ainda a viagem no regresso de São Romão, no dia anterior. Rafael, sem que ela esperasse, estacionara o carro na berma da estrada. Alegara o esquecimento de uns papéis que lhe faziam muita falta. Talvez tivessem que regressar ao tribunal. Lúcia não se importava nada. Disfarçadamente procurou-os, debruçando-se sobre o tablier, do lado contrário ao seu. Na tentativa enganosa de o fazer, aproximou demasiadamente o seu rosto do de Lúcia e, embora a medo, beijaram-se pela primeira vez, pela segunda, pela terceira e por muitas outras.
A tarde foi de esclarecimentos, de desabafos, de enlevos, de juras mútuas, de projetos, de troca de afetos e de beijos. Amaram-se por entre nuvens de sublimidade em ritmos de excelência, ternura e encanto.
E quando à noitinha se sentaram à mesa em casa dos Gonçalves, sem que nada tivessem combinado entre si, exclamaram em uníssono:
- Antes de jantar temos uma coisa a comunicar-vos.
- Nada que me surpreenda – comentou dona Irene em voz baixa.
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AS CASAS DA FAJÃ GRANDE NA DÉCADA DE CINQUENTA
Na década de cinquenta do século passado, as casas da Fajã Grande, sobretudo as das famílias menos remediadas eram muito simples e pobres. Embora já todas fossem cobertas de telha, o que não acontecia no final do século XIX, muitas ainda eram de chão térreo, sobretudo as cozinhas. Limitavam-se a quatro paredes grossas e toscas, a um tamanho muito escasso e com altura apenas suficiente para conter uma porta por onde passasse um homem alto sem se curvar muito. Os tetos eram de telha canelada sobre uma armação de madeira, com a porta traseira da cozinha a ser a principal e a mais utilizada. Apesar de pequenas, a maioria delas albergava mais de uma dezena de pessoas, incluindo o pai, a mãe, mais de meia dúzias de filhos e geralmente uma ou duas avós ou uma tia velhinha e adoentada. As paredes exteriores de muitas delas nem eram caiadas e até o interior de algumas cozinhas também era de pedra. Eram divididas em dois ou três compartimentos por meio dum frontal de madeira, ou, nalguns casos, até por cortinados de pano. A cozinha era a parte maior, mais tosca, mais escura e também a maior da casa. Para além de cozinha servia de sala de jantar, sala para o serão e para as visitas, sala de banho, local de arrumos da lenha e das batatas e até servia para descascar e guardar o milho, sendo este dependurado nos tirantes do teto. O seu tamanho, no entanto reduzia-se bastante porquanto a maioria tinha dentro o forno e o lar. Cada casa, geralmente tinha duas portas sendo a porta de trás a mais utilizada no dia-a-dia e na faina diária. Muito escura, durante a noite, nos longos serões de inverno, a cozinha era tremulamente iluminada por uma candeia com um pavio de pano alimentado a enxúndia de galinha. A maioria não tinha chaminé, saindo o fumo por entre as telhas, sem no entanto muito dele, antes de sair, encher a cozinha, pintando-a de tisna. O compartimento central, chamado sala ou casa de fora, onde se recebiam as visitas importantes e o Senhor Espírito Santo, era também utilizado como dormitório dos filhos, geralmente dos rapazes, amontoados em uma ou duas enxergas, muitas vezes deitados ao travessar a fim de caberem todos. Finalmente o quarto, a divisão mais pequena, com duas camas, uma para o casal outra para as filhas e para a avó velhinha. Era também no quarto que se guardava a roupa domingueira e entre as camas era colocado o berço. Em frente à porta de trás da cozinha, quase todas as casa tinham um pátio, que geralmente servia para albergar os chiqueiros do porco e das galinhas.
O andar de baixo ou loja também estava divido. Uma parte era destinada a guardar o gado, enquanto a outra servia para arrumos e de nitreira.
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PROBLEMAS
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Dizem que chá de erva-cruz
é bom remédio para as bichas.
Mas para quem rima dor
sempre com puro e excelso amor.
- Que o Mariano d’Arruda
neste transe lhe acuda
e ponha lá estupor.
(Tamanho medo…
- Ai que fedor.
O sol para a chuva,
os canários fritos
e o sumo da uva.
Quando eu me for daqui
quem se lembrará de mim?
Pedro da Silveira, Quatro Dos Poemas de Chá de Margaça. 8 - VIII
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A LEI DA FORÇA
Conta-se que antigamente vivia na Ponta, no lugar do Outeiro um homem que tinha muitos filhos. O homem era pobre e nada tinha de seu, pelo que, para sustentar os filhos tinha que arrendar terras a meias, estabelecendo contratos mediante os quais devia entregar aos donos das terras metade do que nelas produzia. Mas como a família era numerosa o homem gastava tudo o que produzia no sustento da mulher e dos filhos, pelo que deixou de entregar aos proprietários das terras o que lhes cabia por direito.
Como não pagava aos senhorios, estes foram à Vila, queixar-se ao Juiz que, chamando o homem à sua presença, decidiu tirar-lhe todas as terras e entregá-las aos verdadeiros donos.
O homem, descontente e desesperado com a decisão do Juiz, resolveu armar-se e armar os seus filhos com foicinhos, enxadas e varapaus e assim partiram todos para Santa Cruz na demanda do tribunal, fora do qual organizaram tamanha revolta e fizeram tão algazarra que o Juiz, temendo o pior, foi obrigado a alterar a sua decisão, conseguindo o homem de novo a posse das terras e os donos nada podendo fazer, pois o homem ameaçara que também se havia de armar juntamente com os seus filhos, uns valentes rapagões, frente às suas casas.
Mas consta também da estória que algum tempo depois todos os donos das terras, acompanhados de familiares e amigos se apresentaram em frente à casa do homem, armados da mesma maneira e fazendo ainda uma maior algazarra e uma mais grandiosa revolta do que a que ele fizera com os filhos junto ao tribunal. O homem teve medo, meteu a mão na consciência e, daí em diante, com a ajuda dos filhos, passou a cumprir com rigor todos os contratos de arrendamentos de terras que trabalhava mas não lhe pertenciam.
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GENTLMAN
Assumiu-se, por mérito próprio, e impôs-se, por formação e temperamento, desde os tempos em que foi aluno do Seminário, talvez mesmo já enquanto petiz de pé descalço e calção, a trilhar as íngremes e pedregosas canadas e veredas da ilha que o viu nascer, na demanda de uvas e figos. Demarcou-se pela sua sobriedade, ponderação, sensatez, dignidade, tolerância, camaradagem e nobreza de carácter. Para além de colega ao longo de vários anos como alunos, tive a honra de privar e conviver, diariamente, com ele, nas férias de verão, durante alguns anos. Foi sempre um companheiro e amigo, simpático nos seus modos, alegre nas suas brincadeiras, ponderado nas suas conversas, digno nas suas atitudes, sincero na sua amizade e distinto no seu comportamento. Um verdadeiro “gentleman”!
Por tudo isso e mais ainda pela sua capacidade intelectual, pelo seu trabalho, pelos seus dotes musicais e, sobretudo, pelo esforço, dedicação e empenho que sempre colocou em tudo quanto fazia ou no que se comprometia, foi fácil distinguir-se pelo sucesso e assinalar o seu quotidiano pela dignidade e o seu percurso profissional pela excelência. Músico notável, escritor erudito, com livros publicados, foi aluno brilhante, professor exímio, bancário competente e político dedicado. Infelizmente, foi acometido de doença que, apesar de o impedir de prosseguir uma vida tão activa quanto a que tinha anteriormente, não o impediu de continuar a escrever, a ler e, sobretudo, a ser o homem nobre e o amigo dedicado que sempre foi.
Não quis faltar ao Encontro dos antigos alunos do SEA e tornar-se em mais um dos “Senhores” do mesmo, deslocando-se a Angra, graças ao apoio dedicação, empenho e ajuda da esposa. Embora não podendo estar presente e envolver-se em todas as actividades, participou em muitas, revelando sempre uma alegria contagiante, um carinho desmedido e uma enorme e transcendente confiança na vida. O epicentro da sua presença aconteceu quando, através de um amigo, partilhou com os participantes uma mensagem de memórias, um testemunho de vivências, um acervo de referências, um hino de lembranças. Por tudo isto e por quanto de contentamento, alegria e satisfação envolveu a sua presença em Angra constituiu-se como mais um verdadeiro e autêntico “Senhor” do Encontro.
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SÃO FRANCISCO (DIÁRIO DE T’ANTONHO)
Quando estive na Califórnia vivi algum tempo em São Francisco, trabalhando primeiro no Porto e depois na construção da linha férrea, juntamente com outros desta ilha e até da Fajã Grande, como o António Nunes e o Francisco Cerejo. Na altura São Francisco crescia a olhos vistos. Desde de1821, quando o México se tornou independente e passou a dominar aquela cidade, São Francisco começou a crescer e a desenvolver-se muito. É que o governo mexicano estimulou a criação de gado na Califórnia, atraindo assim não apenas muitos americanos como também muitos colonos, sobretudo os ingleses instalados no Canadá, que precisavam de couro para o fabrico de calçado. Mais tarde muitos ingleses instalaram-se na península de São Francisco, onde atualmente fica a maior parte da cidade. Decidiram então construir um grande porto onde trabalharam dezenas e dezenas de açorianos. Eu fui um deles.
Mas o pior foi quando rebentou a guerra entre o México e a América e que causou a anexação da parte superior da região mexicana da Califórnia. A 9 de Julho de 1846, as forças navais americanas capturaram a cidade e deram-lhe o nome de São Francisco.
Eu estive em São Francisco em 1860. Alguns anos antes tinha sido descoberto ouro na Serra Nevada, próximo do lugar em que, mais tarde, foi construída a cidade Sacramento. Isto provocou uma enorme gold rush para a Califórnia o que causou um grande crescimento populacional do estado e da cidade. Imigrantes de quase todo o mundo passaram a instalar-se em São Francisco, incluindo chiness. O porto da cidade recebeu milhares de embarcações vindas de todas as partes do país e do mundo e São Francisco tornou-se no principal centro de mineiros. Dizem que apenas num ano a população de São Francisco passou de menos de mil para 25 mil habitantes, tornando-se uma das cidades mais populosas dos Estados Unidos.
As pessoas que tiveram sucesso na busca ao ouro fizeram de São Francisco uma cidade rica. Foram construídas casas e palácios riquíssimos e luxuosos e o comércio desenvolveu-se muito. Mas tudo isto teve o seu aspecto mau. Começaram a haver muitos roubos, muitas mortes e muitos crimes de toda a espécie. São Francisco passou assim a ser uma cidade na qual era muito perigoso viver.
Em 1855, um barco trazendo imigrantes de um país onde havia uma epidemia de cólera causou uma grande epidemia da doença em São Francisco. Na altura tudo se complicou porque havia falta de água potável, os esgotos eram muito maus e, além disso, os hospitais eram poucos e não conseguiam albergar todos os doentes, pelo que morreu muita gente.
Só 1869 e que terminou a construção da linha férrea entre São Francisco e o Ist. Assim tornava-se muito mas fácil chegar dos Açores à Califórnia. Isto foi muito bom não só para os que emigravam como também pelos que depois de muitos anos separados da família regressavam à sua ilha, como eu. Muitos até voltaram à Califórnia mais uma vez e outros três como foi o caso do meu compadre, o pai do José Batelameiro.
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PROVÉRBIOS DE SÃO MARTINHO
- A cada bacorinho vem o seu S. Martinho.
- Em dia de S. Martinho atesta e abatoca o teu vinho.
- Pelo São Martinho bebe o vinho, deixa a água para o moinho.
- No dia de S. Martinho, fura o teu pipinho.
- No dia de S. Martinho, come-se castanhas e bebe-se vinho.
- No dia de S. Martinho, lume, castanhas e vinho.
- No dia de S. Martinho, mata o porquinho, abre o pipinho, põe-te mal com o teu vizinho.
- No dia de S. Martinho, mata o teu porco, chega-te ao lume, assa castanhas e prova o teu vinho.
- No dia de S. Martinho, mata o teu porco e bebe o teu vinho.
- No dia de S. Martinho, vai à adega e prova o teu vinho.
- Pelo S. Martinho castanhas assadas, pão e vinho.
- Pelo S. Martinho mata o teu porquinho e semeia o teu cebolinho.
- Por São Martinho, semeia fava e linho.
- Por São Martinho, nem favas nem vinho.
- Pelo S. Martinho prova o teu vinho; ao cabo de um ano já não te faz dano.
- São Martinho, bispo; São Martinho, papa; S. Martinho rapa.
- Se o Inverno não erra o caminho, tê-lo-ei pelo S. Martinho.
- Se queres pasmar o teu vizinho, lavra, sacha e esterca pelo S. Martinho.
- Verão de S. Martinho são três dias e mais um bocadinho.
- Vindima em Outubro que o S. Martinho to dirá.
- Castanhas boas e vinho fazem as delícias do S. Martinho.
Fonte - Internet
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AS TAREFAS DOS MESES
“Janeiro gear, fevereiro chover. março encanar, abril espigar, maio engrandecer. junho ceifar, julho debulhar, agosto engavelar. setembro vindimar, outubro revolver, novembro semear, dezembro nasce Deus para nos salvar.”
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O PICO EM NOVEMBRO
O Pico, em Novembro, é um oásis de serenidade, um paraíso de bem-estar, uma espécie de reserva de sossego ou um seleiro de tranquilidade, onde as manhãs são uma comunhão permanente com a natureza, as tardes ombreiam com o verde perene da montanha, diluindo-se, ao fim do dia, no azul plácido do oceano, enquanto as noites se aproximam, rápidas, a galvanizarem-nos, numa terna e envolvente quietude que nem as estrelas espanta.
O Pico, em Novembro, lisonjeia-nos com o silêncio estonteante das brisas matinais, entrelaçado com o chilrear irreverente e estouvado da passarada e com os murmúrios maviosos das marés, incensa-nos com os salpicos adocicados duma maresia adormecida, ondulada, apenas, com o sulcar dolente das quilhas das embarcações, a rilharem em redopio, na demanda de chicharros e bonitos.
O Pico em Novembro, enleva-nos no aroma vertiginoso do mosto efervescente das adegas, encharcado de lava e perfumado a enxofre e embala-nos no escurecer zonzo e colaço das noites claras, luminosas, embebidas de luar e de sublimidade. No Pico, em Novembro, até a lava dos currais se torna mais negra, a sombra dos maroiços mais entontecida, o piso das veredas mais atapetado, os murmúrios das florestas mais inebriantes, o vai e vem das marés mais atrevido, os gritos dos cagarros mais sibilantes e os fluxos do horizonte, estranhamente, melhor delineados.
No Pico, em Novembro, há castanhas e araçás a atapetar o chão de lava doirada, batatas-doces a transbordarem dos cerrados e folhas amarelas, aureoladas de perfumes e aromas, dançando nos ares como bonecos embriagados que amedrontam o vento e afugentam tumultos intempestivos, perturbantes e aterradoras.
No Pico, em Novembro, há um Sol gratificante e consolador, quente e benéfico, a desfazer madrugadas sombrias e enevoadas e a aniquilar, por completo, as tardes escurecidas e anuviadas. No Pico, em Novembro, florescem crisântemos e miosótis a amansarem a saudade inaudita dos que já partiram para a eternidade.
No Pico em Novembro há uma estranha força telúrica que nos atrai, prende e enleva. A Ilha Montanha, qual gigante adormecido no meio do atlântico, cobre-se com mantos de tonalidades variadas onde predomina o verde pardacento das encostas, o azul dourado do oceano, o amarelo suculento das folhas secas, o vermelho dos araçás e das maçãs e o negro enigmático das paredes das adegas, dos currais, dos maroiços e de uma ou outra casa. O Pico, em Novembro cobre-se de sons suaves e melodiosos, de sinfonias contagiantes e deleitosas que ecoam pelas encostas e colinas e salpicam de espuma esbranquiçada o alvorecer tranquilo e esfuziante de cada dia.
No Pico, em Novembro, os vales e os montes, as encostas e os penhascos, os atalhos e as veredas, os currais e os maroiços irradiam perfumes contagiantes e atraentes que calcificam o espírito e impingem ao corpo um sopro de sustentável leveza.
No Pico, em Novembro, a alta e esconsa Montanha ergue-se mais imponente do que nunca e outorga-nos a suprema sensação de se viver entre a terra e o céu.
No Pico, em Novembro, as vilas, os povoados, as casas esbranquiçadas e espalhadas ao longo das encostas ou mesmo as construídas com blocos de lava preta junto ao mar brilham, fulguram, luzem e reluzem, alinhadas entre o negro clarificante dos baixios e o verde fresco da vegetação dos cabeços, sobre o amparo ternurento da Montanha.
No Pico em Novembro, o mar enche-se golfinhos e bonitos, de castanhetas e peixes-reis, de sargos e abróteas e até as cagarras aproveitam o sossego das noites, para ensaiarem os seus bailados debutantes.
No Pico em Novembro prova-se o vinho, celebra-se o São Martinho e até a chamarita tem um sabor mais atraente e a lava um perfume mais delirante.
O Pico, em Novembro, é uma espécie de súmula de um pequeno mundo construído durante séculos por baleeiros, agricultores e pescadores, onde proliferam os seus minúsculos povoados, sublimes e aconchegantes, debruçadas sobre o mar, a espreitar a bonança que renasce em cada madrugada e se ofusca, suavemente, com a edificação dos crepúsculos outonais.
O Pico, em Novembro é um paraíso, um sonho para todos os amantes do silêncio e da natureza, para quem anseia envolver-se entre o rendilhado negro e rude dos baixios, apreciar o verde flutuante das encostas, acariciar o amarelado das folhas debilitantes dos vinhedos, penetrar nos campos calafetados de lava ou até subir a imponente Montanha, conquistando uma enigmática e inesquecível sobrenaturalidade.
O Pico, em Novembro, é um sonho bordado a púrpura, um paraíso ungido com encanto, um éden pincelado com silêncio.
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O BURRO DO AZEITEIRO
CONTO TRADICIONAL
Era uma vez dois estudantes que caminhando numa estrada, encontraram um azeiteiro com um burro carregado de bilhas de azeite e que as ia vender à vila. Os estudantes estavam sem dinheiro; por isso, decidiram roubar o animal ao azeiteiro. Assim, enquanto o pobre homem seguia o seu caminho, um deles tirou a arreata do burro e colocou-a no seu próprio pescoço. O outro estudante fugiu com o animal e a carga. Um pouco mais adiante, o azeiteiro, olhando para trás, viu um rapaz em vez do burro.
Nesse momento, o estudante exclamou:
- Ah! senhor, quanto lhe agradeço ter-me dado uma pancada na cabeça! Quebrou-me o encanto que durante tantos anos me fez ser burro!...
O azeiteiro tirou o chapéu e disse-lhe:
- Afinal, o meu burro estava enfeitiçado! Perdi o meu ganha-pão! Peço-lhe muitos perdões por tê-lo maltratado tantas vezes. Mas que quer? O senhor era muito teimoso!
- Está perdoado, bom homem! - Disse o estudante. - O que lhe peço é que me solte e me deixe ir embora, em paz.
O pobre azeiteiro soltou o estudante, deixou-o ir embora e lamentou-se porque já não podia vender o azeite. Então, foi pedir dinheiro a um compadre para ir à feira comprar outro burro. Quando lá chegou, reconhecendo o seu burro, viu que era ele que um estava à venda. O azeiteiro pensou, então, que o rapaz se havia transformado, outra vez, num burro. Aproximando-se duma orelha do burro e gritou com toda a força:
- Olhe, senhor burro, quem o não conhecer que o compre.
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O ATLÉTICO CLUBE DA FAJÃ GRANDE
Recentemente chegou-me às mãos um livrinho muito interessante, da autoria de José Arlindo Armas Trigueiro, intitulado “Futebol na Ilha das Flores”.
O livro divide-se em duas partes. Na primeira, onde se aborda uma espécie de pré-história do futebol na ilha, ou seja, o futebol nos seus primórdios, numa altura em que ainda não existia qualquer organização federativa, o livro apresenta um resenha da evolução desta modalidade desportiva nas várias freguesias, em seis capítulos, um dos quais, o terceiro, é inteiramente dedicado ao futebol na Fajã Grande.
Na realidade ainda hoje há quem se lembre de nos anos trinta se dar início à prática do Futebol, na Fajã Grande, num campo situado no Estaleiro, entre o Porto e o Calhau Miúdo, num serrado que ali existia e que posteriormente foi dividido por “malhões” dado que pertencia a três donos: ao Laureano Cardoso, ao António Barbeiro e ao Chileno. A prática do futebol na Fajã Grande desenvolveu-se, sobretudo, graças ao empenho e esforço do Dr Mendonça, que normalmente assumia a função de árbitro, do Luís Fraga que foi o primeiro treinador e do guarda Borges, este também integrando o elenco dos jogadores primitivos.
O referido autor ainda refere que o primeiro jogo oficial se efectuou contra uma equipa das Lajes, o “Nacional Sport Club”, tendo-se realizado no dia 24 de Julho de 1939, data em que o campo também foi oficialmente inaugurado e que o clube se chamava “Fajã Grande Sport Clube”, equipando com camisola azul e calção branco. Na realidade, embora o autor do livro não o refira, nessa altura existiam dois clubes na Fajã Grande: o Sport, onde jogavam os melhores jogadores e o Salgueiros onde jogavam os reservas. Mais tarde, no início dos anos 50, depois dos anos de interregno que o futebol sofreu em todo o Mundo, devido à Segunda Guerra Mundial, os dois clubes fundiram-se originando o “Atlético Clube da Fajã Grande” que passou a utilizar o mesmo equipamento e cujo nome ainda hoje se mantém, conforme consta na lista de clubes da actual Associação de Desportos da Ilha das Flores. A equipa da Fajã perdeu o jogo por 2-1, alinhando com os seguintes jogadores: José Luís (de Abrão) (guarda-redes), Francisco Freitas, António Teodósio, Luís Pereira, José Pereira, Laurindo, João Gonçalves, Cristiano, Cardosinho, José Cardoso, Urbano e Nestor. O treinador era o Luís Fraga e os suplentes: José Gonçalves (avançado Grilo), Francisco Inácio, António Cardoso, José Furtado, António Dawling, Arnaldo e João Lourenço, José Rodrigues, este contratado apenas por ser carpinteiro e para consertar as balizas que se desfaziam facilmente com os portentosos remates.
Dizia, quem ainda o viu jogar, que o Nestor foi talvez o melhor jogador de sempre da Fajã Grande, tendo, no entanto, falecido bastante novo e a sua morte deveu-se ao próprio futebol. Anos mais tarde, durante um jogo já no campo das Furnas, a bola terá ido parar ao mar. Como só havia uma, o jogo parou e coube ao Nestor ir buscá-la, para o que teve que se atirar à água. Era Inverno e esta estava muito fria e o Nestor muito suado. O contacto com a água gelada ter-lhe-á provocado uma constipação, seguida de uma pneumonia e depois uma tuberculose que lhe foi fatal.
No dia 8 de Setembro de 1940, festa da Senhora da Saúde, foi inaugurado o campo das Furnas. Alguns jogadores já haviam abandonado a modalidade, entrando outros, entre os quais: Teodósio, Albano, José Fagundes, David Fagundes,(Semilhas), Roberto do Cristóvão, José Santos (da Ponta) e o Abrão que foi o melhor guarda redes de sempre da Fajã. Era voz corrente que em todos os jogos que realizou não sofreu um único golo. Nessa altura o Luís Fraga manteve-se como treinador.
Nos anos 50 o futebol renasceu e o novo clube, o Atlético passou a ter como principais jogadores: Abílio (Guarda-redes), João do Gil, Lucindo e Elviro, Edmundo Pereira, Teodósio, Albino, Álvaro de João Carlos, David do Raulino, Roberto do Cristóvão, Ângelo João Augusto, Mário do Raulino, Luís Cardoso, Manuel Cardoso (Matateu), Álvaro do Raulino, José Borges, António Nascimento, José Augusto e António Greves, entre outros.
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VIDA RURAL (NA ILHA DAS FLORES) NOS FINAIS DO SEC. XIX
Nunes da Rosa, no seu livro Pastorais do Mosteiro, descreve não apenas muitas paisagens e lugares das Flores como também o ambiente que se vivia, nos finais do século XIX, a mais pequena freguesia da ilha. Naturalmente que este ambiente era comum às outras freguesias, nomeadamente, à Fajã Grande que Nunes da Rosa visitava com frequência devido à sua grande amizade com o então pároco daquela freguesia, Francisco Vieira Bizarra.
É dele a seguinte descrição, transcrita do conto Cenas Triviais e em que os que partiam nas baleeiras recordam, com lágrimas e saudade, a beleza da sua freguesia:
…Os “festejos do Senhor Espírito Santo” numa alegria de foguetes e tambores, com muitas bandeiras e muitas flores, e os sinos vibrando estridulamente!... Nas manhãs perfumadas do trevo e do bafo morno das vacas, - a volta do leite, com as latas numa fervura de espuma, - o encontro certo da ranchada alegre das moças que vão à fonte!... As noitadas de festa ao toque da viola bailando a chamarrita, passeando a praia, batendo o pézinho, saltando alegres, cheios de vigor. As romarias à Fajã, a Nossa Senhora da Saúde, pelo tempo das maçãs, com jantares pelo fresco das hortas sobre toalhas alvas de linho, e a abundância de vinho bebido por cangirões de barro, por entre as macieiras, em grupos sadios de uma alegria ruidosa.
Os dias da lavoira, dois e três arados a riscar a terra, e cada qual apimponando a valentia da sua junta, à grande luz que banha as terras negras nos dias de sementeira farta!...
E depois as pequenas afeições domésticas: o Damasco e o Formoso, tão mansos tão luzidios!... A Vermelha tão bonita, estacada na relva, de cabeça e orelhas erguidas, a berrar em surdina, agitando a cauda!... O Calçado que bate todo o campo atrás dos coelhos, vindo depois cansado, com a língua vermelha saída por entre os dentes, a deitar-se junto do gado, ufano da valentia das suas pernas delgadas!... O murmúrio da grota ao pé dos álamos!... As risadas dos pequeninos irmãos!... O Terço da noite – a família toda reunida de mãos erguidas diante da imagem de Nossa Senhora, com padre nossos pelos que andam sobre as águas salgadas!... O carinho das mães que todos os dias lhes iam aconchegar as cobertas à cama fofa de musgo!... O jantar dos dias de festa, - ao meio da mesa a grande tigela vidrada, cheia de carne cozida, olorosa, e no prato de cada qual a grande sopa mole, com o seu raminho de hortelã, - e o pai, depois da sua inspecção de vista, a abençoar a comida….
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O AJUNTAMENTO DAS OVELHAS EM SÃO CAETANO
O Ti João do Monte, sentado na soleta da porta de sua casa, chapéu de abas largas na cabeça, calças de cotim suspensas por uns suspensórios já muito gastos e encardidos, albarcas a deixarem ver uns pés calejados e gretados, contava que outrora em São Caetano do Pico também havia ajuntamento das ovelhas nos baldios da serra, algo em tudo muito semelhante ao Fio da Fajã Grande, na ilha das Flores. Era no fim de setembro, dizia ele, por altura da festa do Senhor São Mateus, mas nunca nesse dia pois também na Prainha o dia de São Mateus era dia Santo, dia de dar pão e de o receber à tardinha.
Não havia cabeças como acontecia nas Flores e no Corvo. Eram os da Junta de Freguesia que faziam o arrolamento das ovelhas, dando autorização ao dono para as por a pastar nos baldios sob a administração da Câmara Municipal. Assim como na Fajã Grande, cada proprietário tinha o seu próprio sinal, ou seja marcas próprias que eram assinaladas com uma navalha nas orelhas do gado. E o tio João recordava o sinal das suas ovelhas: orelha direita traçada na ponta e duas mossas; orelha esquerda, rachada na parte de cima e um furo a meio.
Depois prosseguia:
- Madrugada muito cedo pastores e curiosos, largavam das suas casas a pé com seus farnéis no sarrão, um grande corno de boi cheio de vinho para a viagem amarrado com um cordão nas armelas colocadas nos dois extremos e pendurado ao ombro, e lá se iam encontrar não lugar da serra da Madalena, donde partiam todos juntos rumo aos baldios juntar o gado com a ajuda dos cães. À medida que iam apanhando o gado, iam-no concentrando no curral próprio. Depois do ajuntamento, comiam e bebiam e regressavam a pé, conduzindo o gado até à freguesia.
No lugar do costume, já na freguesia, havia sempre muita gente à espera de ver a chegada do gado. Juntavam-se as pessoas para ver aquela festa e os donos do gado a escolher novamente os seus animais, pelas marcas. Haviam pessoas que só tinham uma ou duas ovelhas, e pediam aos amigos que lhas procurassem e trouxessem, juntamente com as deles.
Nos dias seguintes, procedia-se à tosquia das ovelhas. Eram tosquiadas duas vezes por ano. Em Março, antes de irem para o baldio e em Setembro, após a chegada. Tosquiadas as ovelhas eram colocadas nas vinhas depois de vindimadas, sempre havia por ali umas ervas ainda verdes e outras já secas com que elas se entretinham.
- Era assim nos meus tempos de criança, - concluía Ti João do Monte, enrolando duas pitadas de tabaco numa folha de casca de milho que havia alisado muito bem com a sua navalhinha.
NB – As partes deste texto a itálico foram retiradas parcialmente de um texto publicado na Internet por António Silva, 31 de Março de 2009
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A DÉCIMA PRAGA DO EGITO E A CRUZ VERMELHA
Muitas das estórias que as nossas avós nos contavam nos nossos tempos de criança eram retiradas da Bíblia, embora lhe acrescentassem alguns pormenores ou fizessem algumas alterações, de acordo com os usos e costumes da freguesia, na altura. Uma dessas estórias, das mais emotivas e até arrepiante, era a das pragas do Egito, nomeadamente da décima praga – a Morte dos Primogénitos.
Contava a minha avó, depois de rezado o terço em família a que acrescentava uma série de Padre Nossos por alma dos falecidos e pela saúde dos vivos, que no tempo de Moisés, que era um homem bom e temente a Deus, o povo egípcio fora castigado com nove pragas a fim de que o Faraó se condoesse e libertasse o povo hebreu, deixando-o partir para a terra prometida. Mas o Faraó não se rendeu a tantas calamidades e sobre o seu povo havia cair a maior e a mais dramática praga de todas, a qual atingiria fatalmente o faraó e todos os egípcios: a morte de todos os primogénitos.
Assim, certo dia, Deus, cansado de tanta iniquidade e maledicência do faraó, chamou Moisés e disse-lhe:
- À meia-noite eu sairei pelo meio do Egito e todo o primogênito na terra do Egito morrerá, desde o primogênito de Faraó, que haveria de assentar-se sobre o seu trono, até ao primogênito da serva que está detrás da mó, e todo o primogênito dos animais. E haverá grande clamor em toda a terra do Egito, como nunca houve semelhante e nunca haverá.
Mas havia uma única exceção à tal mortandade, pois Deus ainda disse a Moisés:
- Mas entre todos os filhos de Israel nem mesmo um cão moverá a sua língua, desde os homens até aos animais, para que saibais que o Senhor fez diferença entre os egípcios e os hebreus. Na verdade Deus faz diferença entre justos e ímpios, entre Seus servos e aqueles que servem a outros deuses, ou às suas próprias paixões.
Então Deus marcou o dia e a hora em que seria enviada a décima praga e deu instruções a Moisés, a respeito dos hebreus assim como o que deveriam fazer para escapar à matança dos primogênitos. A ordem era que cada família hebreia deveria escolher um cordeirinho sem mácula, um macho de um ano. Durante a tarde e à mesma hora todos os cordeiros seriam sacrificados e a carne comida à tardinha, antes da partida. Mas antes, com o sangue do próprio cordeiro cada qual deveria pintar uma cruz na ombreira da porta da sua casa. O cordeiro inteiro seria assado no fogo e comido com pães ázimos ou seja com pão sem fermento, juntamente com ervas amargas. O que sobrasse da refeição seria queimado no fogo. Já os sacos a tiracolo, sapatos nos pés e cajados nas mãos, os hebreus deveriam comer o cordeiro apressadamente, para logo em seguida partirem. Durante a ceia o anjo do Senhor passaria por todas as casas matando os primogénitos. Porém nas casas assinaladas com a cruz vermelha, o anjo passaria à frente e os primogénitos dos hebreus seriam poupados e salvos da morte.
Todo o Egito foi atingido pela praga da morte dos primogênitos e mesmo nas casas em que o primogênito já havia morrido, o segundo filho foi morto. Até os egípcios que moravam noutras terras mais distantes foram atingidos e os seus primogénitos igualmente mortos.
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JOGRAIS (A ILHA DAS FLORES)
TODOS - Era uma vez uma ilha pequenina e distante mas coberta de bruma e de flores.
1.os SEIS – Onde as ribeiras corriam transparentes e cristalinas.
2.os SEIS – Com montes cobertos de árvores frondosas.
3.os SEIS – E em cujos ramos cresciam frutos apetitosos.
4.os SEIS – Uma ilha que o mar acariciava suavemente.
TODOS - Era uma ilha pequenina e distante mas coberta de bruma e de flores.
1ª METADE – Onde as manhãs nasciam claras mas repletas de incertezas.
2ª METADE – Onde, à tarde, o sol se tornava amarelado e pardacento.
1º VOZ – Uma ilha…
2ª VOZ – Onde o mar desafiava a esperança,
3ª VOZ – E a tempestade era maior do que a bonança.
TODOS – Era uma ilha pequenina e distante mas coberta de bruma e de flores.
4ª VOZ – Onde, no Inverno,
5ª VOZ - O vento, misturado com relâmpagos e trovões,
6ª VOZ – Rugia ferozmente
7ª VOZ - E cobria a ilha de tempestades rigorosas.
TODOS – E a ilha pequenina e distante mas coberta de bruma e de flores
1.os SEIS – Tornava-se mais pardacenta e escura.
2.os SEIS – O medo apoderava-se de todos.
3.os SEIS – Mas no verão…
8ª VOZ – O vento vestia-se de púrpura
9ª VOZ – E soprava levemente,
10ª VOZ - Embalando uma brisa doce e suave.
TODOS - E a ilha pequenina, distante mas coberta de bruma e de flores
4.os SEIS - Vestia-se de claridade e de esperança.
1.os SEIS – O sol
11ª VOZ – Descia levemente sobre os casebres
1ª METADE – E pintava os campos de um verde amarelado e fulvo.
2ª METADE – E amadurecia os milhos semeados nas belgas mais soalheiras e nos campos mais férteis.
TODOS - Na ilha pequenina e distante mas coberta de bruma e de flores.
1ª METADE – À noitinha,
12ª VOZ – Nas torres das igrejas,
13ª VOZ – Ouvia-se o toque suave das trindades.
2.os SEIS – Os homens com as mãos calejadas e os ombros doloridos
14ª VOZ – Regressavam dos matos carregados com latas de leite,
15ª VOZ – Suspensas em troncos de araçá,
16ª VOZ - Tapadas com ramos de queirós,
17ª VOZ - Tiravam, solenemente, o boné
18ª VOZ - E simulavam uma pequena oração.
3.os SEIS – As mulheres, robustas e mal vestidas,
19ª VOZ - Recolhiam a casa, com molhos de lenha ou de couves à cabeça,
20ª VOZ - Acompanhadas de garotos descalços.
21ª VOZ - Com monco a escorrer-lhes pelo nariz,
22ª VOZ -Agarrados aos saiotes das mães.
4.os SEIS – As velhinhas vestidas de negro e lenço a tapar-lhe a cara,
23ª VOZ - Sentadas às janelas de suas casas,
24ª VOZ -Esbagoavam as contas do rosário, bichanando impercetíveis ave-marias.
TODOS - Na ilha pequenina, distante mas coberta de bruma e de flores.
TODOS - Na ilha pequenina, distante mas coberta de bruma e de flores.
TODOS - Na ilha pequenina, distante mas coberta de bruma e de flores.
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PARA QUEM CANTOU O CUCO
Certa vez iam dois homens por uma vereda na direção dos campos para onde iam trabalhar. A vereda era rodeada de árvores. Em cima de uma delas estava um cuco que, ao ver os homens, começou a cantar. Diz um dos homens para o outro:
- Este cuco cantou para mim!
Estás bem enganado, - retorquiu o outro. - O cuco cantou foi para mim, até porque fui eu que o vi primeiro.
- Não, não. - Teimava o outro. – O cuco cantou foi para mim!
E tanto discutiram e tanto zaragatearan que acabaram por não se entenderem, agredindo-se mutuamente.
Tanta foi a disputa e tão grande foi o tumulto que resolveram levar o caso ao regedor da freguesia, que naqueles tempos também era Juiz de Paz, a fim de que este resolvesse a contenda.
Ao chegar junto do regedor contaram-lhe o que originara a desavenda entre eles, afirmando cada qual que o cuco cantara para si e não para o outro. O regedor pensou um pouco e, por fim, disse-lhes:
- Dêem-me ambos cinquenta escudos, a fim de pagar as custas do processo e o meu trabalho e eu vou analisar o caso e dizer para quem cantou o cuco. Depois devolverei os cinquenta escudos àquele para quem o cuco cantou.
Os homens fizeram como o regedor ordenara e colocaram o dinheiro em cima da mesa.
O regedor calou-se por alguns momentos. Depois pegando nas duas notas e, metendo-as ao bolso, disse:
- Afinal o cuco não cantou para nenhum de vocês. Cantou foi para mim!
(Conto antigo)
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COM OS MORTOS
(ANTERO DE QUENTAL)
Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...
E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos...
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.
Antero de Quental, in "Sonetos"
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A AJUDA DE TODOS OS SANTOS
“Para baixo todos os Santos ajudam.”
Adágio muito utilizado na Fajã Grande quase sempre no sentido real. Servia sobretudo com forma de incentivar quem. após uma subida árdua e difícil, iniciava a respetiva descida. Naturalmente que as inúmeras ladeiras que proliferavam pelos caminhos, canadas e veredas da freguesia e sobretudo a alta rocha que a flanqueava a leste contribuíam para que este adágio fosse utilizado com muita frequência.
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PROVÉRBIOS DE CASTANHAS
- A castanha é de quem a come e não de quem a apanha.
- A castanha e o besugo em fevereiro não têm sumo.
- A castanha em agosto a arder e em setembro a beber.
- A castanha tem três capas de inverno: a primeira mete medo, a segunda é lustrosa e a terceira é amarga.
- A castanha tem uma manha: vai com quem a apanha.
- A castanha veste três camisas: uma de tormentos, outra de estopa e outra de linho.
- A castanha amarela em agosto tem a tinta no rosto.
- Ao assar as castanhas, as que estouram são as mentiras dos presentes.
- Arreganha-te, castanha, que amanhã é o teu dia.
- As castanhas apanham-se quando caem.
- As castanhas para o caniço e o boneco para o porco.
- As folhas de castanheiro andam sete anos na terra e depois ainda voam.
- Castanha assada, pouco vale ou nada, a não ser untada.
- Castanha bichosa, castanha amargosa.
- Castanha peluda, castanha reboluda.
- Castanha perdida, castanha nascida.
- Castanha que está no caminho é do vizinho.
- Castanha quente só com aguardente, comida com água fria causa «azedia»
- Castanha semeada, p´ra nascer, arrebenta.
- Castanhas caídas, velhas ao souto.
- Castanhas do Natal sabem bem e partem-se mal.
- Castanhas idas, velhas pelos soutos.
- Castanheiro para a tua casa, corta-o em janeiro.
- Crescem os reboleiros, morrem os castanheiros.
- Cruas, assadas, cozidas ou engroladas, com todas as manhas, bem boas são as castanhas.
- De bom castanheiro, boa acha.
- De bom castanheiro, bom madeiro.
- De castanha em castanha (roubando) se faz a má manha.
- De castanheiro caído todos fazem lenha.
- Desde que a castanha estoira, leve o diabo o que ela tem dentro.
- Em ano de muito ouriço não faças caniço.
- Em minguante de janeiro, corta o teu castanheiro.
- Em setembro, antes de chover, o souto o arado quer ver.
- Folha amarela do castanheiro cai ao chão.
- Mais vale um castanheiro, que um saco de dinheiro.
- O castanheiro, para plantar, precisa ir na mão, o carvalho às costas e o sobreiro no carro.
- O Céu é de quem o ganha e a castanha de quem a apanha.
- O ouriço abriu, a castanha cai.
- Quando gear, o ouriço vai buscar.
- Quando o sol aperta, o ouriço arreganha.
- Quem castanhas come, madeira consome.
- Quem não sabe manhas, não come castanhas.
- Raiz de castanheiro, dá bom braseiro.
- Sete castanhas são um palmo de pão.
Fonte - Internet