PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A SOMBRA DA BOA ÁRVORE
“Quem ao pé da boa árvore se senta, boa sombra o cobre.”
As referências a árvores boas e, consequentemente, aos bons frutos que as mesmas davam eram uma constante nas pregações de novenas e festas, citando os Evangelhos: Toda árvore boa produz bons frutos, mas a árvore má dá frutos maus. Pelos seus frutos os conhecereis. É possível alguém colher uvas de um espinheiro ou figos das ervas daninhas? Outras vezes o Antigo Testamento: Ele será como uma árvore plantada junto às boas águas e que estende as suas raízes para o ribeiro. Uma árvore que não se afligirá quando chega o calor, porque as suas folhas estão sempre viçosas; não sofre de ansiedade durante o ano da seca nem deixará de dar seu fruto!
Naturalmente por tudo isto e pela experiência quotidiana que implicava uma conveniência permanente com as árvores, na Fajã Grande, antigamente, utilizava muito este adágio, mas em sentido figurado, uma vez que as pessoas eram comparadas às árvores e as suas ações aos frutos das mesmas. Assim, com este adágio pretendia-se simplesmente significar a importância das boas companhias, pese embora se cuidasse que estas eram difíceis de encontrar.
Que nos sentemos todos ao pé de boas árvores neste dealbar de 2017. Um Bom Ano para todos os visitantes e leitores do Pico da Vigia 2.
FELIZ ANO NOVO
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DEZEMBRO BOM
Que bom está este dezembro! Mais uma vez, tal como em 2014, este dezembro parece ter-se transformado num travesti da primavera. Brinda-nos com dias, é verdade que frios diria mesmo muito frios, mas claros, luminosos, cheios de sol, a abarrotar de calmaria, apesar de pequenos e cheios. Não há chuva, nem vento nem nuvens e o céu abre-se num abraço acolhedor, num impressionante elo de luminosidade entre o mar e o céu, ornando os montes e os vales duma sublimidade verde, reluzente e atrativa.
É doce, salutar e transcendente acordar neste verão de um santo qualquer que não de São Martinho, abrir a janela e sentir o astro rei a penetrar pela casa, a acordá-la do ronronar da noite, enchê-la de luz natural e doce, avivar-lhe os recantos mais escuros, a despeja-la do silêncio morno da noite. Se há lua na noite, a claridade do dia não se esconde em nuvens sonolentas, nem se aterroriza com tempestades invernais. Por isso, se o luar da noite é belo a claridade do dia não lhe fica atrás. É sublime! O problema será pensar-se que este sol, nunca seguirá o exemplo da lua, pelo que terá os seus dias contados, poderá muito bem nem sequer chagar a Janeiro. Mas recordemos que, afinal, dezembro não é todo outono. Uma pequena parte também inverno e não creio que este tenha a generosidade de, imitando este outono de dezembro também se trasvestir de primavera. Impossível.
Que assim seja janeiro do próximo 2017.
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A CANADA DA SILVEIRINHA/QUEIMADAS
A Silveirinha e as Queimadas eram dois lugares muito próximos e tinham fronteiras em comum. As Queimadas mais a oeste, do lado do Outeiro e da Pedra de Água, a Silveirinha mais a leste e consequentemente mais próximo da Rocha, no local do Cabeço da Rocha, ou seja entre a Rocha da Figueira e a da Escada-Mar. No entanto quem, na mais ocidental freguesia açoriana, se quisesse deslocar, através do caminho de acesso, da Silveirinha para as Queimadas ou vice-versa, teria que calcorrear uma enorme distância, uma vez que os caminhos de acesso a estas localidades e às que ladeavam uma e outra, tinha o respetivo cruzamento bastante cá em baixo, um pouco antes do Alagoeiro, no lugar designado por Cruzeiro, junto à Fábrica da Manteiga.
Mas os nossos antepassados eram muito práticos e para encurtar estas e muitas outras distâncias construíram as canadas. Assim aconteceu entre a Silveirinha e as Queimadas onde antigamente existia um Canada que recebera o nome dos dois lugares “Canada da Silveirinha/Queimadas.
A Canada da Silveirinha/Queimadas era uma minúscula, curta, estreita e sinuosa vereda, onde apenas podiam circular pessoas, estando interdita a animais. Isto pelo facto de na sua construção terem sido aproveitados maroiços e até algumas paredes que ladeavam os campos por onde se passava. Parte dela, inclusivamente, consistia no aproveitamento de parte de alguns terrenos. Era pois de difícil acesso embora muito prática e útil.
Hoje perdeu-se totalmente no espaço e no tempo permanecendo apenas na memória dos fajãgrandenses que por ali passaram muitas vezes, quando vindos da Escada-Mar e de outros lugares pretendiam descer pela Pedra de Água e chegar à Assomada mais depressa.
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O ARCO-DA-VELHA
Na Fajã Grande designava-se o Arco-Íris por Arco-da-Velha. Havia por ele um grande respeito, um certo temor porquanto de misticismo e de belo ele continha. Acreditava-se, inclusivamente, que no dia em que ele aparecesse de pernas para o ar, isto é, invertido, seria o fim do Mundo. Este fenómeno ótico recebeu nome da mitologia grega, onde Íris era uma deusa que exercia a função de arauto divino e que à sua passagem de mensageira, ao atravessar os céus, deixava um rastro de luminosidade multicolorido, mas na Fajã Grande era designado por Arco-da-Velha.
A razão da designação de Arco-da-Velha, no entanto não parece ser exclusiva da mais ocidental freguesia açoriana. Em muitas outras localidades o Arco-Íris é designado pelo mesmo nome. Segundo os mais entendidos, uma das explicações para designar aquele lindíssimo fenómeno atmosférico é a de que essa denominação foi criada graças à história bíblica de Noé, quando depois do dilúvio, Deus criou o Arco-Íris para demonstrar a sua aliança com o ser humano, e a promessa de que não voltaria a enviar outro dilúvio dessa magnitude. Assim, na expressão Arco-da-Velha, o termo velha representa a Velha Aliança que Deus formou com o Homem, por oposição `Nova Aliança trazida por Jesus Cristo, explicação que parece lógica porquanto o Arco-Íris também é conhecido como Arco-da-Aliança.
Reza assim o livro do Génesis, no que ao Arco-Íris diz respeito:
«Fez Jeová um pacto de paz com Noé, quando, depois de findo o Dilúvio, lhe disse: “Este é o sinal da aliança que faço entre mim e vós e todo o animal vivente que está convosco, para perpetuar gerações: o meu arco tenho nas nuvens, e será ele o sinal de uma aliança entre mim e a terra. Quando eu trouxer nuvens sobre a terra e aparecer o arco nas nuvens, então me lembrarei da minha aliança que está entre mim e vós e todo o animal vivente de toda a carne; as águas não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda a carne. O arco estará nas nuvens; olharei para ele, a fim de me lembrar da aliança eterna entre Deus e todo o animal vivente de toda a carne, que estará sobre a terra. Disse Deus a Noé: este é o sinal da aliança que tenho estabelecido entre mim e toda a carne que está sobre a terra”
Ligada ao Arco-da-Velha utilizava-se na Fajã Grande a seguinte expressão: Isto são coisa dos do Arco-da-Velha com a qual se pretendia significa que o que se referia eram assuntos ou coisas extraordinárias, incríveis, invulgares ou mirabolantes.
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OS POÇOS DO GADO
Terra de abundante criação de gado que circulava nas ruas diariamente exigia bebedouros públicos, designados por Poços do Gado.
Na Fajã Grande, sobretudo devido a um microclima específico, o gado bovino, especialmente as vacas leiteiras, eram criadas nos palheiros, durante todo o ano. No inverno, a fim de serem protegidas dos temporais, permaneciam nos palheiros durante a noite, sendo levadas para as relvas durante o dia. No verão, devido ao excessivo calor que se abatia sobre a freguesia, o gado recolhia aos palheiros de manhã e era levado para as pastagens à tardinha. Isto originava uma enorme deambulação de vacas pelas ruas da freguesia e estas necessitavam de água.
Essa a razão por que ao longo do tempo se construíram vários bebedouros nas várias ruas da freguesia. Os Poços do Gado eram grandes recipientes de forma retangular, construídos em cimento, com grande capacidade de armazenamento de água e sempre com uma torneira a alimentá-lo. Estes tanques estavam sempre cheios de água, uma vez que alguns tinham abastecimento contínuo de água e nos outros havia sempre quem se prontificasse a abrir a torneira, a fim de encher o poço. Num e noutro caso, muitas vezes a água, excedendo a capacidade do poço, jorrava abundantemente pelas ruas.
Na Fajã Grande existiam quatro Poços de Gado: um na Assomada, um no Alagoeiro, um na Tronqueira e um na Via d’Água. Mas como havia muitas grotas e ribeiras, era nestas também que os animais as suas deslocações diárias saciavam a sua sede.
Curiosamente os Poços do Gado também serviam para a ganapada brincar. Cuidando que eles eram o mar, era lá que se entretinham a ensaiar mirabolantes viagens com os seus pequeninos barcos de madeira, uns de grande qualidade outros mais toscos e desajeitados. Mas todos navegavam geralmente com destino a uma América distante no espaço mas perto na imaginação.
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UMA ESTÓRIA DE AMOR
Há dias, algures, li esta pequena mais interessante estória de amor. É de autor desconhecido e, a seguir, reproduzo-a de memória:
Conta-se que aos serviços de urgência do hospital de uma grande cidade chegou, certo dia um homem já de avançada a fim de fazer o curativo de um golpe profundo feito na mão direita.
Muito preocupado com a demora pediu urgência no atendimento, pois tinha um compromisso.
O médico que o atendia, curioso, perguntou-lhe o que tinha de tão urgente pra fazer.
O simpático senhor disse-lhe que todas as manhãs ia visitar a sua esposa que estava internada numa clínica da cidade, pois sofria doença de Alzheimer, já em fase muito avançada.
O médico, cuidando que o tratamento iria demorar bastante, retorquiu com alguma simplicidade, tentando desanuviar a preocupação do velhinho:
– Então hoje ela ficará muito preocupada com o seu atraso, pois o tratamento ainda irá demorar bastante tempo.
O velhinho respondeu:
– Não, ela não se vai preocupar por que ela já não sabe quem eu sou. Há quase cinco anos que ela não me reconhece.
O médico, prosseguindo a conversa, insistiu:
– Mas então para quê tanta pressa em ir vê-la, se ela já não o reconhece?
O velhinho, com um doce sorriso e, batendo de leve no ombro do médico, respondeu:
– Ela, na verdade, já não sabe quem eu sou… Mas eu sei muito bem quem ela é!
Concluía a história que o médico, comovido, teve que segurar suas lágrimas.
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A VISITA
Conta-se que numa certa aldeia muito pobre, perdida no meio dos montes vivia uma família muito rica mas também muito avarenta e vaidosa mas que era incapaz de partilhar o que quer que fosse com os pobres daquela localidade.
Na véspera de Natal a dona da casa ao acordar viu na sua frente um anjo que lhe disse:
- Trago-te uma boa notícia: nesta noite gloriosa de Natal, Jesus descerá do céu e virá visitar a tua casa!
A mulher ficou muito excitada e entusiasmadíssima. Nunca pensara ser digna de tão grande honra, nem que tão grande milagre acontecesse em sua casa. Apressou-se logo a tratar de tudo, a limpar e enfeitar a casa e a preparar um excelente jantar para receber Jesus. Encomendou as melhores carnes, saborosíssimos doces e vinhos de excelente qualidade. Do melhor que havia nos arredores.
Logo ao anoitecer, com a família toda reunida para a consoada, bateram à porta. A mulher correu a abrir. Era uma mulher muito pobre e desgraçada que vivia sozinha num palheiro, sem ter que comer e que passava os dias a pedir pela freguesia. Tinha um aspeto horroroso, com roupas miseráveis, rotas e sujas. Via-se bem que já sofrera muito. Vinha pedir uma esmola, mas a mulher pretensiosa e arrogante mandou-a embora, sem lhe dar, ao menos, uma côdea de pão.
Reza a história que ainda lhe bateram à porta, nessa noite, outros mendigos, mas o comportamento da mulher foi sempre de repulsa e até de indignação. Como era seu hábito, não deu nada a ninguém, chegando mesmo a aborrecer-se com os últimos que lhe bateram à porta a pedir esmola.
No entanto, sentados à mesa à espera de tão ilustre convidado, vendo que ele tardava os familiares começaram a indignar-se. Por fim, cansados de tanto esperar, contra a vontade da dona de casa lá foram consoando, sem a alegria e os festejos costumados em tão solene altura do ano. A mulher muito triste nem comeu e por fim foi deitar-se, demorando a adormecer.
Já de madrugada acordou sobressaltada e, com grande espanto, viu que estava junto dela o anjo que lhe anunciara a visita de Jesus. Indignou-se contra ele. Afinal tinha-a enganado!
Então o anjo explicou-lhe que afinal todos aqueles pobres que na noite anterior lhe tinham batido à porta, na verdade, é que eram Jesus.
A mulher comreendeu e nesse dia e nos dias seguintes começou a dar esmola a quantos pobres lhe batiam à porta.
(Adaptado de um conto popular)
BOAS FESTAS
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DIA DE NATAL
(POEMA DE ANTÓNIO GEDEÃO)
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
António Gedeão.
BOAS FESTAS
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A LENDA DA MISSA DO GALO
Conta-se, segundo antigas lendas, que a Missa do Galo teve a sua origem na província espanhola de Toledo, onde em tempos idos todos os lavradores, na Noite de Natal, matavam um galo em memória daquele que cantou três vezes quando Pedro negou Jesus. Consta também que a ave era levada para a igreja e oferecida aos pobres, a fim de que tivessem um almoço melhorado no dia de Natal.
Segundo outras lendas, em algumas aldeias portuguesas, antigamente, na Noite de Natal, o povo também levava um galo para a igreja, mas vivo a fim de que ele cantasse durante a missa. Quando o cantava todos ficavam felizes, pois isso representava o prenúncio de boas colheitas, no ano que se seguiria. Se o galo não cantasse era considerado um mau, pois era sinal de que o ano agrícola seria mau.
Nas Flores, porém e na Fajã Grande, cuidava-se que a missa da noite de Natal, era chamada de Missa do Galo, porque era celebrada a partir da meia-noite e a essa hora alguns galos já iniciavam as suas cantorias matinais.
BOAS FESTAS
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MATANÇA DO PORCO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
Quando eu era criança a matança do porco realizava-se de madrugada e era um dia de folia ou de festa para cada família. A preparação da matança começava muitos dias antes. Era preciso cortar lenha, serrá-la e fendê-la, ir buscar queirós ao Mato para o chamusco e cortar cana roca para secar o curral. Na véspera da matança era preciso o picar a cebola para as morcelas, cozer o pão e as escaldadas, preparar as comidas e comprar uma garrafa de aguardente. Eram convidados os familiares mais chegados, os vizinhos ou alguns amigos. O dia da matança começava cedo, com a chegada dos convidados e do matador que tomavam pequenos cálices de aguardente, para aquecer, coisa rara nos outros dias do ano. Depois enganava-se o porco para que saísse do chiqueiro, tapando de seguida a porta do mesmo para que o porco não voltasse a entrar e se escondesse durante a luta que se seguiria. Alguns homens mais afoitos saltavam para o curral, localizado regra geral atrás da cozinha da casa, tentando agarrar o animal e amarrá-lo pelos queixos. Era nestas alturas que o dono gostava de mostrar o porco aos convidados, com vaidade, pelo seu enorme porte e muita gordura. Depois o porco era puxado ou arrastado até junto da mesa onde era deitado num banco, preso pelos homens e morto com uma facada dirigida ao coração. O sangue era aparado num alguidar de barro por uma mulher e seria utilizado, mais tarde, para as morcelas. Depois de morto, o porco era “chamuscado”, com as queirós trazidas do Mato e que haviam sido postas a secar. Seguia-se a lavagem, a abertura e o esventramento do animal, que posteriormente, era dependurado de uma trave de uma loja, de uma casa velha ou até na cozinha. Depois era o almoço em que se comia, peixe, feijão assado, carne de ovelha e caçoila do porco. À tarde o principal trabalho da matança cabia às mulheres; lavar as tripas, encher e cozer as morcelas, depois dependurá-las nos fumeiros da chaminé. A meio da tarde, amigos da família, expressamente convidados para o efeito, vinham ver o porco, e provar a caçoila, os inhames, as iscas de figo e um copo de vinho. Depois jogavam às cartas e as crianças jogavam à bola com a bexiga. À tardinha, desmanchava-se o porco, picava-se e temperava-se a carne das linguiças e à noite já se comiam bifes e morcelas. No dia seguinte derretiam-se os torresmos e salgavam-se os ossos que eram guardados numa salgadeira. Minha mãe mandava-me sempre ir levar uma posta de carne e toucinho a casa de alguma pessoa a quem devesse favores.
Era assim as matanças de porco na minha casa, quando eu era criança e que afinal eram muito parecidas com as de hoje.
BOAS FESTAS
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A CASA DE GEMILDO OU A MANSÃO PROTETORA
Suldemansul era uma cidade assolada pela guerra. Apesar de tudo, naquela tarde de agosto fora invadida por milhares de forasteiros que ali procuravam abrigo e proteção. Suldemamsul transformou-se num mar de gente. Ao povo ali reunido na tentativa de procurar proteção juntavam-se guerreiros, vindo dos arredores. Todos se haviam reunido numa pequena praça, em frente ao rude templo românico, com um portal de arco redondo e paredes escuras, cujas portas se haviam aberto. Os sinos dobravam em sinal de alarme. Ao lado a meia dúzia de casas de ricos-homens, entre as quais se erguia-se a mansão do honrado Gerolmido Pais. Era uma casa enorme e esbranquiçada, a contrastar com o escuro do templo e dos casebres que circundavam Suldemansul. A frente, voltada para uma pequena praça, precedida de um ádito, era rodeado por um muro coberto de heras, begónias e orcínias e rasgada por diversas janelas e duas enormes portas. A maior abria-se apenas em dias de grande solenidade e dava para um corredor escuro e comprido, ladeado por portas que conduziam aos quartos e salas. Ao fundo, do lado direito de quem entrava, uma enorme sala, com uma mesa monumental, onde eram servidos os lautos banquetes durante as festanças em que o quotidiano do honrado comerciante era profícuo. Do lado esquerdo a cozinha, onde criados labutavam na preparação de comida para os refugiados.
Estávamos em plena Idade Média.
BOAS FESTAS
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AMÉRICA NEGRA
Como muitos outros jovens Débora tinha um sonho. Emigrar. Emigrar para a América, para a América de onde chegavam sacas de roupa e cartas com dolas. Além disso, sobretudo no verão, chegavam à freguesia, americanos riquíssimos. O sonho concretizou-se e aos dezoito anos Débora emigrou na companhia dos pais para a Califórnia. Pretendiam os seus progenitores, sobretudo e em primeiro lugar, dar um futuro melhor à filha. A vida, ali na ilha, estava cerceada pela pobreza, pelo trabalho árduo, pelo futuro incerto.
Rumaram à Califórnia e fixaram-se em São José.
Os primeiros anos na Califórnia da família Menezes foram muito bem-sucedidos. O pai cedo se dedicou a grandes negócios que cresciam de dia para dia, enquanto a família prosperava avassaladoramente, impondo-se com prestígio na sociedade americana. Cada vez mais se concretizavam os sonhos de Débora.
Mas com o tempo, algumas nuvens escuras começaram a toldar-lhe o universo dos seus sonhos! E um dia, Débora, inesperadamente, decidiu mudar-se de São José para Morgan Hill. A mãe acompanhou-a. A vida e os costumes da cidade mais açoriana da Califórnia haviam-lhe toldado o espírito e enegrecido a alma. Além disso, desde há muito que a mãe se havia separado do marido, embora não se tendo divorciado e Débora que sempre a havia, condenando o pai por uma conduta de vida aparentemente nada abonável a uma almejada harmonia familiar, não queria permanecer lado a lado com quem havia trazido, a ela e à mãe, tantos dissabores, tristezas e sofrimento. A escolha de Morgan Hill foi fácil, uma vez que era lá que morava a avó, embora sozinha e de avançada idade. A companhia da filha e da neta foram pois consideradas por Dona Ilda como um milagre divino, uma bênção de Deus.
Disposta a angariar qualquer tipo de trabalho, Débora, agora já senhora de uma beleza invulgar e de um corpo elegantíssimo, foi convidada a trabalhar numa agência de viagens pertencente a Mr Faucetty.
Na próspera empresa, Débora depressa se impôs pela sua dedicação, pela qualidade do seu trabalho e pela excelência do seu profissionalismo. Assédio após assédio obrigaram-na a, alguns anos depois, abandonar a Faucetty. Com a experiência adquirida no ramo e com uma enorme força de vontade, Débora criou a sua própria agência. Um sucesso!
Passado algum tempo e após a morte da avó, porém, Débora recebe uma intimação judicial por várias e altíssimas dívidas contraídas pelo pai, também falecido por essa altura e quer ela quer a mãe desconheciam. Todos os seus bens, incluindo a agência de viagens que com tanto sucesso havia criado, foram arrestados. O desgosto, a angústia e o sofrimento foram tão grandes que a mãe, algum tempo depois se suicidou. Débora entrou num desespero tremendo.
Valeu-lhe a amiga Grazy, que a acolheu em sua casa como se duma irmã se tratasse. Mais tarde, através da amiga conheceu um descendente de um casal açoriano, da ilha do Pico, de nome Alex Rodrigues, um dos maiores produtores de tomate da Califórnia. Alex encantou-se com a beleza, a bondade e inocência de Débora que, inesperadamente se apaixonou-se por ele.
Mas a paixão Débora por Alex foi efémera e depressa chegou ao fim. O ricaço produtor de tomate cedo deixou resvalar as suas malévolas intenções. Possuía negócios escuros e aberrantes que passavam por angariação de jovens para prostituição de luxo em hotéis de São Francisco, Okland e Sacramento. Mais se indignou Débora ao tomar conhecimento de que assim como a enganara a ela, Alex já ludibriara muitas outras jovens.
A intenção de se reaproximar de Débora permaneceu no espírito de Alex. Persistindo em conquistá-la, voltou a seduzi-la, através de uma empresa fictícia que contratava jovens para vendedoras de cosméticos. Obcecada pela necessidade de encontrar trabalho que permitisse uma subsistência digna e desconhecendo que a empresa pertencia ao meliante que a ludibriara, Débora decidiu concorrer, sendo de imediato contratada.
Nunca soube que a agência era de Alex, mas voltando a dar conta do logro em que havia caído mais uma vez, volta a desesperar. O espectro do suicido da mãe começava a pairar sobre ela. Viveu tempos de dor de angústia e sofrimento, acabando por mudar-se para o norte.
Hoje Débora vive numa pequena e humilde casa em Cleorant, nos arredores da pequena cidade de Etna, no condado de Siskiyou, no norte da Califórnia, prestando serviços de limpeza numa pequena escola e trabalhando um quintal que possui junto da própria casa.
BOAS FESTAS
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O INVERNO (DIÁRIO DE TI’ANTONHO)
O inverno aqui na Fajã Grande é terrível. Há dias em que quase nem se pode sair de casa. O vento é fortíssimo e a chuva torrencial. As pessoas recolhem-se, como os grilos, nos seus esconderijos. Os homens juntam-se em qualquer sítio mais abrigado, a falquejar e a descansar, ou numa casa velha a jogar às cartas, enquanto as mulheres ficam em casa, a limpar, a arrumar armários, a consertar o que está à espera de reparos, a costurar, a fiar, a cardar e a fazer outros trabalhos
O inverno aqui, na verdade, é muito rigoroso, por vezes até chove pedra.
Mas é nesta estação do ano que as pessoas convivem mais, ficam mais solidárias, se ajudam mais, porque ficam mais tempo juntas. Para além de se juntarem ao serão, passam muitas tardes e até manhãs juntos, uma vez que não podem ir para os campos trabalhar. É sobretudo no dia de matar o porco que as pessoas se juntam e convivem muito.
É verdade que o inverno principia no Hemisfério Norte mais ou menos no dia 21 de dezembro, quando ocorre o tradicional Solstício de Inverno, nesta data a noite torna-se a mais longa do ano, mas aqui na Fajã Grande, o inverno começa muito antes, pois a partir do princípio de novembro o tempo já é muito rigoroso, prolongando-se o mau tempo até fevereiro e março. Durante este longo período de tempo a Fajã Grande é assolada, com muita frequência, por violentas tempestades, acompanhas de trovões fortíssimos e relâmpagos assustadores. Para se proteger de tão assustadores catástrofes ou para implorar que elas se afastassem, o povo volta-se para Santa Bárbara, exclamando: Santa Bárbara luz divina! Na verdade é a esta santa que, nestes momentos de angústia e aflição, o povo implorava e pede auxílio, uma vez que a Santa é considerada protetora por ocasião de tempestades, raios e trovões. Esta devoção à santa, apenas nos momentos das tempestades levou, inclusivamente, à criação de um adágio muito utilizado na freguesia: Só te lembras de Santa Bárbara quando faz trovões.
Mas o inverno também é uma estação triste. Há dias em que as ruas da freguesia parecem desertas e despovoadas. Apenas as lojas estão abertas e muitos ali se juntam, para descansar.
BOAS FESTAS
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BOM BARQUEIRO
Outro jogo a que se dedicavam as crianças, nas ruas, nos dias de festa, nas Casas do Espírito Santo, especialmente na semana que antecedia a festa, ou nos recreios da escola era o Bom Barqueiro.
Formando uma coluna, os participantes, em número variável, cantarolavam:
– Bom barqueiro,
Bom barqueiro,
Deixai-nos passar.
Somos filhos pequeninos
Para acabar de criar.
– Passarás, passarás,
Mas algum há-de ficar.
Se não for o da frente,
Há-de ser o de trás,
Trás, trás.
Eram escolhidos dois elementos para fazer de ponte. Levantando os braços, davam as mãos, abrindo-as lá no alto. Sem que os outros participantes ouvissem, cada um dos que formavam a ponte escolhia um fruto, ou uma cor, ou um lugar, ou um animal, ou um objeto, ou outra coisa qualquer. As outras crianças formavam uma fila, uma espécie de comboio dando voltas por baixo da ponte cantando:
Passarei, passarei,
Deixai-me passar
Porque tenho filhos pequeninos
Não mos deixam criar.
Ao passar mais uma vez por baixo das duas outras crianças que têm as mãos em arco a formar a ponte, a última criança da fila ficava presa e uma das duas crianças perguntava-lhe se queria ser o que uma ou a outra combinou ser mas que a criança presa desconhecia. Por exemplo:
– Queres ser baleia ou bote?
Conforme a escolha, a criança passava para trás da que escolhera, sem que os outros soubessem o que tinha escolhido, formando uma nova fila. No fim, cada criança ficava do lado da ponte que escolhera, formando duas filas agarradas aos que formavam a ponte. Faziam um risco no chão, ficando um grupo de cada lado com a mão presa na cintura do que ficava à frente e começam a puxar. Quem pisasse o risco ou quem quebrasse o cordão, perdia o jogo, sendo que, por vezes o equilibro de forças era muito desigual, outras mais equilibrado e lá caíam todos em cima uns dos outros. Era uma festa!
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EXUBERANTE GENEROSIDADE
Nasceu a 9 de Dezembro de 1946, na freguesia da Relva, São Miguel, no seio de uma família profundamente religiosa, sendo sobrinho do então Reitor do Santuário de Santo Cristo, Monsenhor José Gomes, o mais alto dignitário da diocese açoriana, na ilha do Arcanjo. Em 1957, ainda muito jovem e devido à sua extraordinária inteligência e enorme vontade de aprender, entrou para o Seminário de Ponta Delgada e, dois anos depois, rumou ao de Angra, onde fez toda a sua formação, completando o Curso de Teologia em 1969. No entanto, devido ao facto de não possuir a idade canónica prescrita para a ordenação, aguardou algum tempo, como diácono, sendo, ordenado apenas em Setembro do mesmo ano. No Seminário revelou-se um aluno muito estudioso, cumpridor e aplicado, preocupando-se, permanentemente, na luta por uma acção pastoral vivificante, na defesa de uma Igreja mais próxima dos valores evangélicos e com a implementação das reformas e da doutrina do Concílio Vaticano II. Foi colocado, primeiro, como prefeito e professor no Seminário Colégio de Santo Cristo e, mais tarde, como capelão do Aeroporto de Santa Maria, ilha de que foi Vigário Episcopal. Em 1981 foi estudar para Roma, licenciando-se em Teologia Pastoral, pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Regressando aos Açores, foi colocado como professor no Seminário de Angra e Director do Serviço Diocesano de Catequese. Em 1987 foi nomeado pároco de S. Pedro de Ponta Delgada, exercendo também o cargo de Vigário Episcopal para a Pastoral Diocesana. Actualmente é pároco da sua freguesia natal, a Relva, exercendo as mesmas funções na paróquia da Covoada. Foi durante vários anos Director do Serviço Diocesano de Apoio à Pastoral Escolar e, actualmente, é Ouvidor de Ponta Delgada. Paralelamente à sua intensa e profícua actividade pastoral, tem-se dedicado ao ensino da disciplina de EMRC, nas escolas oficiais. Para além de muitos textos publicados em revistas e jornais de índole religiosa, é autor do livro "A catequese na comunidade de Nossa Senhora das Neves".
Chegou ao Encontro carregado de gigantescos e ternurentos abraços e com uma enorme alegria de todos rever e de todos reencontrar. Nas suas atitudes, gestos e palavras transpareceu, sempre, uma alegria contagiante, uma satisfação incontida, um contentamento acolhedor e uma vontade enorme de partilhar aquele infindável rosário de memórias que tanto nos une, pese embora separados, agora, pelo espaço e pelo tempo. Senhor de uma permanente boa disposição, de uma extraordinária e generosa capacidade de convívio e duma dignidade intransigente, excedeu-se numa exuberância gratificante, em manifestações de júbilo acolhedoras e em partilhar os mais nobres sentimentos que a amizade humana encerra. Participou no celebérrimo jogo de futebol, com tal empenhamento que se deu ao luxo de estar a ler o jornal, durante toda a partida. Se não inédito, pelo menos pouco vulgar. Infelizmente as obrigações pastorais obrigaram-no a regressar, a São Miguel, mais cedo, cerceando, assim, a sua presença no domingo. Por tudo isso tornou-se mais um dos “Senhores” do Encontro.
BOAS FESTAS
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UMA NAMORADA QUE ERA FEITICEIRA
Da autoria da conceituada escritora Ângela Furtado Brum, transcrevo a seguir a interessante lenda Uma Namorada que era Feiticeira, lenda integrada no imaginário histórico da freguesia da Fajã Grande das Flores:
Há uns anos atrás havia um rapaz da Fajã Grande, nas Flores, que estava a namorar com uma rapariga órfã de pai e que vivia só com a mãe. Ele, depois de acabar o trabalho, lavava-se, mudava-se de roupa, ceava e ia fazer serão para casa da namorada. Falavam de tudo. Do que ia ser a sua vida, de como ia ser a sua casa e outras vezes contavam histórias. Um dia, começaram a falar de feiticeiras. O rapaz ria e brincava:
- Feiticeiras!? Agora... Quem me dera ver uma!
- Não digas que não há, olha que é certo! - Insistia a rapariga.
- Sim, sim… tu é que és a minha feiticeira! - Concordava o rapaz para não discutirem.
No entretanto o tempo ia passando. Chegada a hora, o rapaz despediu-se e saiu para o escuro da noite. Quando já tinha andado um bocado de caminho e estava quase a chegar a casa, duas cabras saíram dum pátio e deram um salto para a frente dele.
- Ó diabo, pois eu fui deitar vocês na rocha, vocês até agora nunca saíram de lá e como é que estão aqui?! - Disse o rapaz, julgando, com o escuro, que eram as suas duas cabrinhas.
Tentou apanhá-las para as amarrar, mas, os animais, que eram habitualmente mansos, davam um salto e ficavam adiante e ele não conseguia pôr-lhes a mão. Já estava a ficar aborrecido e, como estava ao pé do portão de casa, pegou num buxeiro que era do pai e estava ali ao pé da parede. Passou-o a uma das cabras, fincou-lhe a pele, fez-lhe sangue e logo ela se transformou na namorada. O rapaz não podia acreditar no que via e disse:
- Oh! Vai-te com o diabo!... E olha que é verdade que há mesmo feiticeiras. E logo quem... Vai-te embora que não quero mais saber de ti!
- Não, não é assim, tu tens que me ir pôr em casa! - Respondeu a rapariga decidida...
O rapaz teimou que não ia, que o que queria era vê-la longe, que nunca mais punha os pés em casa dela. Mas, por fim, não teve remédio senão concordar. Ela então disse-lhe:
- Vira-te para trás!
Ele virou-se e ficou logo à porta da casa da rapariga. Voltou para sua casa e todo o caminho veio maldizendo a sua vida e o que lhe havia de ter acontecido. Nunca mais quis saber de tal mulher, mas ela perseguia-o sempre e assim aconteceu até ao fim da vida.
BOAS FESTAS
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BRINCAR AO ARAME
O arame era uma enorme extensão de fio de aço bem esticado e preso nas extremidades a enormes vergas de madeira, umas lá no cimo da alta Rocha da Fajã e outras cá em baixo, numa espécie de espojadoiro, para tal construído. O arame formava com a rocha e o caminho paralelo à Ribeira e que dava para a Figueira, uma espécie de triângulo rectângulo do qual constituía como que uma real e verdadeira hipotenusa. Assim, fixando-se rijamente de alto abaixo da rocha em diagonal, os molhos, presos por fortes ganchos de ferro em forma de S ou de C, eram nele colocados, um a um e deslizavam vagarosa mas airosamente, como que dançando e balouçando-se ao longo do arame, ao sabor do vento e da gravidade, até atingirem, por vezes, enorme velocidade, e chegarem cá abaixo, donde eram imediatamente retirados.
Na Fajã Grande, ladeada a oeste por uma infinidade de rochas, existiam pelo menos mais três ou quatro arames: um na Rocha da Ponta, um na dos Paus Brancos e outro no Cabeço da Rocha, mas o principal e mais utilizado era realmente “o Arame da Ribeira”. O arame, inevitavelmente, fazia parte da vida quotidiana fajãgrandense.
Ora a ganapada de outros tempos, sem brinquedos de plásticos e sem ipads e consolas, brincava com aquilo com que via os pais trabalharem no seu dia-a-dia. Era assim com as vacas de sabugo ou de favas, com os barcos de madeira, com a máquina de desnatar leite de batata branca, com os porquinhos de batata-doce, com as cadeirinhas de junco e com tantas outras coisas. Uma delas era brincar ao arame.
Para brincar ao arame, normalmente, procurava-se um local ou um sítio desnivelado. O estaleiro do milho era o mais utilizado. Outras vezes um maroiço, uma parede, um pátio mais alto ou até a janela de uma casa velha. Depois arranjava-se um fio de barbante ou outro qualquer, por vezes até uma espadana desfiada e muito bem atada, sem que os nós se salientassem em demasia. Amarrava-se uma das extremidades do fio no alto e outra no chão e esticava-se bem. Os ganchos eram feitos de pedacinhos de arame que se encontrava por aqui e por ali. Quando não se tinha arame recorria-se a um garrancho de lenha de incenso ou faia, que formasse um v invertido. Os molhinhos eram feitos do que havia mais à mão: fochos, sabugos, ramos de árvores, por vezes até uma pequena pedra. Todos estes artefactos eram amarrados com fios de espadana, presos nos ganchinhos e uma vez pendurados no fio, começavam a deslizar por ele abaixo como desciam os molhos dos nossos pais colocam lá no alto da Rocha, através do Arame da Ribeira ou dos outros existentes na freguesia
Uma brincadeira encantadora, esta do arame.
BOAS FESTAS
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SÂNDALO
“Sê como a árvore do sândalo, que perfuma até o machado que a corta.”
Tagore
BOAS FESTAS
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O CORVO E A RAPOSA
Certa vez um corvo pousou no cimo duma árvore, com um saborosíssimo queijo no bico, que roubara da casa de um lavrador. O queijo era muito apetitoso e cheirava que era um consolo. Assim atraída pelo cheiro do queijo, aproximou-se da árvore uma raposa. Como estivesse muito esfomeada, pois já não comia há três dias, tinha uma enorme vontade de papar aquele queijo. Como não conseguia subir a árvore e atacar o corvo para lhe tirar o queijo, a raposa resolveu usar a sua matreira inteligência em benefício próprio.
- Bom dia amigo Corvo! - Disse com bons modos a matreira.
O corvo olhou-a lá do alto e fez uma saudação balançando a cabeça mudo que nem uma parede. A raposa insistiu:
- Ouvi dizer que o rouxinol tem o canto mais belo de toda a floresta. Mas eu aposto que tu, meu amigo, se experimentasses cantar um pouquinho que fosse, cantarias muito melhor do que qualquer outro animal.
Sentindo-se desafiado e querendo provar seu valor, o corvo abriu o bico para cantar. Foi quando o queijo lhe caiu da boca e foi direto para chão, caindo perto do local onde estava a raposa que logo o apanhou, fugindo apressadamente, enquanto o corvo permanecia quedo lá em cima, sem perceber como tinha caído em tamanha esparrela.
BOAS FESTAS
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BULOVA
O meu primeiro relógio de pulso foi um Bulova. Tinha eu onze anos. Chegou muito bem embrulhadinho e escondido entre peças de roupa numa encomenda que veio da América. O embrulho vinha com o meu nome e, sem sombra de dúvida, eu era o destinatário legítimo daquela deslumbrante e maravilhosa máquina.
Regozijei de contentamento. Ter um relógio de pulso era coisa rara na freguesia, sobretudo entre as crianças. Muito contente, bem o quis levar para a escola no dia seguinte. Impossível:
- Para dar cabo dele! Nem pensar. – Decretou minha irmã e acrescentou:
- Além disso, usar um relógio de pulso e andar descalço é uma vergonha. Todos se iam rir de ti.
Na verdade, na Fajã Grande, naqueles tempos, dizia-se que não ficava bem usar um relógio de pulso e andar descalço. Era uma tremenda contradição. Por isso passei a usar o meu Bulova somente aos domingos e na hora da missa, único momento da semana em que andava calçado. Apenas no setembro seguinte, quando embarquei para São Miguel a bordo do Carvalho Araújo, a fim de estudar no Seminário Menor, passei a usar o meu Bulova durante todos os dias, porque a partir de então andava calçado.
O Bulova, no entanto, era de segunda ou terceira mão e muito usado pelo que passado algum tempo avariou. Foi o Senhor António Lourenço que me o consertou quando regressei à Fajã, no verão seguinte. Além disso no Seminário não tive grande sucesso com ele, chegando a ser alvo de chacota, porquanto, devido à sua pequena dimensão e ao seu formato retangular, foi considerado por quantos expertos nesta matéria o viam, um relógio de senhora.
- De senhora qual o quê! – Retorquiu o Senhor António Lourenço quando, depois de consertar, o coloquei perante tal imbróglio e esclareceu:
- Olha, tens aqui um bom relógio, um Bulova. Os relógios Bulova são de altíssima precisão e de excelente qualidade. São dos melhores que há no mundo.
Na verdade, algum tempo mais tarde, soube que Bulova é uma indústria de relógios de pulso fundada em 1875 por Joseph Bulova, um imigrante da Tchecoslováquia que em 1870 foi morar nos Estados Unidos. Joseph trabalhou por cinco anos na empresa Tiffany e Young & Ellis. Aos 23 anos de idade abriu uma joalharia de pequeno porte em Maiden Lane, em Nova York, num local próximo da Wall Street, onde se concentrava a indústria joalheira da cidade.
Concentrando o seu estoque em relógios de mesa e de bolso todos de alta qualidade, Bulova prosperou e suas vendas cresceram rápido nos primeiros 35 anos de sua empresa.
Com o crescimento de sua empresa, Joseph mudou sua sede para um endereço de muito prestígio, o número 580 da 5ª Avenida, onde pouco tempo depois instalou o Observatório Bulova, o primeiro observatório instalado no alto de um arranha-céu, comandado por um matemático da época que registrava todas as suas observações eletronicamente. Tratava-se de uma estratégia muito avançada para aquela época. Posteriormente as observações recolhidas eram enviadas para um cronógrafo instalado a dezenas de metros abaixo, orientando todos os relojoeiros de sua empresa na manutenção de uma hora precisa.
E verdade é que o meu Bulova nunca mais avariou e durou muitos anos.
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A IGREJA DA FAJÃZINHA
A igreja da Fajãzinha, a par com a de Santa Cruz, é um dos mais emblemáticos templos da ilha das Flores. Situada na parte mais alta da freguesa, já no enfiamento do antigo caminho da Rocha dos Bredos, outrora roteiro obrigatório de quem seguia para as vilas e outras freguesias da ilha, tem a ladeá-la um adro murado mas cujo pavimento se situa abaixo do nível da rua, sendo o acesso ao templo feito por uma ampla escadaria. O edifício, de grandes dimensões, é composto por um corpo principal, que é ocupado pelas três naves do templo, por um corpo mais estreito onde se situa a capela-mor, pela torre sineira situada do lado esquerdo da fachada principal, pela sacristia do lado nascente e por um anexo do lado poente.
A fachada principal, imponente e altiva, está enquadrada pelo soco, pela torre sineira, pelo cunhal direito e por uma cornija que se estende à torre sineira e às fachadas laterais. Divide-se em três secções verticais por meio de pilastras. Cada secção tem uma porta encimada por um vão ao nível do coro. As portas laterais são encimadas por janelas com cornija, emolduradas por uma faixa bojuda que define também um avental com almofada retangular em relevo e ainda contorna as portas e remata superiormente o soco absorvendo as bases das pilastras. A porta central é ladeada por duas meias colunas com o capitel decorado com motivos florais. Sobre os extremos do entablamento da porta principal assentam dois meios-pináculos que se prolongam numa moldura bojuda que envolve um óculo quadrilobado. Nesta fachada ainda há um óculo e uma cartela, enquadrada por duas volutas em relevo, com uma inscrição, indicando o nome do pároco que a edificou, o padre Alexandre Pimentel de Mesquita e o ano da construção 1778. Lá no alto e sobre a cornija da fachada assenta um frontão dividido em três secções. No tímpano da secção central há um óculo circular emoldurado por um quadrado. O remate superior da secção central é feito por duas volutas que elevam até uma cruz em ferro. Sobre o cunhal direito e sobre as duas pilastras há pináculos.
A torre sineira situada a nascente está dividida em dois níveis pelo prolongamento da cornija da fachada principal. O nível inferior, mais alto, tem uma lápide onde se lê que foi edificada com esmolas dos devotos em 1898, portanto muito depois do templo. Os vãos dos sinos, situados no nível superior, são rematados em arco de volta inteira. A torre tem no cimo uma cornija e encimada por um coruchéu octogonal.
Na fachada posterior do corpo principal existem dois óculos em forma de losango correspondentes aos topos das naves laterais.
O corpo principal divide-se interiormente em três naves separadas por duas fiadas de arcos de volta inteira, num total de cinco, apoiados em pilares de secção quadrangular com bases e capitéis salientes. O coro alto, construído em madeira, situa-se sobre a entrada, ocupando o espaço correspondente ao primeiro tramo das naves. Sob o coro, do lado do evangelho, há uma porta de acesso ao batistério que se situa no corpo da torre, porta esta rematada em arco de volta inteira e de em madeira recortada. No terceiro pilar a contar da entrada, do lado do evangelho, há um púlpito com consola em pedra aparentemente suportada por uma mísula de madeira. É acessível por uma escada também em pedra que envolve o pilar. No quinto tramo, em cada parede das naves laterais, está embutido um arco igual aos arcos separadores das naves que sugere a passagem para os braços de um transepto inexistente, onde se encontra uma porta e uma janela apoiada numa cornija que une as impostas do arco. O arco triunfal da capela-mor é de volta inteira assente em impostas. Os tetos das naves e da capela-mor são em madeira simulando abóbadas de berço que assentam em grandes cornijas.
Sabe-se que outrora, nas imediações deste templo, existiu uma primitiva igreja construída por volta de 1675 e que seria dedicada, como a atual, a Nossa Senhora dos Remédios.
BOAS FESTAS
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DEMOGRAFIA E ECONOMIA
A Wikipédia, a enciclopédia livre da Internet, descreve assim a demografia e a economia da mais ocidental freguesia açoriana:
The escarpment surrounds the community composed of three nuclei: Fajã Grande (the largest population), Ponta da Fajã Grande (a narrow strip between the coast and Rocha da Fajã), and Cuada (a settlement located on a plateau bordering the parish of Fajãzinha to the south). Cuada, for many years, was a collection of uninhabited homes, but today it has been rejuvenated by rural tourism, and classified as an Area of Municipal Interest.
The port at Fajã Grande, once an important commercial port, has lost much of its importance and is now used recreationally and, only rarely, for disembarking commercial goods. The entire zone is valued for its coastal waters, attracting both swimmers and surfers from around the island.
Between 1960 and 1980, approximately 60% of the active population emigrated to the United States and Canada
Economy:
Fajã Grande had always been characterized by its land and connection to the sea, resulting in a considerable part of its population employed in the primary industries (about 50%), that included agriculture, livestock husbandry and fishing. Over time, secondary industries began to occupy a greater part of the local activities (but generally hovered around 20% of activities), and primarily tourism, commerce and complimentary services.
Numa tradução livre, penso que a mensagem será muito próxima da seguinte:
A escarpa onde se localiza a Fajã Grande é composta por três povoados: a Fajã Grande, o maior dos três lugares, a Ponta da Fajã Grande, formada por uma estreita faixa entre o litoral e a Rocha e a Cuada, a sul, situada sobre um planalto na fronteira com a freguesia de Fajãzinha. A Cuada esteve despovoada durante muitos anos, mas atualmente foi recuperada pelo turismo rural, e classificada como uma Área de Interesse Municipal.
O porto da Fajã Grande, outrora um importante porto comercial, perdeu grande parte da sua importância e atualmente é, apenas, utilizado como porto de recreio, sendo muito raramente, aproveitado para fins comerciais. Toda a zona da orla costureira é muito apreciada devido à qualidade das suas águas, atraindo tanto os nadadores como os surfistas de toda a ilha.
Entre 1960 e 1980, aproximadamente 60% da população ativa da freguesia emigrou para os Estados Unidos e Canadá.
No que à economia diz respeito, a freguesia da Fajã Grande sempre se caracterizou pela exploração da terra e pela ligação ao mar. Assim a maioria da sua população dedica-se ao setor primário, nomeadamente à agricultura, à pecuária e à pesca. Ao longo do tempo, as indústrias secundárias começaram a desenvolver-se e a ocupar uma grande parte da população, nunca ultrapassando, no entanto, 20%. Entre estas destacam-se o turismo, o comércio e alguns serviços complementares.
BOAS FESTAS
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SOLA SAPATO
Sola, sapato
Rei, Rainha
Foi ao mar
Pescar cebolinha
Para o filho
Do juiz
Que está preso
Pelo nariz
Salta a pulga
Na balança
Dá um pulo
Até á França
Os cavalos a correr
As meninas a aprender
Qual será a mais bonita
Que se vai esconder
Atrás do burro da Inês
Cada um por sua vez.
BOAS FESTAS
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O FRASCO DE PERFUME
O Ângelo Mexim e o Amarelo eram irmãos de sangue. Nascidos e criados juntos, cresceram e casaram. Após a morte dos progenitores foram acumulando rixas, brigas e discussões como nunca se vira na freguesia. Um louvar a Deus! Questões de partilhas misturadas com ameaças de morte e de vinganças permanentes. Cada um havia de dar cabo do outro. Um ódio mortal recíproco!
Viviam pois como verdadeiros e eternos inimigos, os dois irmãos! Por toda a freguesia comentava-se, condenava-se e reprovava-se tão grande e profunda inimizade:
- Nunca tal se viu! Dois irmãos que, desde há muitos anos, não se falam, nem se podem ver um ou outro.
Não havia na freguesia memória de tão feroz e perpétuo ódio entre irmãos.
Envelheceram e o primeiro a falecer foi o Ângelo Mexim que herdara o apelido por, após o seu regresso da Califórnia, estar sempre a falar nos mexins que por lá existiam. Ele até tinha trabalhado com um mexim…
Decorria, durante a noite, o velório em casa do Ângelo. Duas dezenas de familiares, amigos e vizinhos prestavam-lhe, entre choros e soluços, a última homenagem. Para espanto de todos, pela noite dentro, entra o Amarelo. Aproximando-se do féretro, retirou do bolso um frasco de perfume e derramou-o sobre o cadáver do irmão.
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TROVÃO NO INVERNO
“Trovão no inverno, tempo moderno (bonançoso).”
Este era um dos adágios mais interessantes e mais utilizados, antigamente, pela população da Fajã Grande, sobretudo pelos mais velhos. Quando trovoava em pleno inverno logo diziam:
- Trovão no inverno, tempo moderno.
Por um lado, talvez, pretendessem acalmar as crianças geralmente muito sensíveis a fortes trovoadas, mas por outro estavam a impor a sua sabedoria secular. É que a trovoado de inverno, regra geral acalma as tempestades, enfraquecendo quer o vento quer a chuva. Assim a trovoada no inverno era indicativo de que se seguiria bom tempo. Aliás a trovoada no inverno era mais rara, embora, na Fajã Grande acontecesse com alguma frequência o suficiente, mas é possível. As estações do ano mais propícias a trovoadas são a chamada primavera-verão, nessa altura seguidas de fortes temporais. Por isso o povo também utilizava um outro adágio: Trovão no verão água na mão. No inverno, geralmente não se viam os relâmpagos, uma vez que o céu está coberto de nuvens, enquanto nas noites de primavera faiscavam no horizonte. O povo classificava-os como o céu a abrir, dado que só via os relâmpagos e não se ouviam os trovões. Estas manifestações atmosféricas dizia-se, eram sinal de mau tempo. Segundo a metereóloga as trovoadas podem-se formar no interior das massas de ar (a partir da elevação do ar por convecção - comum em terra nas tardes de verão - quando o aquecimento da superfície atinge o seu pico - e sobre o mar nas madrugadas de inverno, quando as águas estão relativamente quentes)...
Acrescente-se que o termo moderno, nas Flores quando se refere ao tempo significa bonançoso e quando se refere a pessoas, geralmente tratando-se de crianças, significa sossegado, moderado de maneiras.
Assim o povo da Fajã Grande apenas confirmava com este adágio um ditado popular muito conhecido: A seguir à tempestade vem a bonança, embora utilizado, sobretudo, no sentido figurado: quando uma pessoa passa dificuldade, investe e depois colhe, ou ganha.
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GUSTAVO FRAGA
De acordo com o noticiado pelo Forum Ilha das Flores e pela Câmara Municipal das Lajes, a edilidade do mais ocidental município açoriano homenageou, na pretérita sexta-feira, 02 de Dezembro, o Professor Gustavo de Fraga, através da colocação de uma Placa de homenagem na casa onde nasceu, atribuindo também o seu nome a uma rua da freguesia da Fajãzinha, de onde o homenageado era natural. A cerimónia de homenagem realizou-se junto ao emblemático largo do Rossio daquela freguesa.
Filho de Eduardo Augusto de Fraga e de Maria Valadão de Fraga, o ilustre homenageado nasceu na freguesia da Fajãzinha, ilha das Flores, em 1 de Novembro de 1922, mas foi na freguesia dos Cedros da mesma ilha que passou uma pequena parte da sua infância.
O pai, professor do ensino primário, lecionou em diversas freguesias da ilha das Flores, designadamente nos Cedros e na Fajãzinha. Mais tarde foi transferido para a ilha de São Miguel, lecionando em Vila Franca do Campo.
O avô paterno, José Francisco de Fraga, de origem continental fez os seus estudos no Seminário de Angra, onde não chegou a completar o curso de Teologia. Foi secretário do Governador Geral de Angola e exerceu também as funções de professor de instrução primária na ilha das Flores. Casou com Maria Amélia Nóia Silveira, de origem açoriana e inglesa, natural do Eire, Estados Unidos da América. Conta-se que José terá ficado encantado ao vê-la quando ela passava nas Flores em viagem à vela de Inglaterra para o seu país. Por sua vez o avô materno, Manuel de Freitas Valadão, casado com Maria Avelar Valadão, de origem florentina, foi emigrante nos Estados Unidos da América e como muitos outros emigrantes percorreu a pé o caminho entre o Texas e a Califórnia à procura de trabalho.
Pelo facto dos pais terem fixado residência em Vila Franca do Campo quando tinha cerca de dois anos, Gustavo de Fraga completou instrução primária naquela vila e frequentou o Externato Vilafranquense. Aos 16 anos de idade concluiu o ensino secundário no Liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada, matriculando-se, a seguir, na Escola do Magistério, completando o curso em 1942.
Como professor oficial do ensino primário, lecionou no distrito de Ponta Delgada, mas apesar de viver fora das Flores, manteve-se ligado à sua ilha, à qual o pai regressou depois de enviuvar, e onde veio a falecer em 1960.
Sempre na ânsia de enriquecer a sua instrução e cultura, nos anos quarenta, partiu para Lisboa onde, para além de ter sido redator do jornal Diário da Manhã e funcionário da Emissora Nacional, frequentou a Faculdade de Letras, como estudante trabalhador e pnde concluiu o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Mais tarde frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo-se licenciado, com distinção, dissertando Sobre o Objeto da Metafísica de Francisco Suarez.
Em 1954 emigrou para a Alemanha, sendo nomeado Leitor de Português na Universidade de Bona até 1957. Aí frequentou cursos e seminários de filosofia, alguns deles orientados pelos professores Johannes Thyssen, Gerhard Funke, Hans Heimsoeth e Ludwig Landgrebe, que fora assistente de Husserl.
No ano letivo de 1957/58, fixou-se em Paris, com bolsa concedida pelo Instituto Português de Alta Cultura. Na Sorbonne, participou em cursos de Ferdinand Alquié e de Jean Wahl, juntamente com quem se iniciou nos estudos hegelianos.
No ano seguinte voltou à Alemanha onde foi bolseiro na Universidade de Friburgo, nela frequentando seminários de Hans Reiner e de Max Muller.
Em 1960, concluiu, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Curso de Ciências Pedagógicas, onde exerceu o cargo de assistente de Ciências Filosóficas. Em Julho de 1967 prestou provas de doutoramento em Filosofia, com a dissertação De Husserl a Heidegger e Elementos para uma Problemática da Fenomenologia. Em 1 de Maio de 1970 passou a professor auxiliar e a seguir fez concurso para professor extraordinário de Ciências Históricas, Geográficas e Filosóficas, sendo aprovado com mérito absoluto em 8 de Maio de 1973. A sua nomeação para o lugar verificou-se em 16 de Junho de 1977.
Entretanto, face à recente criação do Instituto Universitário dos Açores, foi nele colocado, a seu pedido, em comissão de serviço, a partir de 7 de Fevereiro de 1976. Aí viria a ser nomeado, por despacho de 20 de Fevereiro de 1979, vice-reitor e vogal da Comissão Instaladora. Exerceu ainda o lugar de diretor do Departamento de Formação de Professores.
Em 28 de Dezembro de 1981 foi empossado no cargo de professor catedrático da Universidade de Coimbra, mantendo-se, em comissão de serviço na Universidade dos Açores. Nela, para além de ter sido diretor do Centro de Estudos Filosóficos, foi eleito, sucessivas vezes, presidente do Conselho Científico.
Na sua longa atividade de docente lecionou diversas disciplinas ou cursos, nomeadamente: Ontologia, Antropologia Filosófica, História da Filosofia, Axiologia, Ética, Teoria da História, Introdução à Filosofia e Teoria do Conhecimento, Problemas do Mundo de Hoje, Problemas da Sociologia da História, As Grandes Revoluções Filosóficas, História do Pensamento, História Cultural e das Mentalidades.
Os seus méritos levaram-no a receber várias menções honrosas e quatro bolsas de estudo: do Instituto Português de Alta Cultura, para investigar em Lovaina e em Paris. Aposentou-se em 27 de Abril de 1990, mantendo a sua residência na cidade de Ponta Delgada.
Para além da atividade docente a que dedicou a maior parte da sua vida, proferiu palestras, participou em muitíssimos colóquios, seminários e conferências. Gustavo de Fraga foi um dos fundadores da revista Filosofia, membro fundador do Centro de Estudos Fenomenológicos, anexo à Universidade de Coimbra, colaborador da VELBC e colaborou em diversas revistas e jornais, sobretudo com trabalhos e artigos da sua especialidade.
Das suas obras publicadas destacam-se: Horas de Ronda, Sobre Heidegger, De Husserl a Heidegger, A Fenomenologia e o Espírito do Hegelianismo, Fidelidade e Alienação, Rogai Por Nós Pecadores e ainda Balada para Joana Margarida, livro de poemas dedicado à sua neta.”.
Gustavo Fraga, agora homenageado na ilha que o viu nascer, faleceu ocorreu na cidade de Ponta Delgada, onde residia com a esposa, em 15 de Novembro de 2003.
NB – Dados retirados da Wikipédia, Universidade dos Açores, Câmara Municipal das Lajes das Flores e Forum Ilha das Flores
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ENSEADA DE CRISTAL
Açoriana de nascença emigrou muito nova para os Estados Unidos, acompanhando os pais, numa estranha e descodificada aventura, porém, não se esquecendo nunca de que os Açores eram a sua terra e as Flores a sua ilha. Nascida debaixo de rochas, embalada entre os murmúrios das brisas matinais, alimentada com a seiva dos incensos e das faias, saltitando sobre as rochas negras dos baixios, mantém-se, ainda hoje, uma verdadeira açoriana dos sete costados. Com o rosto ao vento, traz no olhar o murmúrio das ribeiras e nas veias corre-lhe o ancestral sangue dos avós. Teima em manter os cabelos soltos, ao vento e a embrenharem-se nos meandros das ribeiras e nos valados dos grotões. Mantém a alegria de viver e segura, nas palmas das mãos, a infinita ternura das manhãs de primavera. Herdou a frescura dos regatos e guardou, em silêncio, o suave vaivém das marés. Dos primórdios do povoamento da ilha houve nome e agarrou-se à vontade de crescer, de se tornar vibrantemente enternecedora, em terra alheia. Fez seu lema a vontade de mudar o mundo. Mas a sua maior herança foi a estonteante viagem que fez, atravessando mares e oceanos, balouçando-se sobre as ondas, embalando-se nos alucinantes gritos dos vulcões. Brincou com as conchinhas da praia, procurou grilos em luras, saltou à corda, rolou o arco e sujou o rosto com terra ressequida. Correu por canadas e veredas, a pé descalço, subiu montes e outeiros e espreitou, de madrugada, o nascer do Sol. Brincou com bonecas de trapo e cabeça de loiça, construiu cadeirinhas de junco, porquinhos de batata-doce e sentou-se à janela a observar o voo titubeante das gaivotas. Ao sol e à chuva foi levar os bois ao pasto, alimentar o porco no curral e juntar, na cerca, os ovos das galinhas. À tardinha, misturava o seu canto com o dos tentilhões a respigarem os trigais e sentava-se, ao serão, no escuro da cozinha a ouvir as estórias da avó. No fim dava-lhe as boas noites e adormecia no seu regaço.
Voltava ao mar sempre que queria e banhava-se nas suas águas, transformando-se numa espécie de sereia reluzente. O bafo das marés acariciava-lhe o corpo e os caranguejos lambiam-lhe o suco das feridas. O mar era de lã e a água tinha perfume de alecrim. Deitou-se em praia deserta e, numa manhã de bruma cerrada partiu. Partiu para uma terra longe e distante mas que decidiu nunca ser sua.
Tornou-se mulher, senhora e dona. Recheou-se de poucas palavras e fez do silêncio o baluarte da sua defesa. Mas o que nunca se apagou e jamais se apagará da sua memória é apenas o mar e aquela pequena enseada mítica e de cristal, onde, em criança, misturava o seu corpo, meigo e doce, com a doçura fresca da água.
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A CRUZ DO OUTEIRO
Uma das mais emblemáticas construções edificadas na Fajã Grande foi, inequivocamente a Cruz. Construída bem lá no alto do Outeiro, precisamente no local em que este mais se prolonga sobre o povoado, como que a separar a Assomada da Fontinha, a Cruz impunha-se e debruçava-se sobre as casas campos, num abraço gigantesco, a abençoar, pessoas, animais, lares, terras, maroiços, ruas, vielas e até o mar. Branca, ingente, altiva e gigantesca a Cruz como que se assemelhava ao Cristo Redentor do Corcovado, apresentando-se como verdadeiro símbolo do cristianismo e da fé do povo da mais ocidental freguesia açoriana, apresentando-se de forma semelhante à da gigantesca estátua brasileira, como um ícone da Fajã Grande e até das Flores, postando-se ainda como marco abençoado de dezenas e dezenas de embarcações que, emergindo no horizonte, aproavam à ilha, na demanda das rotas marítimas entre a América, a Europa e a África.
Não se sabe ao certo quando surgiu a ideia de construir uma grande cruz no alto do Outeiro, nem sequer altura em que foi construída, uma vez que o monumento não revela a data de construção. Sabe-se, no entanto que ela é um verdadeiro símbolo da fé e da crença dos nossos antepassados que assim desejavam ver a sua terra permanentemente abençoada pelos braços da cruz redentora.
Durante muitos anos e até à década de cinquenta do século passado realizava-se, anualmente junto à Cruz, uma festa com missa campal precedida de romaria que tinha lugar no dia 14 de setembro, dia em que a Igreja Católica, liturgicamente, celebra e comemora a Exaltação da Santa Cruz ou seja o madeiro em que Cristo foi crucificado. Era também junto a esta Cruz que nas terças e sextas-feiras quaresmais, um grupo de homens, quer chovesse quer ventasse, ajoelhava entoando cânticos e orações diversas e prolongadas. As suas vozes, ecoando nas encostas dos montes, ressoavam e repercutiam-se sobre os velhos telhados dos casebres. Simultaneamente, em todos os lares, famílias inteiras ajoelhavam também e, em convicta e comunitária oração, uniam-se às preces dos cantores, suplicando perdão para os delituosos e pecadores e beneficência para os infelizes e sofredores.
O Outeiro e mais concretamente o lugar da Cruz era também um enigmático local para passeios, uma vez que sobranceiro à freguesia, a que se tinha acesso por uma ingreme e sinuosa vereda, de lá se desfrutava duma vista fantástica e deslumbrantemente bela. Ao perto, os telhados e frontispícios do casario, mais ao longe os campos verdes e amarelados de couves e milho e, além, separado pela mancha negra do baixio, o oceano azulado e infinito, contrastando com a tímida pequenez da ilha. Era, inclusivamente um lugar de visitas turísticas, dada a sua rara e invulgar beleza. Ao iniciar-se a subida, o espetáculo excedia-se em pulcritude, em cores, em luzes e em sons. Mas era sobretudo no dia da festa, durante a romaria, em que o povo subia em fila empunhando as velas, entoando cânticos, ao mesmo tempo que as luzes se iam alongando na subida, formando um cordão luminoso e colorido, uma espécie de colar que se ia prolongando pela encosta até se enroscar ao redor da cruz. Visto de longe, o espetáculo era magnífico.
Emblemática e mítica era ainda a Cruz do Outeiro, por quanto na imaginação da pequenada, era lá que na passagem do ano, à meia-noite, o Ano Velho e o Ano Novo travavam uma árdua luta, com o objetivo de decidirem entre si quem ficaria a mandar no próximo ano: se o Ano Velho se o Ano Novo. Nessa noite mágica todas as crianças da freguesia adormeciam nas suas camas ou berços de palha e casca de milho, uns agarrados aos outros, muito bem cobertos e caladinhos, com os olhitos muito arregalados por fora dos cobertores, com os ouvidos à escuta, a tentar descortinar algum ruído ou barulho indicador da luta e a desejar que fosse o Ano Novo a vencer. Mas só no dia seguinte de manhã, ao indagar junto dos adultos quem teria sido o vencedor, ficavam a saber que tinha sido o Ano Novo a vencer a contenda
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AS ARSAS DAS CORDAS
Na Fajã Grande acarretavam-se dos campos para casa todos os tipos de produtos. Por um lado carregavam-se os produtos destinados à alimentação dos bovinos, como incensos, erva, rama de batata-doce, erva-santa, rama seca, couves e muitos outros e ainda os que lhes haviam de servir de cama, como fetos, cana roca, bracéu, junco, etc. Era também necessário acarretar muitos outros produtos necessários ao governo de casa, com destaque para a lenha. A maioria destes produtos quase sempre eram transportados às costas em molhos, pelo que tinham que ser bem amarrados, para o que geralmente eram utilizadas cordas de tamanhos, feitios e qualidade diferentes. Mas o que todas as cordas tinham em comum eram as arsas, ou seja, pequenos objetos, geralmente de madeira que permitiam ligar com firmeza e segurança uma ponta da corda à outra, permitindo assim segurar muito bem amarrado o que se pretendia acarretar. As arsas serviam pois para substituir os nós, uma vez que estes, para além de exigiram uma operação bem mais demorada, obrigavam a um uso de cordas maiores e não permitiam um aperto ou arrocho tão firme e seguro como o das arsas.
As arsas, regra geral, eram feitas de maneira e muito simples de fabricar. Obtinha-se um pequeno retângulo de madeira da mais rija e resistente possível. Davam-se, com um trade, dois furos, simétricos, um em cada metade do pequeno retângulo e estava a arsa feita. Depois alisavam-se os bordos dos furos com um canivete, a fim de que, ao ser enfiado, a corda deslizasse mais facilmente. Num dos furos enfiava-se uma das extremidades da corda e entrançava-se a ponta de maneira a que a arsa, deste lado, ficasse sempre presa à corda. Estava a operação consumada.
As cordas eram enroladas, levadas ao ombro ou enfiadas num bordão. Ao recolher o produto que se pretendia acarretar, estendia-se a corda no chão, sobre a qual se iam colocando os produtos. No fim enfiava-se a ponta livre da corda no outro buraco da arsa e puxava-se até apertar ao máximo o molho. A ponta solta por sua vez era presa de forma segura na própria corda, de maneira a não se soltar.
Curiosamente também se faziam arsas de osso de baleia e, por vezes, até era a própria corda que, devidamente dobrada numa das pontas, formava a arsa,
As cordas e as respetivas arsas tinham uma importância tão grande na vida quotidiana dos fajãgrandenses que até se havia criado um ditado muito peculiar. Quando alguém tinha que resolver um problema de difícil solução ou quando se defrontava com uma situação da qual se sentia impotente ou incapaz de resolver, dizia-se: Estamos no mato sem cordas, o que, obviamente, queria significar: Estamos perdidos ou desgraçados.