PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MANÉ CHINÉ
Uma das músicas tradicionais, cantadas nos jogos e rodas que se faziam nas casas do Espirito Santo e noutras ocasiões, embora raras, que o povo se juntava para se divertir em pequenas e frugais festas era o Mané Chiné. Trata-se de uma canção que possivelmente, outrora, terá acompanhado bailes e que por isso mesmo se revela como um misto de alegria e ritmo. Apesar de todas as dificuldades e carências vividas noutros tempos, O Mané Chiné, possivelmente trazido para as ilhas pelos primeiros povoadores e que tem referências aos tempos coloniais onde predominava a escravatura, manifesta, no entanto, um reflexo da boa disposição e de alegria de viver do povo.
Era meia noite cerrada ó Mané chiné
Dizia o filho p´ra mãe
Vai de banda vai de banda olé
Vai de banda ó Mané chiné
As moças da Ribeirinha ó Mané chiné
São poucas mas dançam bem
Vai de banda vai de banda olé
Vai de banda ó Mané chiné
O padre corações casa ó Mané chiné
Estão metidos numa alhada
Vai de banda vai de banda olé
Vai de banda ó Mané chiné
Correu atrás das moças ó Mané chiné
Com as saias levantadas
Vai de banda vai de banda olé
Vai de banda ó Mané chiné
Minha avó quando morreu ó Mané chiné
Deixou-me uma mala em deixa
Vai de banda vai de banda olé
Vai de banda ó Mané chiné
Deixou-me uma mala velha ó Mané chiné
Que já não abre nem fecha
Vai de banda vai de banda olé
Vai de banda ó Mané chiné
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AGRURAS
Dália acabara de fazer vinte e seis anos. Era livre, livre como um passarinho. Há dois anos que terminara o Curso de Medicina em Coimbra e agora estagiava no Centro de Saúde de Megonvil. Seis anos como estudante haviam-na transformado numa médica competente, perspicaz e sonhadora. Esperava-a uma longa e árdua carreira. Em breve terminaria o tempo de estágio ao qual se seguiriam alguns anos, a fim de completar a especialidade. Só então seria uma médica autónoma e independente. Onde havia de trabalhar? Onde havia de se impor como profissional de saúde? Profissional competente e digna… Não sabia e, também, pouco se importava saber. Talvez perdida num gigantesco hospital de uma grande cidade, talvez excessivamente reconhecida num pequeno Centro de Saúde de uma desertificada vila ou aldeia do interior. O futuro havia de lhe traçar o destino…
E foi numa viagem de férias para Maiorca que tudo mudou. Um dos últimos passageiros a entrar sentou-se no lugar que vagava a seu lado. Não usava aliança, parecia viajar com um objetivo igual ao dela e falava um inglês quase perfeito. Pediu licença para passar e sentou-se à janela, no lugar indicado no talão de embarque. Pediu desculpa pelo incómodo, por tê-la obrigado a levantar-se do seu lugar. Ela sorrindo respondeu simplesmente:
- You’re welcome.
Nada mais se passou durante a viagem. Nada mais disseram até ao aeroporto de Palma de Maiorca. Ela saiu à frente e não mais o viu.
Quando se preparava para fazer o check-in no hotel em que se hospedara foi informada de que alguém a esperava no bar. Para espanto seu, era ele, o passageiro que viajara a seu lado. Conversaram, riram e beberam até de madruga. Seriam umas três horas quando, inesperadamente, a polícia local irrompeu pelo hotel, levando-o para ser interrogado. Na manhã do dia seguinte, Dália informou-se na polícia local. Soube que fora preso por suspeita de tráfego de droga. Dália também foi chamada a depor, acabando por ser acusada de ser cúmplice do meliante. Presa também ela, ficou à espera de ser julgada, por falta de provas. Aguardou mais de um mês pelo julgamento e, por fim, foi condenado a mais seis meses de prisão.
Sozinha em Maiorca não teve quem a auxiliasse, nem quem zelasse pelos seus direitos. Impedida de regressar ao seu país de origem perdeu o emprego, sendo afastada da ordem dos médicos. Posta em liberdade teve receio e sobretudo vergonha de regressar ao seu país. Aguardou que o responsável pelo seu infortúnio fosse posto em liberdade. Foram meses de fome, miséria e sofrimento.
Finalmente ele saiu. Promessas e mais promessas levaram Dália a um envolvimento mais profundo. Sem que suspeitasse, pouco tempo depois ele desapareceu. Sozinha, de novo, sem trabalho, desolada e triste, personificou-se como lenitivo para as suas mágoas. Dentro em breve foi-lhe detetada uma grave e contagiosa doença. Dália era médica e sabia os riscos que corria. Temeu. Possivelmente teria sido contagiada por ele. Ao infortúnio juntava-se agora uma enorme angústia. Como médica sabia muito bem o que lhe poderia acontecer. Durante os tempos que seguiram e em que procurou a cura, Dália chorou, sofreu e voltou a passar fome, deambulando pelas ruas como mendiga.
Certa tarde em que se encontrava sentada no vão das escadas de um prédio, gelado, faminta, desesperada, à espera que a morte a levasse, um cão latiu, denunciando a sua presença. O dono do prédio, ouvindo o cão, surgiu nas escadas dando de caras com ela. Sem lhe fazer perguntas ou sequer a recriminar, pegou-lhe pelos braços com carinho, amparou-a e levou-a para a sua própria casa. Dália, envergonhada e tímida ao início, perante as insistências do seu paraninfo, tomou um banho, mudou-se de roupa que ele próprio lhe dispusera e tomou uma ligeira refeição, deitando-se de imediato.
No dia seguinte, ao acordar, deu de caras com o homem que a recolhera sentado a seu lado. Havia-lhe colocado um ramo de flores no regaço. Dália sorriu, pela primeira vez, desde aquela noite fatídica, no hotel, em que fora presa.
Recuperou e, no mês seguinte, regressou a Portugal e a Megonvil mas só a muito custo e passado algum tempo conseguiu reintegrar-se na carreira médica, mas numa vida profissional muito diferente daquela com que sonhara nos bancos da Universidade!
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QUEIJO (FABRICO CASEIRO)
A ilha das Flores, contrariamente a outras do arquipélago açoriano como por exemplo São Jorge, apesar da sua grandiosa e excelente criação de vacas leiteiras, nunca se tornou conhecida nem muito menos famosa pela produção de queijo. No entanto, por toda a ilha e, mais concretamente, na Fajã Grande sempre se fabricou, caseiramente, muito queijo, pese embora este, contrariamente à manteiga, nunca fosse comercializado, nem muito menos exportado. Atualmente, porém, é possível encontrar algum queijo produzido nas Flores à venda noutras ilhas açorianas.
Na Fajã Grande na década de cinquenta assim como nas anteriores do século passado, fabricava-se muito queijo, fazendo o mesmo parte do cardápio diário na maioria das casas. Umas vezes comia-se fresco, ou seja, acabadinho de fazer, outras, ligeiramente, curado. Apesar de ser de uso exclusivamente caseiro, o queijo feito na Fajã Grande era de ótima qualidade embora sem fama nacional ou, muito menos, internacional, pese embora de vez em quando se enviasse, particularmente, um ou outro queijinho bem curado para familiares e amigos residentes noutras ilhas ou até na América. Essa boa qualidade do queijo fajãgrandense devia-se sobretudo à qualidade das pastagens, ao excelente tratamento que era dado às vacas e, consequentemente, à excelente qualidade do leite que se ordenhava das mesmas
O fabrico de queijo, na Fajã Grande, no entanto era, puramente artesanalmente feito nas próprias moradias, o que não impedia que apresentasse características de boa qualidade. Mas o fabrico era muito reduzido, geralmente fabricava-se um queijo dia-sim dia-não, uma vez que cada lavrador tinha apenas uma ou duas vacas leiteiras e, além disso, a venda do leite à Cooperativa ou ao Martins e Rebelo era fundamental para que cada família se sustentasse e conseguisse algum dinheiro a fim de comprar nas lojas, o café, o petróleo, o açúcar e todos os outros produtos que necessitava e que não produzia. Por vezes e em certas alturas do ano as vacas davam pouco leite ou até nenhum, quer porque estivessem para dar cria quer porque fossem utilizadas para puxar os carros ou os corsões e a lavrar os campos, dado que poucos eram os lavradores que tinham à porta gado alfeiro ou junta de bois de trabalho, para carrear as lenhas, as mondas, os milhos, os estrumes, lavrar e preparar as terras para semear os milhos.
Pelo contrário, na altura em que as vacas davam crias, geralmente nos meses de março e abril, havia grande abundância de leite, chamado crostes. Acontecia que, depois de dar a cria, a maioria das vacas dava muito leite, pois eram muito bem tratadas, antes do próprio parto e nos dias que se lhe seguiam. Alem disso, muitos vitelos nem bebiam o leite todo e, na maioria dos casos não bebiam nenhum, uma vez que naqueles tempos, não era hábito comer a carne dos vitelos, estes eram pura e simplesmente abatidos e enterrados logo após o parto. Apenas um ou outro se criava para fazer dele uma futura vaca ou um gueixo de engorda. Mas era necessário retirar o leite das vacas nos dias que se seguiam ao parto. Como este não servia para desnatar e ser vendido para o fabrico de manteiga, ficava em casa. Uma parte era utilizada na alimentação e a outra deitada aos porcos. Assim a parte dos crostes que sobrava era utilizada para fazer queijos – os tradicionais e célebres queijos de crostes. Estes queijos eram fabricados em grande quantidade pelo processo tradicional do fabrico do queijo com o leite normal, amornando um pouco os crostes e juntando-lhes de seguida o coalho líquido, comprado nas lojas e que na Fajã Grande existia em todas as casas. Depois de coalhada, a massa que originaria o queijo era colocado nas formas de lata, furadas nos lados e em cima duma tabuinha, suspensa numa selha, como se fazia com qualquer queijo., sendo o soro que escorria aproveitado para os porcos.
Os queijos de crostes assim como os de leite normal comiam-se frescos. Mas quando se faziam em maior quantidade, sobravam alguns que se punham a curar ao sol durante vários dias, ao mesmo tempo que se ia escoando o soro. O queijo ficava mais duro e adquiria a cor amarelada. Quero os frescos quer os curados eram excelentes e tinham um sabor adorável.
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A ESPADANA
Antigamente, a espadana era uma planta de grande utilidade na Fajã Grande. Nascia, crescia e florescia abruptamente e em grande abundância nos maroiços, nas canadas, nas encostas dos outeiros e até nas terras de mato. Nestas, muitas vezes, a espadana crescia tão densamente que até tinha que ser desbastada ou cortada radicalmente por constituir uma ameaça para outras culturas, nomeadamente, para os inhames e árvores de fruto.
A espadana muito frequente nos Açores é no Pico designada por filhaça e em S. Jorge por corriola. Trata-se de uma planta não endémica, proveniente da Nova Zelândia e que cientificamente se designa por Phormium Tenax. Noutras regiões onde existe também é conhecida pelos nomes comuns de harakeke (em maiori) ou linho-da-nova-zelândia. Trata-se duma espécie de planta sempre verde, de folhas perenes com distribuição natural na Nova Zelândia e na Ilha Norfolk, mas naturalizada em diversas regiões temperadas e subtropicais e cultivada quer como importante fonte de fibra quer como planta ornamental. A espadana cresce como um aglomerado de largas folhas, em forma de tiras, de até dois metros de comprimento, ao redor de uma espécie de caule central, muito mais alto do que as folhas, onde se podem observar belas flores amareladas e vermelhas.
Sabe-se que na Nova Zelândia as folhas da espadana foram utilizadas para delas se retirarem fibras utilizadas na confeção de tecidos tradicionais e também para a feitura de cordame e velas de navios
Destino semelhante teve a espadana nos Açores, mas ao que consta apenas na ilha de São Miguel, onde foi cultivada para extração e produção de fibra. Segundo alguns historiadores a economia micaelense, paralelamente ao chá, em tempos não muito recuados, desenvolveu várias iniciativas de produção industrial não só do linho, mas também da espadana de onde se chegou a retirar apreciáveis resultados, antes do surgimento de fibras sintéticas. Na ilha do Arcanjo a espadana foi também muito utilizada uno fabrico de cordoaria, sobretudo no concelho da Lagoa onde ainda existem ruinas duma fábrica de desfibração de espadana.
Na Fajã Grande a espadana era utilizada em bruto para substituir as cordas, bastante mais caras mas muito necessárias no dia-a-dia. As folhas da espadana eram cortadas e postas a secar e depois desfiadas em tiras mais grossas ou mais finas, maiores ou menores de acordo com o fim a que se destinavam. Para além servirem para amarrar pequenos molhos, depois acarretados às costas, as espadanas eram muito usadas para amarrar os molhos de rama seca assim como os fetos secos que eram guardados nas casas velhas para alimentar e fazer cama aos animais, amarrados nos palheiros nas longas noites de inverno. Também cortadas em pequenos e finos pedaços serviam de cordões para amarrar as bocas dos sacos, das moendas, cambulhões de milho, as asas das galinhas e até os suspensórios das calças quando os botões falhavam. Mas um dos mais interessantes usos da espadana era no desfolhar do milho. Nos dias anteriores cortavam-se as folhas em pequenos pedaços que se desfiavam finamente. Depois eram feitos pequenos molhinhos que uma vez amarrados e dobrados em u invertido eram presos a uma alheta das calças de cada desfolhador. À medida que desfolhavam iam formando mancheias que eram amarradas com os cordões de espada e penduradas nis milheiros mais altos onde ficavam a secar durante alguns dias. Só depois eram recolhidas e guardadas mas durante esses dias os campos tinham um maravilhoso e deslumbrante aspeto.
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O NAUFRÁGIO DO PAPADIAMANDIS
No dia 22 de Dezembro de 1965 deu-se mais um memorável naufrágio nos mares da Fajã Grande. O navio, um cargueiro liberiano de nome Papadiamandis, com um calado de 14.300 toneladas, encalhu na Ponta da Coalheira, entre a Retorta e o Caneiro das Furnas. O cargueiro viajava de New Orleans para Hamburgo, com um carregamento de milho, trigo e feijão. Viajavam a bordo trinta e um tripulantes, tendo todos sido salvos e conduzidos para Santa Cruz onde se albergaram, com exceção de três que foram recolhidos por um navio que, navegando ao largo, ao pedido de auxílio, se aproximou da embarcação, a fim de prestar ajuda aos naufragos.
Este foi, na verdade, o ultimo grande naufrágio dos muitos que, sobretudo no século XIX, ocorreram por toda a ilha das Flores, com particular incidência na sua costa oeste, incluindo os extensos baixios da Fajã Grande, uma espécie de fronteira entre a Europa e a América, na qual, naturalmente, se inclui o ilhéu do Monchique – o torrão mais ocidental da Europa e a própria - e a Baixa Rasa, pese embora a maioria das embarcações naufragadas, a exemplo do Papadiamandis e da Bidart, se encafuassem nos próprios baixios e laredos que separam a terra do mar.
Assim como noutros casos este naufrágio atirou para terra uma quantidade enorme de utensílios do próprio navio e de grande parte da própria carga, o que fez com que muitas pessoas demandassem a costa, em primeiro lugar para prestar ajuda e auxiliar os náufragos mas, posteriormente, para recolherem restos de carga e peças ou utensílios do navio. No caso do Papadiamandis a recolha, porém foi muito limitada dada a acção permanente e continua da Guarda Fiscal que não deixava ninguém aproximar-se do navio nem da zona circumdante do baixio.
Na verdade quase sempre os naufrágios constituíram, para a população da Fajã Grande e de outras localidades, uma oportunidade suplementar de rendimento, desde que aos salvados conseguissem chegar primeiro que as autoridades aduaneiras. Estranho mas memorável para as gentes da Fajã Grande terá sido o Natal de 1869! É que nesse 25 de Dezembro, deu ali à costa, carregada de açúcar mascavado, um sabor de muitos ainda desconhecido, e de aguardente, a barca francesa Republique, que o povo logo invadiu, levando quanto pôde, numa abundância tal que, nas semanas seguintes, até com açúcar se temperaram caldos de couves. Foram, todavia, os grandes carregamentos de madeira de pinho resinoso que, de forma mais visível, ajudaram a perpetuar a memória, um pouco por toda a ilha, de algumas dessas já longínquas tragédias marítimas. Consta que a igreja da Ponta, a exemplo de outras da ilha, foi construida com madeiras de naufrágios.
Do espólio do Papadiamandis que transportava mais de 14 mil toneladas de milho, pouco ou nada recolheu o povo da Fajã Grande, devido sobretudo ao cerco eficiente e à vigilância permanente da Guarda Fiscal. Conta-se até que uma criança de tenra idade ao ser encontrada por um elemento daquela força policial com uma lata de milho, mais por ver ali um brinquedo estrando porque de milho cozido não necessitava, foi violentamente agredido pelo agente da autoridade e forçao a lhe entregar a respetiva lata.
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A FAJÃ GRANDE NO MOMONDO
O Site Momondo, fundado por Thorvald Stigsen, é um conhecidíssimo motor de busca de viagens, independente e gratuito, revelando não apenas os preços de hotéis e de viagens mas também rotas e locais de interesse a visitar. Para este portal viajar é alimentar o sentido de aventura instintivo que nos leva a explorar, a procurar novos caminhos, a ver todos os dias o mundo sob um olhar diferente, a descobrir novos lugares e mergulhar num mundo de oportunidades inesperadas, pelo que, consequentemente tem como objetivo principal viajar pelo mundo e divulgar através de textos e imagens as descobertas dessas viagens, ou seja os locais de maior interesse.
Recentemente o referido site divulgou uma reportagem intitulada Açores: Grupo Ocidental – A magia do Atlântico. Para os autores da mesma, os Açores e mais concretamente as Flores e o Corvo são ainda um paraíso desconhecido para muitos portugueses. Por isso o Mumondo convidada os seus visitantes a embarcarem numa viagem mágica a um Portugal mais atlântico e tão diferente do resto, mas que está ao alcance de todos. Neste artigo a viagem será até ao grupo ocidental composto pela ilha das Flores e pela ilha do Corvo.
O texto referido afirma ainda que o Atlântico infinito desliza por debaixo de nós, fluído, aparentemente uniforme, absolutamente plano, com incontáveis declinações de azul, do índigo ao bebé. Os reflexos adornam-no, ora subtis, ora intensos, num bailado incessante com as sombras ditadas pelas nuvens que nos acompanham nesta viagem, rebeldes, sem ordem e que o acaso projecta na sua superfície. Ao longe, primeiro como se tratasse de uma miragem ou da distorção da diminuta janela da aeronave, agitada pela trepidação de enormes hélices que nos fazem duvidar, sem motivo, da adequação deste aparelho voador a meteorologias tão instáveis, surgem duas pequenas irregularidades no horizonte perfeito. Os minutos escoam-se, inquietos, acumulando-se no relógio de pulso, par a par com as pulsações no coração, materializando a antecipação da chegada ao Grupo Ocidental do arquipélago dos Açores. É quase palpável a excitação. Flores e Corvo.
Mas é sobretudo de destacar a referência muito concreta à Fajã Grande e às suas belezas naturais. Assim pode ler-se no mesmo texto: No lado Oeste da ilha, pela estrada que serpenteia pela encosta abaixo, há um monumento natural que se destaca na paisagem, emoldurado na Primavera e Verão por milhares de hortênsias em flor: a Rocha dos Bordões! A formação geológica, com dezenas de linhas verticais de origem vulcânica, parece desenhada na falésia! Continuando a descer, tomamos rumo em direção à Fajã Grande, onde a estrada acaba. Mas não sem antes fazer um pequeno desvio, para visitar a aldeia da Cuada. A pé, uma vez mais, entramos numa viagem no tempo, para trás e para a frente. Passamos a explicar: a Cuada transformou-se numa unidade hoteleira a céu aberto, talvez o mais bem sucedido exemplo de turismo de aldeia em Portugal. Abandonada em meados do século passado pelas sucessivas vagas de emigração que assolaram os Açores, foi lentamente sendo adquirida e recuperada por Teotónia e Carlos Silva, um casal visionário que se recusou a aceitar o fado a que parecia destinada. Casa a casa, a aldeia ressuscitou, e são hoje os turistas que aqui se alojam que lhe trazem de novo vida.
De seguida, continua, à laia de conclusão : Mas o destino desta jornada é mesmo a Fajã Grande:a localidade mais ocidental da Europa! Ao chegar, instalamo-nos confortavelmente no bar Maresia, afundados num dos sofás vintage a quem a idade não parece fazer mossa, a poucos metros do oceano, que marulha suavemente. Aqui o bom gosto musical casa-se em harmonia com a tranquilidade que a vista proporciona. O entardecer toca a perfeição! E ali, a poucas centenas de metros, o ilhéu de Monchique ergue-se, orgulhoso, como o último território europeu antes do vazio que só terminará do outro lado do Atlântico, na costa norte-americana.
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TERCEIRA E QUARTA CASAS DO CIMO DA ASSOMADA, DO LADO DO OUTEIRO
A terceira casa do Cimo da Rua da Assomada, do lado do Outeiro pertencia ao José Jorge, filho do primeiro casamento de Mestre Jorge, o único sapateiro existente na freguesia, e que para além de fabricar galochas, tamancos e de consertar sapatos e de colar botas de borracha, também fabricava as botas de futebol dos jogadores do Atlético Clube da Fajã Grande. O José Jorge casado com a Maria Cardoso e que tinha duas filhas cedo zarpou para o Canadá com a família, ficando a casa desabitada. Algum tempo depois a mesma foi arrendada por uma família, bastante numerosa, oriunda das Lajes, conhecida pelos “Marcelas” e que se fixou definitivamente na Fajã. O Marcela pai e os filhos mais velhos eram homens do mar, excelentes pescadores tendo-se também dedicado à apanha e secagem de algas, atividade muito intensiva na ilha das Flores na década de cinquenta, altura em que foi construída uma fábrica de Agar-Agar nos Açores, cuja matéria-prima, as algas, passaram a ser compradas a preços muitíssimo altos. Muitos dos habitantes da Fajã Grande e de outras freguesias da ilha abandonaram por completo a agricultura, alguns venderam as próprias terras, dedicando-se totalmente à apanha e recolha das algas, das quais outros se tornam intermediários, arrecadando sofríveis fortunas.
A quarta casa deste braço esquerdo do Y que formava o Cimo da Assomada, antes da abertura da estrada, e junto ao cruzamento assinalado numa das paredes com uma cruz, vivia a Maria da Saúde e a mãe já velhinha, juntamente com um homem de nome Corvelo, originário de Santa Maria e que ali se fixara. Este Corvelo faleceu no terrível acidente do Vale Fundo, durante a abertura da estrada que liga o Porto da Fajã à Ribeira Grande. Para a abrir o traçado projetado era necessário partir muito calhau e rebentar muita pedreira. A estrada, ao contrário dos caminhos antigos que nos seus trajetos procuravam os locais mais fáceis de abrir, era quase retilínea, atravessando terras e cerrados, cortando montes e tapando vales, rompendo por todo e qualquer sítio. Ao serem escavados os montes, no entanto, por vezes, surgiam enormes calhaus ou indomáveis pedreiras que só poderiam ser desfeitas, a fim de desobstruírem o traçado da estrada, depois de partidas em mil pedaços. Os empreiteiros, vindos da Terceira, sabiam-no bem e, por isso, vieram prevenidos e preparados com pólvora, dinamite e os respetivos meios de perfuração de tão inexauríveis rochedos em que a ilha das Flores e, muito especialmente, a zona das fajãs era pródiga.
O processo de remoção de um calhau ou grande pedregulho era moroso, árduo e bastante complicado. Era necessário fazer um furo na respetiva pedra. Para tal eram necessários três homens: um a segurar a cavilha de ferro que muito lentamente ia fazendo um furo no penedo e dois outros homens batiam alternadamente com martelos de ferro na cavilha. De vez em quando tinham que parar para limpar o pó que se acumulava no orifício que iam, lentamente, perfurando. Só depois de pronto era metida uma vela de dinamite no buraco e a ela se ligava um comprido fiusgo. De seguida gritava-se bem alto fooooooooogo para que não apenas os trabalhadores mas também quem por ali passasse ou trabalhasse nos campos circundantes se colocasse em sítios seguros. Só então se acendia lume no fio que ia ardendo lentamente até chegar à vela, provocando uma estrondosa explosão e o consequente rebentamento da pedra, que simultaneamente explodia pelos arredores uma série de lascas cortantes e uma enorme quantidade de pequenos pedregulhos tão mortíferos como balas. Foi numa destas operações, lá para os lados do Vale Fundo, já quase junto à Ribeira do Ferreiro, ao preparar uma pedra com pólvora, esta terá sido atingida inadvertidamente por uma faísca que provocou uma explosão e um rebentamento, o qual apanhou, de surpresa, alguns trabalhadores. Foram atingidos gravemente três homens. Para além do Corvelo, que teve morte imediata, ficaram feridos o Francisco Facha e o Roberto de José Padre, tendo o primeiro que ser evacuado para Lisboa.
A notícia do acidente foi recebida no povoado com grande alvoroço e preocupação. As informações eram confusas e contraditórias e muita gente acorreu ao lugar para se certificar se algum familiar tinha sido atingido.
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O CICLO DO MILHO VIII
Pão, bolo, escaldas e papas eram comidos geralmente com leite. No entanto o pão, o bolo e as escaldas acompanhavam o conduto da maior parte das refeições. Muitas vezes o pão tinha que ser estufado ou frito para evitar o bolor. O bolo, quando mais velho, também se comia frito.
Na altura em que o milho era apanhado e com as maçarocas que não eram encambulhadas faziam-se as célebres “papas grossas”, de cozedura semelhante às outras mas com a diferença de que o milho ainda estava verde e era moído em casa, num “moinho de mão” que muitas famílias possuíam. Estas papas muitas vezes eram partidas às talhadas e fritas o que constituía uma refeição muito gostosa e apreciada.
Todos os anos, alguns dias após o milho estar todo apanhado, o que acontecia geralmente pelos Santos, recolhia-se, em toda a freguesia o “Milho para as Almas”.
Na Fajã Grande, como aliás em toda a ilha das Flores, houve sempre um grande culto, devoção e, sobretudo, respeito pelas almas do purgatório, o que se verificava especialmente ao longo de todo o mês de Novembro. Recorde-se que inclusivamente o primitivo orago da freguesia da Caveira era as Benditas Almas, aliás nunca mudado por decisão canónica mas apenas por vontade popular, dado que considerava-se “que o dia em que se celebravam as Benditas Almas era de ofícios fúnebres e portanto pouco próprio para festas e celebrações”.
A importância do culto e devoção ou lembrança dos que tinham partido e eventualmente estariam no Purgatório a expiar as suas faltas até terem o álibi para entrar no Céu, era de facto gigantesca, desmesurada e a ela inequivocamente toda a freguesia aderia. Um dos pontos altos era o da recolha do milho da primeira casa da Assumada à última da Via d’Água e cujo dinheiro resultante da venda se destinava a celebrar missas opor alma de todas as pessoas até então falecidas na freguesia.
Com uma organização impecável e sob as ordens da “Mordoma das Almas” cargo desempenhado durante a minha infância pela minha avó materna, um grupo de homens carregando cestos às costas corriam as casas da freguesia uma a uma e recolhiam as maçarocas já descascadas que cada um achava que podia e devia oferecer por alma dos seus e dos outros. Todo esse milho era levado para casa da Mordoma e colocado na sala formando, a pouco e pouco, um enorme monte. Um grupo de mulheres e crianças sentavam-se à volta e debulhavam-no todo, maçaroca após maçaroca e enchiam-no em sacos a fim de ser vendido, o que acontecia geralmente no próprio dia da recolha.
O dinheiro resultante da venda do milho era entregue ao pároco que com ele ia celebrando missas e rezando responsos durante todo o mês de Novembro pela alma de todos os familiares já falecidos de todas as casas da freguesia.
Em tempos mais antigos, segundo relatos de pessoas mais idosa, esta recolha do milho era feita de forma diferente. Segundo esses relatos havia na rua Direita, perto da casa de Espírito Santo de Baixo, uma casa, chamada “Casa do Purgatório”. Nessa altura, em vez do milho ser recolhido sob as ordens da Mordoma, seriam as pessoas a ir levá-lo a essa casa, onde ia ficando guardado até ser debulhado e vendido, sendo o dinheiro resultante da venda também destinado a missas para as almas. Uma das minhas tias actualmente a rondar os noventa e quatro anos garante-me que se lembra de ir levar um saco de milho à “Casa do Purgatório”.
Curiosamente muitas pessoas, especialmente mulheres, quando se viam em dificuldades ou com problemas, voltavam-se para as almas e prometiam “tirar uma esmola” se, por intercessão destas, ficassem aliviadas de seus males. Se as Benditas Almas supostamente atendiam o pedido formulado, a votante corria sozinha todas as casas da freguesia. Batendo à porta gritava: “Esmola para as almas”. Cada família dava então um pouco de milho ou se o não tivesse ou não quisesse dar, respondia simplesmente: “Pai Nosso e Ave Maria”. O milho resultante deste peditório era geralmente entregue à Mordoma que o juntava ao anteriormente recolhido ou lhe dava destino idêntico.
Note-se que rituais semelhantes a este eram cumpridos quando se solicitava a intervenção do Santíssimo, da Sra da Saúde, de São José, Santa Filomena ou de outro santo, sendo neste caso o dinheiro entregue na igreja em memória do santo respectivo.
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SUBLIMIDADE E EXCELÊNCIA
No passado dia oito de Janeiro teve lugar na igreja Matriz da mais antiga vila da ilha do Pico um concerto realizado pelo Grupo Coral das Lajes do Pico, conjuntamente com a Orquestra Académica Juvenil das Lajes do Pico e com a participação especial do grupo Vox Insulae. O evento já havia sido realizado no Santuário do Bom Jesus em São Mateus e na Igreja de Santa Bárbara das Ribeiras.
Na verdade o concelho das Lajes Pico têm-se revelado ultimamente como uma espécie de epicentro duma intensa e profunda atividade musical, como se pode demonstrar não apenas pelos espetáculos ultimamente realizados como também pela agenda cultural da edilidade, recheada, nos últimos anos, de inúmeros e diversíssimos eventos musicais. Atualmente e para além da mais que centenária Filarmónica Liberdade Lajense, do Grupo Coral e de vários outros agrupamentos musicais, a denominada Vila Baleeira, sob o patrocínio da edilidade local, orgulha-se de possuir uma Orquestra Académica Juvenil que teve a sua estreia em 2013, durante a Semana dos Baleeiros. Esta novel agremiação musical, cujos componentes têm uma média de idade de treze anos, tem proporcionado ao público picoense e, de modo muito particular ao lajense, excelentes momentos musicais reveladores do esforço e da dedicação de um bom punhado de jovens músicos e da competência e dedicação do seu maestro.
O público teve assim, na noite do passado dia oito, uma excelente oportunidade de assistir a um espetáculo musical de grande qualidade e de notável brilhantismo. Sob a direção dos maestros Hélder Azevedo, Pedro Santos e Hildeberto Peixoto, o Grupo Coral das Lajes do Pico, a Orquestra Académica Juvenil das Lajes do Pico com a participação especial do grupo Vox Insulae apresentaram um espetáculo musical pautado pela sublimidade e pela excelência, do qual, sobretudo para os apreciadores deste tipo de música, se destacou a Missa Brevis de Jacob de Haan, com 6 movimentos representativos dos cultos quer da Igreja Católica quer da Protestante: Kyrie, Glória, Credo, Sanctus, Benedictus e Agnus Dei.
De realçar ainda, por um lado o apoio da Câmara Municipal das Lajes do Pico a um projeto deste tipo, orgulhando-se a edilidade pelo sucesso obtido e pelo reflexo que terá na formação musical dos jovens músicos e consequente evolução das nossas Filarmónicas, uma vez que muitos destes jovens são membros executantes das várias bandas do concelho e, por outro, constatar que, felizmente, hoje já se entendeu que um edifício com a amplitude e grandiosidade de uma igreja pode ser utilizado para eventos deste e de outro tipo, não se limitando ao uso de uma ou duas horas semanais.
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A ANTIGA FESTA DE SANTO AMARO NA FAJÃ GRANDE
Uma das maiores e das mais importantes festas celebradas, antigamente, durante o inverno, na Fajã Grande, era a de Santo Amaro.
Amaro, segundo uns, Mauro ou Amauro, segundo outros, nasceu em Roma em 1512 e foi frade beneditino, tornando-se célebre, sobretudo, pelo seu poder taumaturgo. Já em vida, ao ser enviado por São Bento de Roma para a Gália (hoje França), a fim de, a pedido do Bispo de Le Man, estabelecer a vida monástica beneditina naquela região, foi vítima de grandes e variadas atribulações durante a viagem, mas a todas, no entanto, de acordo com os seus biógrafos e de mistura com algumas lendas, escapou milagrosamente. Mas foi sobretudo, após a sua morte que os milagres operados por Amaro se multiplicaram, pelo que, foi canonizado. Foi então que Santo Amaro se tornou conhecido, celebrado e venerado por toda a Europa Católica, sendo também escolhido para patrono dos aleijados e especialmente invocado para a cura de reumatismo, epilepsia, gota, rouquidão, resfriados e muitas outras doenças e maleitas.
Muito provavelmente por influência dos primeiros colonos e povoadores, nos Açores Santo Amaro também foi sempre alvo de grandes devoções por parte da população de todas as ilhas, sendo até que algumas freguesias o têm como padroeiro e, nalguns casos, o Santo até deu nome à própria localidade. Nas ilhas açorianas, o fiel e pioneiro discípulo do patrono da Europa, também foi sempre invocado para a cura milagrosa de inúmeras maleitas, sendo considerado o patrono dos sapateiros e dos artesãos de cobre.
Na Fajã Grande, Santo Amaro era invocado para cura de tudo o que fosse quebrado, torcido, desmanchado, fora do lugar ou para tudo o que tivesse qualquer tipo de lesão, mazela ou achaque em qualquer parte do corpo humano, desde das pontas dos pés até ao cocaruto da cabeça. Para além disso, o Santo ainda era invocado na cura das doenças das crianças, na eficiência e normalidade dos partos e até nas doenças ou mal olhados dos porcos, das vacas e das galinhas. Por tudo isto se celebrava uma grandiosa festa em sua honra no mês de janeiro. Na igreja paroquial, num dos nichos laterais do altar da Senhora do Rosário havia uma pequenina imagem do Santo, vestido com o seu hábito de monge beneditino, com um báculo na mão e em sua honra fazia-se uma enorme e grandiosa festa no segundo ou terceiro domingo de janeiro, normalmente a seguir ao dia 15 do mesmo mês, agendado no calendário litúrgico como o dia a ele dedicado, por se comemorar a sua morte.
Nos dias anteriores decorria em quase todas as casas uma enorme azáfama. De acordo com as promessas feitas era necessário cozer muita massa sovada, depois de lhe dar a forma dos bonecos que se pretendiam em função das promessas feitas. No domingo, para além de missa votiva, cantada e com sermão, tinha lugar de destaque, após as celebrações litúrgicas, um enorme leilão, onde eram arrematadas inúmeras ofertas feitas em massa sovada com o formato ou feitio da parte do corpo humano, da criança ou do animal que o Santo milagreiro havia curado miraculosamente. Antes da missa o altar enchia-se por completo de promessas, personificadas por pães de massa sovada em forma de cabeça, braços, estômago, pernas, pés, de crianças (umas já crescidas outras acabadas de nascer), de porcos, vacas e até galinhas que ali ficavam durante a missa, finda a qual eram solenemente benzidas e depois arrematadas em leilão, no adro da igreja.
O leilão prolongava-se até ao anoitecer e nesse dia, tal como no dia de Espírito Santo, não havia casa na Fajã que não ceasse umas boas fatias da deliciosa massa sovada, geralmente acompanhada com uma tigela de leite ou café e um pedacinho de queijo.
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O CICLO DO MILHO VII
Com a devida autorização transcrevo parte de um email que me foi enviado por uma neta de um dos donos de dois dos moinhos da Ribeira das Casas e que retrata o estado a que lamentavelmente chegaram:
“…eu não sei bem há quantos anos eles foram construídos, mas sei que eram dois e duraram muitos anos. Eram os meus avós que moíam quase todo o milho da freguesia. As pessoas iam lá levar as moendas ou sacos, eles moíam-no e tiravam meia quarta para o pagamento. Quando meus avós ficaram velhos os meus pais é que continuaram a moer. Os moinhos usavam a água que vinha da rocha e caía no Poço do Bacalhau. Depois eles construíram uma levada que trazia a água desse Poço ate ao moinho. Antigamente tinham que lá dormir porque quando acabava uma moenda eles tinham que por outra, mas meu pai inventou uma engenhoca que quando uma moenda acabava, saltava e puxava uma corda que ia por fora e deixava cair uma espécie de portão ou tampa fazendo com que a água não passasse para cima da roda e o moinho parasse, até de manhã. Assim já não era necessário ficar alguém lá durante a noite. Pobre moinho! Já nada existe lá a não ser umas paredes, a roda que tinha alguns 30 pés de altura e uns ferros cheios de ferrugem. Parte das paredes e o telhado caíram e as madeiras estão todas podres. Apenas lá ainda se encontram as pedras que moíam o milho. Infelizmente os donos também já todos partiram… “
Moído o milho, a farinha era guardada em casa, num armário ou na amassaria a fim de ser usada consoante as necessidades, ou seja, para cozer bolo, pão de milho e escaldadas, para fazer papas ou até para alimento dos animais.
O pão era cozido uma vez por semana, geralmente à Sexta-feira e era dia de grande azáfama e alvoroço em casa. Primeiro era necessário ir ao “cepo da lenha” fender, rachar e picar muita lenha para aquecer devidamente o forno. No dia de cozer começava-se por escaldar a farinha numa enorme celha de madeira ou num alguidar de barro. Para tal regava-se a farinha com água a ferver e, enquanto esta massa arrefecia, aproveitava-se o tempo para acender o forno a fim de o aquecer de tal maneira que cozesse bem o pão. Forno mal aquecido pão mal cozido. Arrefecida a massa resultante da mistura da água com a farinha, juntava-se o fermento guardado da cozedura anterior e a “mistura”, ou seja, dois ou três punhados de farinha de trigo. Seguia-se o amassar. Oh braços, para que vos quero! Era uma tarefa cansativa pois a massa para levedar em boas condições tinha que ser bem amassada e, no fim, benzida, devendo, a mulher, depois de a amassar, desenhar-lhe uma cruz em cima e rezar a seguinte jaculatória: “San João t’afermente e Sant’Antonho t’acrescente”. Do forno saiam labaredas enormes e vermelhas que enchiam a casa de fumo e de calor. Só estaria pronto pão quando as pedras que ficavam por cima da porta estivessem brancas. Era necessário, em seguida, varrê-lo com o varredouro, geralmente feito de faia do norte ou de louro. Havia quem não tivesse verduras e fizesse um varredouro de trapos velhos mas, neste caso teria que o molhar, o que, segundo as opiniões mais abalizadas prejudicava o aquecimento do forno. A cinza era retirada e as brasas puxadas para junto da porta e guardadas numa espécie de átrio que esta tinha e protegidas com um semicírculo de ferro para que não caíssem no chão. De seguida a massa era partida em pedaços e padejada numa tigela previamente polvilhada com farinha e depois despejada em cima da pá que os ia colocando e arrumando dentro do forno, o qual deveria ser muito bem tapado. Passado uma hora o pão estava cozido e era retirado, um a um, com uma pá, colocado em cima da mesa e abafado com colchas e cobertores. Se o forno não estivesse bem aquecido o pão podia “encruar” e se apanhasse frio ao tirá-lo do forno podia “ocar”. Essa a razão porque nunca se devia abrir a porta da cozinha enquanto se tirava o pão do forno. A mulher que o cozia também não devia sair de casa e resguardar-se do frio durante toda a tarde e noite.
O bolo e as escaldadas eram feitos com uma massa semelhante à do pão mas sem fermento e sem “mistura”, com a diferença de que o bolo era cozido em tijolo de barro ou na chapa e as escaldadas no forno, imediatamente a seguir ao pão e aproveitando o calor resultante da cozedura deste. Acrescente-se que estas, para não levantarem, eram picadas com um garfo em toda a sua superfície superior. Por vezes coziam-se umas escaldadas especiais, uma vez que à massa se juntava graxa e uns pedacinhos de torresmos. Eram as chamadas escaldadas de torresmos.
Finalmente as papas que eram feitas quando o pão ou o bolo rareavam e eram de fácil mas demorada e cuidadosa elaboração. Num caldeirão com água a ferver era lançada a farinha que deveria ser contínua e ininterruptamente mexida com a “colher das papas” a fim de não formar godilhões. Mas papas, por mais mexidas que fossem, inequivocamente apegavam ao fundo do caldeirão formando uma deliciosa e apetitosa crosta conhecida por “Cascão das Papas”.
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O CICLO DO MILHO VI
Era nos estaleiros que se guardava o milho, quer os cambulhões em que as maçarocas tinham a casca quer as cambulhadas em que eram encambulhadas descascadas. O milho ali ficava a secar desde o dia da apanha até à altura em que fosse necessário levá-lo para o moinho, a fim de o transformar em farinha.
Construídos sempre muito perto das casas, geralmente num quintal, numa courela ou até no curral das galinhas, os estaleiros na Fajã Grande tinham quatro formas diferentes.
Uns, os maiores que eram também os mais comuns e usuais, tinham a forma de um telhado acentuadamente inclinado, assente sobre grossos barrotes de madeira, as faces laterais constituídas por tiras ou “taliscas” de madeira, paralelas umas às outras, em forma de grade e pregadas aos paus das arestas e a outros que as subdividiam em duas ou três partes. Era nesta tiras que se penduravam com arte e sabedoria os cambulhões cujas maçarocas tinham casca, e que ficavam de tal maneira expostos de maneira que a chuva não penetrasse e atingisse as maçarocas e os ventos ciclónicos do Inverno não levassem o próprio milho pelos ares. Apenas as faces das cabeceiras e a da base não tinham tiras pelo que ficavam abertas a fim de que o ar circulasse por entre as espigas e estas não deteriorassem ou apodrecessem. No interior também eram pregadas tiras paralelas à base onde se penduravam as cambulhadas. A armação destes estaleiros assentava em quatro ou seis pés, todos de alvenaria caiada e muito lisos a fim de evitar a subida dos ratos.
Havia outros estaleiros muito semelhantes a estes no tamanho mas em forma de cubo, assente em cima de quatro pés, semelhantes aos outros. Os cambulhões com casca eram pendurados nas quatro faces laterais, ficando abertas, para entrada do ar, a base e a parte superior. Estes estaleiros eram raros.
Outros tipos de estaleiros, mais simples e mais pequenos eram os formados apenas por quatro paus. Estes eram enfiados na terra equidistantes uns dos outros mas de tal maneira inclinados que se juntavam na parte superior sendo então amarrados com um forte arame, formando uma espécie de pirâmide cujas faces também eram cravejadas de tiras paralelas, nas quais eram pendurados os cambulhões, quer com casca quer sem casca. A protecção contra os ratos obtinha-se através da colocação de umas folhas de lata no cimo dos pés. Estes estaleiros eram de construção esporádica e normalmente eram construídos quando o milho não cabia no estaleiro principal.
Finalmente e construídos pelas pessoas que tinham pouco milho, havia uns estaleiros muito mais simples e constituídos por quatro ou cinco paus paralelos uns aos outros e nos quais se pregavam as ripas, formando uma espécie de grade que se encostava geralmente às empenas das casas e onde se penduravam os cambulhões.
Pendurar o milho nos estaleiros era uma arte e exigia sabedoria e experiência. Os cambulhões começavam a pendurar-se de baixo para cima, umas maçarocas ficavam viradas para fora e outras para dentro, formando uma espécie de cobertura de telhado até chegar à trolha, ou seja, aresta oposta a base e que tinha que ser muito bem coberta, sendo para tal elaborados uns cambulhões maiores.
Ao longo do ano, quando não havia farinha ou quando a existente estava prestes a chegar ao fim era necessário tirar uma parte do milho que estava guardado nos estaleiros, de maneira a encher uma moenda que seria levada ao moinho.
Para tal era necessário tirar do estaleiro uma certa quantidade deo milho, o qual, antecipadamente devia ser descascado, caso se tratasse de cambulhões. O primeiro milho a levar-se ao moinho era o que se havia guardado no balaio. Só depois de utilizado todo este se recorria ao dos estaleiros, começando sempre pelas cambulhadas. Só depois se tirava milho dos cambulhões. A retirada destes do estaleiro deveria ser sempre inversa à da sua colocação, de forma a não prejudicar o que lá ficava e apenas na quantidade necessária para encher a respectiva moenda, que de imediato seria levada ao moinho.
Na Fajã Grande havia quatro moinhos todos na Ribeira das Casas, dois pertencentes a tio Manuel Luís, um ao Manuel Dawling e o Moinho do Engenho, que teve vários proprietários, acabando, mais tarde, por ser abandonado. Competia a cada agricultor ou a um membro da sua família levar a sua própria moenda ao moinho, tarefa geralmente atribuída às raparigas, as quais aproveitavam a ida para por em dia a conversa com os namorados. Na ocasião em que se entregava a moenda era combinado com o moleiro o dia em que estaria pronta.
Ao moleiro competia apenas moer o milho, pagando-se ele próprio do seu trabalho através de uma “maquia” de farinha que retirava de cada uma das moendas. Como geralmente não a utilizava para uso pessoal, dado que ele próprio também tinha as suas terras de milho, vendia-a compensando assim todo o trabalho que tinha e as horas que passava no moinho, onde geralmente pernoitava, pois a substituição de cada moenda era manual.
Os moinhos na Fajã Grande, como aliás em toda a ilha das Flores eram movidos a água, por isso eram construídos junto das ribeiras donde se desviava a água para um rego ou levada, que corria na direcção do moinho. A água encanada no respectivo rego corria no mesmo com maior pressão, saía do rego e projectava-se contra uma enorme roda dentada cujo movimento comunicava a toda a restante engrenagem que acabava por movimentar a mó. Na Fajã Grande os moinhos ficavam situados junto da Ribeira das Casas e deles, actualmente, apenas restam ruínas.
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O CICLO DO MILHO V
Finalmente o dia da apanha. As pessoas destinadas aquela tarefa dirigiam-se para o campo seleccionado bastante cedo, umas vezes ainda alta madrugada outras noite escura, sendo que por vezes ao nascer do Sol o milho já estava quase todo apanhado. Os cestos eram colocados estrategicamente em pontos diversos ao longo do terreno enquanto se iam arrancando as maçarocas dos milheiros com perícia e destreza, atirando-as, de seguida, para dentro dos cestos, até os encher bem “acaculados”. Muitas terras ficavam longe do caminho e a elas se tinha acesso apenas por canadas muito estreitas onde os carros de bois não cabiam. Era aos mais jovens, mais robustos e mais fortes que competia a tarefa de acarretar os enormes cestos cheios a abarrotar de maçarocas, às costas, até ao carro de bois, dentro do qual o milho ia sendo muito bem empilhado e arrumado. Quando a sebe estava rasa fazia-se à sua volta uma borda com as maçarocas mais gradas, criando assim um novo espaço que se ia enchendo e depois uma outra borda e várias outras até a sebe ficar a abarrotar. Uma vez cheio, um ou mais homens, tangendo os bois, conduziam o carro até a casa despejando literalmente o milho na cozinha, caso o proprietário não tivesse uma casa de arrumos adequada.
Ao meio do dia geralmente terminava a apanha e a recolha do milho. A cozinha enchia-se, então, de maçarocas do chão até ao tecto. Enquanto não começava a tarefa de encambulhar as crianças aproveitavam para brincar ao escorrega, já que os não havia noutro sítio. Assim entretinham-se vezes sem conta a subir o monte das maçarocas para depois deslizar por ele abaixo simulando e profetizando os modernos escorregas dos parques infantis.
De tarde iniciava-se o encambulhar. Sentados em banquinhos ou se os não havia em cestos com o fundo voltado para cima, à volta do monte do milho, homens mulheres e jovens pegavam nas maçarocas uma a uma e procediam a uma avaliação rigorosa da mesma. Se era raquítica, debilitada, atrofiada ou se a casca não cobria bem os grãos era separada das restantes. Caso contrário, isto é se a maçaroca aparentava boa qualidade era lhe puxada uma folha da sua própria casca, o mesmo se fazendo com mais algumas, juntando-se todas numa espécie de molho. Depois retorcia-se a parte das pontas formando uma espécie de trança, dobrava-se e amarravam-se todas muito bem amarradas com um fio de espadana. Eram os cambulhões que se iam separando do resto do milho, competindo às crianças acarretá-los aos ombros ou nas mãos para junto do estaleiro onde seriam devidamente pendurados e guardados.
As restantes maçarocas ou seja aquelas que não tinham as qualidades necessárias para serem encambulhadas com a casca separavam-se e, no final, eram descascadas mas não na totalidade. Deixava-se em cada uma delas, uma folha mais resistente o mesmo se fazendo com mais algumas, juntando-as todas também num molho e formando cambulhões de forma muito semelhante aos das que tinham casca, embora, regra geral, estes cambulhões tivessem menor número de maçarocas.
Finalmente havia algumas maçarocas às quais era impossível deixar qualquer casca. Estas eram guardadas no balaio, uma espécie de cesto muito grande em forma de alguidar, e, depois de postas a secar ao Sol dias e dias, seriam debulhadas e o seu milho seria o primeiro a ser utilizado, quer para encher as moendas e levar ao moinho quer para alimento de galinhas, vacas e porcos.
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O CICLO DO MILHO IV
Depois de sachados, corridos e desbastados os milheirais cresciam de dia para dia. As suas folhas muito verdinhas e esticadas entrelaçavam-se umas nas outras e balouçavam como ondas ao sabor das brisas matinais e os caules amarelos, canelados e esguios, tornavam-se altíssimos, enfeitando-se lá no alto com umas flores estranhas que cobriam os campos como se fossem dezenas, centenas de mantos esbranquiçados e fofos como que a cobrir uma boa parte da freguesia. Pouco depois eram as maçarocas a despontarem nos milheiros, pequeninas e sorridentes, com as suas barbichas douradas e a crescerem de dia para dia acariciadas com o Sol do Outono.
Quando as folhas e o caule começavam a alourar e com as maçarocas já durinhas, (resistentes à unha) era altura de quebrar as espigas. Esta operação também não era fácil e requeria arte, técnica e sabedoria. Primeiro porque tinha que ser feita na altura adequada e quando já não prejudicasse o crescer da maçaroca e consequentemente dos grãos. Em segundo lugar, porque a espiga ou pendão devia ser quebrada no nó certo e adequado, ou seja, pelo primeiro nó logo acima da maçaroca, devendo para tal obedecer a um toque ou movimento afoito, destemido e certeiro da mão de quem o fazia, toque que nem todos sabiam dar. Dobrado o milheiro noutro sítio não mais se quebraria à mão. Era necessário, nesse caso, recorrer à navalha ou outro objecto cortante, o que demorava bastante tempo. Acrescente-se que muitos agricultores, sobretudo os mais jovens, recorriam sempre ao corte da espiga com uma navalha ou com uma foice porque não sabiam cortá-la à mão, o que, segundo a opinião dos mais velhos era mais prejudicial para o milho.
A espiga geralmente não era quebrada toda no mesmo dia, mas em dias sucessivos para que assim permanecesse mais verde e fresquinha para alimentar os animais. Alguns agricultores, no entanto, preferiam, depois de quebrá-la ou cortá-la, deixá-la a secar em cima dos marouços ou contra as paredes e depois de seca guardá-la nos palheiros para alimento dos bovinos, no Inverno.
Algum tempo depois era a altura de desfolhar o milho. Dias antes apanhavam-se folhas e folhas de espadana que se cortavam em pedacinhos, os quais, por sua vez, se desfiavam em tiras fininhas com as quais se faziam pequenos molhos. Estes eram presos numa alheta das calças e com eles se iam amarando as folhas do milho à medida que se iam arrancando dos milheiros, formando “pavias” ou “mãos-cheias” que eram penduradas num ou noutro dos milheiros, junto à maçaroca, para que, secassem melhor e, alguns dias depois, na altura da recolha, fosse mais fácil encontrá-las e recolhê-las. O desfolhar, no entanto, não era tarefa fácil pois exigia-se que a folha fosse arrancada do milheiro com a bainha, o que, sobretudo para os menos experientes, revelava-se um pouco difícil e demorava muito mais tempo. Alguns “desfolhadores” mais expeditos faziam-no com muita arte e perfeição e até conseguiam amarrar a pavias de folhas com uma outra folha. Outros para extrair a folha com a bainha faziam-no muito lentamente dado que a despegavam do milheiro uma por uma e com as próprias unhas. Nesse caso a desfolha ficava perfeita e as “pavias” para além de mais rentáveis também ficavam mais bonitas. Curiosamente esta era uma das tarefas em que os agricultores mais se ajudavam uns aos outros, fazendo-o, por vezes, até de noite, aproveitando a Lua-cheia ou recorrendo às Petromax que alguém ia segurando sobre a cabeça por entre os milheirais.
A rama depois de seca e enxuta era acarretada para junto de casa em carros de bois ou aos ombros e guardada nas casas velhas ou de arrumos, destinando-se a alimentar o gado nos rigorosos dias de Inverno, durante os quais era impossível ir aos campos buscar comida verde e fresca.
O dia de “apanhar o milho” era um dia de muito trabalho. Mas como geralmente aos trabalhos duros e pesados era dado um certo sentido de alegria, este dia também era, em certo sentido, um dia de festa.
Na véspera era preciso preparar tudo: consertar o estaleiro se necessário, untar os cocões e montar a sebe no carro de bois, arranjar os cestos necessários, cortar e desfiar as espadanas e cozinhar a comida necessária de acordo com as pessoas de fora que eventualmente viessem ajudar.
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O CICLO DO MILHO III
Uma vez semeado, não tardava muito e era um regalo ver o milho a crescer, a crescer, muito verdinho e espevitado. Em Abril, Maio ou Junho começava a primeira das várias e pesadas tarefas que a produção do milho exigia - sachar. Quando o milho ainda estava miudinho mas já muito bem-nascido, por vezes debaixo de um calor tórrido, homens mulheres e crianças dirigiam-se para as terras descalços, chapéu na cabeça e sacho às costas. Sachavam e mondavam todos os campos onde havia milho, de lés a lés, retirando as ervas daninhas e as mondas para que o milho crescesse melhor e dispusesse de toda a riqueza e força do terreno. Antes porém um ou dois homens mais experientes iam à frente com o intuito de desbastar o milho, isto é, de arrancar os pés aparentemente inúteis bem como os das zonas em que estavam mais bastos para que os outros crescessem mais à vontade. Era um trabalho difícil, uma espécie de arte que só os mais velhos e experientes sabiam e podiam fazer. Se o milho ainda era miudinho esses pés excedentes ficavam a apodrecer sobre a terra, juntamente com a monda que também era arrancada. Mais tarde haviam de se transformar em estrume. Se pelo contrário o milho já era maiorzito, os pezinhos arrancados eram atados em gavelas que depois se amarravam formando molhos que eram trazidas para casa, para alimento dos animais bovinos. Os que iam atrás, curvados com uma mão no sacho outra na monda ou na terra, arrancavam todas as ervas daninhas existentes, sacudiam-lhes as raízes e reviravam toda a terra com o sacho, amontoando-a junto dos pezinhos do milho, sobretudo dos mais frágeis, para que estes crescessem fortes e se protegessem das ventanias e temporais que viriam algum tempo depois.
Uma vez sachado, mondado e desbastado, o milho crescia a olhos vistos e nos dias seguintes os campos transformavam-se em enormes tapetes de folhas verdes, caneladas e pontiagudas, ladeadas pelos canteiros onde floresciam couves repolhudas e, às vezes até as ervilhas, os feijoeiros, as caseiras e os tomateiros também entrelaçados pelo meio, que embora semeados em pequena quantidade, começavam já a trepar pelas estacas de cana que eram espetadas aqui e além ou pelos próprios milheirais.
Algum tempo depois, era necessário “correr” o milho e desbastá-lo novamente. A tarefa de correr era bem mais rápida do que o sachar, pois nessa altura já tinham sido arrancadas quase todas as mondas e ervas daninhas. Agora bastava apenas passar novamente toda a terra a terra com o sacho ou com o lado de uma enxada e ajeitá-la ainda mais para junto de cada pé de milho para que este, agora já bem mais alto e esguio, ficasse bem “calçado” e resistisse corajosamente à força do vento. Nessa altura o milho era desbastado pela última vez. Aos pés agora arrancados era cortada a raiz e eram trazidos para casa para alimento dos animais. Nas terras longe do mar, quando o milho já estava espigado, era semeado o trevo e a erva da casta, devendo todo o terreno ser novamente passado ou seja revirado de lés a lés com um ancinho a fim de que as sementes lançadas à terra se misturem com esta para nascerem as respectivas forrageiras.
Na Fajã Grande, contrariamente a outras localidades das Flores e dos Açores, os homens sempre sacharam e correram o milho curvados ou de cócoras, segurando com uma mão o sacho e arrancando a monda ou anafando, ajeitando ou alisando a terra com a outra. Essa a razão por que aos sachos comprados nas lojas e que vinha do Faial se lhes cortava sempre o cabo pelo meio.
Nos finais da década de cinquenta surgiu na Fajã a “caliveira” a qual veio alterar significativamente, poder-se-á mesmo dizer que veio revolucionar, a cultura do milho, nomeadamente a forma de o semear e a maneira de o sachar.
A “caliveira” era uma espécie de sachador, puxado apenas por um animal, geralmente um burro ou um macho, que tinha uma armação de forma triangular, sustentada à frente por uma roda, como o arado de ferro e à qual se seguiam séries de um, dois e três dentes com o formato de enxadas, de tal forma dispostos que os de trás passavam por onde não tinham passado os da frente, permitindo assim revolver toda a terra por onde a caliveira passava e que era conduzida por uma rabiça de duas pegas. Destinava-se a sachar o milho, revirando a terra com os dentes e, simultaneamente, arrancando as ervas daninhas. Por essa razão a forma de semear o milho foi substancialmente alterada: os regos passaram a ser rigorosamente paralelos uns aos outros e sempre no cumprimento do terreno, o milho passou a ser semeado um rego sim e dois não de forma a que, quando crescesse, a caliveira e o animal que a puxava pudessem passar por uma espécie de carreiro rectilíneo que ficava entre cada um dos dois regos semeados. Idêntico procedimento era tido nas cabeceiras do terreno.
A caliveira, no entanto, tinha vantagens mas também tinha desvantagens. No que concerne às primeiras, a caliveira aliviava o cansativo trabalho de andar vergado ao sacho dias e dias e, além disso, era bastante mais rápida. No entanto, tinha alguns malefícios o que levou alguns agricultores a teimarem em não a adaptar aos seus terrenos: obrigava a semear o milho em linhas paralelas muito alinhadas e equidistantes o que não era fácil devido à morfologia das terras, destruía muito do milho já crescido, quer por parte do animal, apesar de andar com uma boquilha, quer ao virar a caliveira nos extremos ou até mesmo ou não conduzi-la correctamente. Além disso a caliveira não sachava nem os cantos nem junto aos pés de milho, nem muito menos puxava a terra para junto dos pés deste, obrigando assim, que após o calivar, fosse necessário sachar grande parte do terreno e puxar a terra para junto dos pés de milho. Além disso as caliveiras eram bastante caras e só os lavradores um pouco mais abastados as podiam comprar, embora alguns destes as emprestassem aos que as não tinham por não as poder comprar. Assim acontecia com meu pai e meus irmãos que, por razões económicas, nunca tiveram caliveira mas sacharam sempre o seu milho com uma que lhes emprestava tio José Teodósio, que morava mesmo ali, em frente a uma terra que tínhamos na Fontinha.
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O CICLO DO MILHO II
Nas chamadas “terras de oitono”, ou seja, naquelas em que era semeado trevo, erva da casta ou até favas e onde durante os meses de Abril e Maio as vacas estavam amarradas à estaca ou à “à cordada”, a preparação dos terrenos para o semear do milho era um pouquinho diferente. Estas terras ficavam situadas nos seguintes lugares: Ribeira das Casas, Calhau Miúdo, Mimoio, Ladeira, Fontinha, Alagoeiro, Ribeira, Fonte de Cima, Batel, Bandeja, Queimadas, Vale da Vaca, Descansadouro e Delgado.
Em primeiro lugar, estas terras, geralmente não eram enriquecidas nem com esterco nem com sargaço. Por um lado a maior parte dos acessos a muitas delas, como por exemplo o Mimoio, eram canadas apertadíssimas por onde os carros de bois não conseguiam passar e, por outro, aqueles produtos eram geralmente gastos nas outras terras. Além disso e, regra geral, estas terras eram muito bem adubadas pelas vacas enquanto lá estavam amarradas à estaca. É que estas ficavam ali presas dia e noite, mesmo em dias de chuva (só em dias de temporal eram trazidas para os palheiros), tendo muitas vezes, para além da comida que a “cordada” das forrageiras lhes proporcionava, um suplemento alimentar constituído por gavelas de erva, de incensos de couve ou de outra comida, precisamente para que os animais permanecessem mais tempo em todos e cada um dos pedacinhos de terra, a fim de estrumar melhor o campo onde, algum tempo depois havia de ser semeado o milho. Apenas quando as terras, por qualquer razão, não eram bem “trilhadas” ou seja adubadas pelas vacas se enriqueciam com um ou dois sacos de adubo.
A batata-doce, nestas terras também não se misturava com a cultura do milho. Era cultivada só, em terras para tal preparadas – batata-doce de latada e era esta que se destinava à alimentação das pessoas. Nas restantes cultivava-se o milho que crescia orgulhosamente só, até deitar espiga. Só então por entre os milheirais já crescidos e espigados se espalhava a semente de trevo ou de erva da casta que depois era coberta ou misturada na terra com um ancinho para de seguida nascer, crescer e florir após a apanha daquele cereal, transformando os campos em maravilhosos tapetes verdes matizados de vermelho, branco, rosa e azul, com que as vaquinhas se haviam de regalar mais tarde.
De resto, todo o processo de preparação do terreno, no que diz respeito a lavrar, gradar e atalhar, era igual aos das outras terras. Primeiro eram lavradas com o arado de ferro, de seguida gradadas uma e duas vezes e, mais tarde, atalhadas. No entanto, o lavrar aqui era muito mais difícil e tornava-se mais cansativo para os animais que puxavam o arado, uma vez que o terreno estava rigorosamente muito mais endurecido.
No que concerne à sementeira do milho o maior e primeiro cuidado que havia de se ter era o da escolha da semente. Milho para se semear tinha que ser de boa qualidade e, por essa razão, aquele que se queria para semente era seleccionado entre o melhor de toda a produção. Cada agricultor escolhia a terra onde o seu milho era melhor ou uma a zona da mesma onde tal acontecesse e guardava-o com maior cuidado. As maçarocas destinadas à semente deviam ser conservadas em lugar apropriado e, por vezes, até deviam ter tratamento especializado, para que o gorgulho, o maior inimigo do milho seco, não as estragasse. Milho semeado que eventualmente estivesse furado pelo gorgulho não nasceria. Quem não conseguisse milho adequado para a sementeira, resultante da sua própria colheita tinha que comprá-lo, de contrário sujeitar-se-ia a uma nula ou má colheita.
Obtida a boa semente agendava-se o dia da sementeira. Nas terras da beira-mar semeava-se em Abril e princípios de Maio e nelas, quando o milho começava a nascer, era-lhe plantada, pelo meio, a batata-doce. Nas restantes terras, porque mais frias, semeava-se quando o tempo já era mais quente, ou seja, no início do Verão.
Numas e noutras terras o milho era semeado em regos feitos por um arado de pau, de forma muito semelhante ao atalhar. Este arado, todo em madeira excepto a ponta que era em ferro, era puxado por uma ou duas reses. Estas, caso não estivessem habituadas ao trabalho, para além do lavrador que ia agarrado à rabiça, conduzindo o arado no sítio certo para o rego, carregando-o para que fizesse um bom rego e tangendo os animais, teriam que ter alguém que andasse na sua frente, conduzindo-as de acordo com as orientações do lavrador que tentava levar sempre o arado de forma a traçar regos paralelos e simétricos de uma extremidade à outra do campo. Era geralmente às mulheres que competia seguir atrás do arado, descalças, de lenço e chapéu na cabeça, atirando os grãos de milho para o respectivo rego. Esta tarefa exigia muita habilidade. Retirando punhados de milho de uma cesta que geralmente levava enfiada no braço esquerdo iam atirando com a mão direita grão os grãos, uns após os outros, para os regos que eram sulcados pelo arado. Faziam-no com tanta agilidade e perícia que os grãozinhos caiam direitinhos bem no fundo do respectivo rego onde ficavam muito bem alinhados, juntinhos e equidistantes uns dos outros, para poderem nascer e crescer à vontade. Por vezes eram atirados de dois a dois para que nascesse um par de pezinhos de milho, como se fossem gémeos. Cada rego fechava-se com o abrir do rego seguinte, tapando assim os grãozinhos que ali ficavam a germinar durante alguns dias. Por fim a terra era novamente gradeada e alisada para que os grãos ficassem todos muito bem escondidinhos para que os pássaros os não comessem e também para que germinassem mais facilmente, com a ajuda do Sol e da chuva dos dias seguintes. A sementeira do milho, sobretudo se a terra era boa e estava bem adubada, era muito densa e feita de forma a aproveitar muito bem todo o terreno. Este aproveitamento era tal que terminada a tarefa até se semeavam manualmente e com uma enxada os cantos do terreno que tinham ficado por lavrar porque o arado não conseguira lá chegar.
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O CICLO DO MILHO I
A economia (se é que se pode falar em tal) da Fajã Grande, nos anos 50, baseava-se fundamentalmente numa agricultura de subsistência, em que o principal e mais importante produto cultivado era o milho, a cuja cultura estava necessariamente ligada a pecuária.
Nesta agricultura de subsistência o cultivo do milho revelava-se deveras muito importante, dado que dele dependia quase na totalidade a sobrevivência da população e, por essa razão, o seu ciclo, prolongava-se em etapas diferentes e em tarefas múltiplas e diversificadas ao longo de quase todo o ano.
Além disso os espaços circundantes às habitações, nomeadamente as casas de arrumos, os palheiros e os estaleiros, bem como os utensílios agrícolas existentes edificavam-se, construíam-se, adaptavam-se, adequavam-se ou até se adquiriam em função das necessidades a que a árdua tarefa de cultivar e produzir o milho obrigava a população.
Por outro lado, urge clarificar que todo o desmesurado trabalho, o cansativo esforço e até os enormes gastos que se tinha com a produção do milho eram, na realidade, extremamente compensados, com tudo aquilo que o milho dava. Em primeiro lugar o produto final, ou seja, o que de mais importante se extraía do milho – a farinha, com a qual se fazia o pão e o bolo, elementos básicos no cardápio alimentar de então. Mas não se ficavam por aqui os lucros e benefícios de tal produção. As maçarocas, quando o milho estava verde e ainda “vertiam leite” eram cozidas juntamente com as batatas brancas ou assadas no espeto e constituíam um bom e saboroso alimento. As folhas tinham um peso substancial na alimentação do gado no Inverno e as espigas, ainda verdes, também alimentavam os bovinos no Verão; a parte interior da casca das maçarocas, depois de desfiada e alisada, era utilizada para encher os colchões e travesseiros e com a restante também se alimentavam os bovinos; uma parte dos milheiros utilizava-se para fazer o lume em que se cozinhava a comida do porco, enquanto outros eram picados em pequenos pedaços e utilizados para “secar” o curral do suíno das húmidas imundícies em que era profícuo, graças ao seu desassossegado e hediondo reboliço; os sabugos eram utilizados para acender o lume, para as crianças brincarem e até para limpeza e higiene do rabiosque; uma boa parte das maçarocas, sobretudo aquelas cujos grãos eram mais raquíticos bem como as excedentes da produção da farinha, eram utilizados para alimento das galinhas, do porco e das vacas “à engorda”e até com os fios da cabeleira que saíam da ponta da maçaroca, depois de secos, se fazia chá, muito recomendado nos achaques dos rins e nas infecções urinárias. Além disso e depois de peneirada, a farinha deixava no fundo da peneira um farelo que era utilizado em parte para engrossar as águas das lavagens do porco e também para alimento das galinhas, fazendo-se com ele uma espécie de bola a que se juntavam couves e cascas de batatas, geralmente cozidas e picadas. Finalmente, com a farinha do milho ainda não seco faziam-se “papas grossas”.
Daí que toda esta “riqueza” resultante do cultivo do milho justificasse por demais um trabalho excessivo e cuidadoso e envolvesse toda a população no seu cultivo, a que dedicava grandes cuidados e gigantescos esforços. O milho era, na realidade, a causa e a razão de tudo. Daí que ter terras de milho, bem verdinho, muito alto, bem espigado e com boas maçarocas era um orgulho para os seus proprietários e motivo para serem louvados e, talvez mesmo, invejados.
A preparação dos terrenos situados entre a beira-mar e as casas, ou seja as terras do Areal, das Furnas e do Porto, para se semear o milho, era efectuada de forma desigual e em tempos diferentes das restantes, ou seja das chamadas “terras do oitono” e que se situavam entre as casas e as relvas ou até já misturadas com estas e, por conseguinte, mais distantes do mar. Por essa razão aqueles terrenos eram mais quentes e estes últimos mais frios, o que, no que respeita às tarefas do cultivo do milho, obrigava necessariamente a um tratamento e a uma calendarização diferentes
As terras da zona mais próxima do mar, dada a sua fecundidade, regra geral, produziam vários produtos agrícolas durante todo ano, destacando-se três: couves, milho e batata-doce. A estes porém juntava-se muitos outros produtos: abóboras, bogangos, feijão, cebolas, etc. As couves, que cresciam acompanhadas das abóboras e dos bogangos, antecediam o cultivo do milho enquanto a cultura da batata-doce e as restantes eram simultâneas da daquele cereal.
As couves eram obtidas da plantação da couvinha que desabrochava em canteiros, num ou noutro canto da terra onde as sementes de couve haviam sido semeadas e muito bem adubadas. Os pés de couvinha eram espalhados sobre a terra e plantadas à enxada logo após a apanha do milho e da batata-doce e destinavam-se quase totalmente à alimentação do gado bovino e do suíno, devendo, neste último caso, serem cozidas. Além disso enrijeciam e fortaleciam a terra, pois ao serem cortadas pelo caule afim de serem transportadas em molhos para os palheiros, deixavam no terreno uma raiz muito forte, que, mais tarde, teria que ser arrancada, sacudida e geralmente atirada para cima dos marouços ou então deixada a apodrecer, transformando-se assim numa espécie de estrume vegetal, ajudando a fortalecer o terreno que aguardava o semear do milho. A estes e outros resíduos, porém juntavam-se carros e carros de bois bem cheiinhos de estrume ou de sargaço, que se iam despejando em montículos mais ou menos equidistantes uns dos outros. De seguida, todo este “adubo orgânico” era espalhado equitativamente por toda a terra, com garfos, de forma a cobrir muito bem coberta toda a superfície arável do campo.
Só então se procedia ao lavrar ou “abrir” do terreno, tarefa efectuada com o arado de ferro puxado por uma valente junto de bois. Na Fajã havia dois ou três lavradores que tinham junta de bois com as quais “davam dias para fora”, ou seja lavravam os campos de quem necessitava mediante pagamento, tornando-se assim numa espécie de profissionais da lavoura. O arado de ferro, como o nome indica, era em grande parte construído em fero e tinha uma ponta muito bem afiada e uma enorme aiveca lateral, presa ao timão por um gancho que revirava ora para um lado ora para o outro, permitindo assim ao lavrador que a voltasse sempre para o lado do terreno que já estava lavrado. O lavrar dos campos iniciava-se geralmente com três voltas na periferia do terreno, num movimento contrário aos ponteiros de um relógio. De seguida efectuava-se de lés a lés, ao comprido ou ao atravessar do campo, sendo que, no caso de este ser inclinado se efectuar sempre de forma a que o revolver da terra a atirasse para a parte mais alta, permitindo assim ao terreno manter a sua forma e estrutura iniciais.
A etapa seguinte era a de gradar. O objectivo era desfazer as leivas e os torrões, tarefa efectuada com uma grade de madeira, com os picos de ferro voltados para baixo, e em cima da qual geralmente se colocavam algumas pedras bem pesadas. Por vezes, para fazer mais peso, era permitido às crianças, para seu gáudio, sentarem-se em cima da grade. Outras vezes era o próprio homem que a segurava com uma corda, que a guiava e que conduzia os animais que se colocava de pé em cima dela, substituindo ou aumentando o peso das pedras. De seguida efectuava-se um novo gradeamento, com a grade ao contrário, ou seja com os ferros voltados para cima, sendo que desta feita apenas só pedras lá se colocavam. O objectivo, desta feita, era alisar a terra, a qual, algum tempo depois, era “atalhada” com o arado de pau e novamente gradada, com a grade de costas.
Só então o terreno estava pronto para se semear o milho.
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DESTROÇOS
Vejo formas desfeitas, em cachão.
Inconstantes visões de santidade!
Sou louco, pois consinto a identidade,
Satisfaço rumores, dou a mão.
Espargindo um sonhar, em solidão
Fixam-se em mim sem dó nem piedade
E pedem-me, arrogantes, liberdade…
Há dom, há alvedrio, há gratidão.
Sou eu que me desfaço em vã desculpa,
Que me abrigo no elo do não-ser,
Agrilhoado à dor. Trágicos lamentos!
Não se perdem em vão tantos tormentos!
Pretendo só lavar a minha culpa,
Transportando esta dor, este sofrer.
Fajã Grande das Flores, Verão de 68.
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A FILHA DA BELA AURORA
A filha da Bela Aurora,
A filha da Bela Aurora,
Ai eu bem sei,
Procurava a mãe no mato,
Ai eu bem sei,
Mas nunca, nunca a encontrou.
Levantou-se sem dormir
Levantou-se sem dormir
Ai sem dormir,
Sem dormir toda a noite.
Ai sem dormir,
Sem dormir toda a noite.
A filha da Bela Aurora
Chorava, gemia e sofria.
Desesperada ela no pranto dizia,
Desesperada ela no pranto dizia:
- Desviado de Deus seja,
Desviado de Deus seja,
Quem minha mãe me tirou,
Quem minha mãe me tirou.
A filha da Bela Aurora
Trazia o retrato da mãe.
Na roda do, na roda do seu vestido,
Na roda do, na roda do seu vestido:
- Para que eu nunca te esqueça,
Para que eu nunca te esqueça,
Fica o retrato comigo,
Fica o retrato comigo.
- Dá-me os teus braços minha mãe,
Dá-me os teus braços minha mãe,
Ó querida mãe,
Como eu vou viver sem ti?
Ó querida mãe,
Como eu vou viver sem ti?
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FEITICEIRAS
Conta-se que antigamente havia um homem que ia levar as vacas a uma relva que tinha no Curralinho. Dizia-se que lá aparecia uma feiticeira mas o homem não acreditava nessas patranhas.
Certo dia, porém, quando regressava a casa, depois de tapar o portal da relva para que as vacas não saíssem durante a noite, viu aproximar-se um vulto de mulher que lhe pediu para lhe dar um pouco de leite que ela estava cheia de sede. Mas o homem disse-lhe que não lhe podia dar leite porque tinha ordenhado as vacas antes de sair de casa e naquele momento elas ainda não tinha leite no mojo que pudesse tirar.
A mulher, enfurecida, respondeu:
- À manhã falta lhe acharás.
O homem regressou a casa, deitou-se, adormeceu e nunca mais ligou ao que aquela estranha mulher lhe tinha dito.
Mas no dia seguinte, foi buscar as vacas e quando ele regressou com elas ao palheiro foi para as ordenhar, e até vaca melhor, a que dava sempre mais leite estava com o mojo seco e sem pingo de leite. Apesar de tudo da outra vaca ainda conseguiu tirar um pouco de leite. A sua mulher ao ver as latas quase vazias perguntou-lhe o que se tinha passado, porque é que naquela manhã havia menos leite que nos outros dias. O homem respondeu-lhe que tinha sido uma das vacas que tinha dado um coice na lata e virado todo o leite. Só tinha ficado aquela nica.
No dia seguinte o homem voltou a ir levar as vacas à relva, desta feita para os lados do Vale do Linho. Pelo caminho ele voltou a encontrar a mulher e, como a vaca continuasse com o mojo seco e sem pingo de leite, disse-lhe:
- Ou tu devolves o leite à minha melhor vaca ou eu dou cabo de ti, - E começou a bater nela com o bordão. Tantas pauladas lhe deu que por fim ela já suplicava para a deixar que a sua vaca havia de ter novamente leite quando fosse a ordenhá-la.
Conta ainda a estória que no dia seguinte o homem até teve que ordenhar a vaca pelo caminho duas vezes pelo caminho antes de chegar a casa, pois era tanto o leite que ela tinha no mojo que o derramava pelo chão.
Conta-se também que a partir de então o homem começou a acreditar em feiticeiras.
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EM MEMÓRIA DOS PASTORES DE SÃO CAETANO
Em São Caetano do Pico, nas décadas de sessenta e setenta do século passado, ainda eram muitos os lavradores da freguesia que tinham vacas leiteiras no mato, pelo que diariamente eram obrigados a subir uma boa parte da encosta sul da Montanha, a fim de chegar às relvas, muitas delas bastante distantes do povoado, procedendo assim à ordenha das vacas leiteiras. Isto obrigava os chamados Pastores a levantarem-se noite escura, subir a oblíqua encosta por caminhos e atalhos íngremes e sinuosos, proceder à ordenha, procurar uma ou outra rês desaparecida e regressar ao povoado, carregando pesadas latas de leite, chegando aos lares quase à hora do meio-dia. Este reboliço diário tinha um peso tão grande na vida quotidiana da população que era hábito haver aos domingos à tarde uma misa designada por a missa dos pastores, uma vez que estes deslocando-se ao mato todos os dias estavam impedidos de participar na eucaristia dominical, celebrada durante a manhã.
Muitos destes homens, devido às descomunais distâncias a que as vacas se encontravam, precisavam sair de casa por volta das duas horas e meia três da manhã, para percorrer oito a dez quilómetros para cada lado, por veredas e atalhos com muito mau piso, saltando portais com as pesadas canecas de madeira de cedro atrás das costas penduradas numa foice, onde se cruzava o bordão, que assim fazia uma espécie de alavanca tornando a carga menos pesada. Todos os pastores vendiam o leite e por isso, necessitavam de chegar muito cedo às vacas, caso contrário seria difícil ordenhá-las a tempo de chegar com o leite ao povoado. Além disso muitos deles diziam que se a ordenha se realizasse alto dia, as moscas eram tantas, que as vacas quase não parava com os pés e com o rabo, tentando sacudi-las, muitas vezes virando a caneca e por conseguinte derramando o precioso líquido.
Alguns na subida, em tempos de seca carregavam as canecas cheias de água, outros molhos de milho basto ou de espigas. Muitos seguiam em sozinhos ou em pequenos grupos, esperando uns pelos outros nas Fontes, onde se abasteciam de água e faziam um cigarro, picando o tabaco com a navalha e enrolando-o numa casca de milho. Por tudo isso a subida à ordenha era também um momento de convívio e alegria. Consta que em tempos idos alguns até tocavam um búzio, todos os dias, manhã cedo, quando chegavam junto das vacas e também depois da ordenha, anunciando aos outros que a tarefa estava terminada e que iniciariam o regresso a casa. Consta também que os sons desses búzios eram de tal maneira acutilantes, apesar da muita distância, ouviam-se em toda a freguesia, sabendo assim os familiares do pastor que ele estava a regressar a casa. Em dias de nevoeiro estes búzios também deveriam ser de grande utilidade.
Apesar de cansados, muitos destes homens, antes de retomarem os seus trabalhos agrícolas diários, ainda davam uma volta pela adega ou por um botequim que havia no Porto.
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ÁLAMO OLIVEIRA
Álamo Oliveira nasceu na freguesia do Raminho, na ilha Terceira, tendo iniciado os seus estudos no Seminário de Angra do Heroísmo. Trabalhou sempre ligado à cultura em diversos departamentos do estado, tendo-se reformado no ano de 2001.
O romance Já não gosto de chocolates foi traduzido e publicado nos Estados Unidos e Japão. Até hoje, memórias de cão foi galardoado com o prémio Maré Viva, da Câmara Municipal do Seixal e Solidão da Casa do Regalo foi galardoado com o prémio Almeida Garrett. Já editou trinta e três livros, quer de poesia, romance, contos, teatro e de ensaios, sendo que alguns serviram como base a trabalhos académicos em faculdades dos Estados Unidos e também do Brasil.
A sua poesia já foi traduzida para inglês, francês, espanhol e croata.
É um dos membros fundadores do grupo de teatro Alpendre, com sede em Angra do Heroísmo e o mais antigo agrupamento de teatro dos Açores, a que o Governo regional dos Açores conferiu o Estatuto de Instituição de Utilidade Pública.
A 10 de junho de 2010, nas comemorações do Dia de Portugal e das Comunidades, Álamo Oliveira recebeu o grau de Comendador da Ordem do Mérito.
Obras Principais Poesia: Poemas de(s)amor, Fábulas, Os quinze misteriosos mistérios, "Almeida Firmino - poeta dos Açores, Eu fui ao Pico piquei-me, Itinerário das gaivotas, Sabeis quem É este João?, Nem mais amor que fogo, Missa Terra Lavrada, Os Sonhos do Infante, Um Quixote, Morte ou Vida do Poeta, Manuel, seis vezes pensei em ti, Uma hortênsia para Brianda, Burra preta-com uma lágrima. Ensaio: Abordagem" (teatral) a Quando o mar galgou a terra" de Armando Cortes Rodrigues. Contos: Contos com Desconto, Com Perfume e com Veneno. Outros: 14 poetas de aqui e de agora, Antologia de poesia açoriana, Antologia panorâmica do conto açoriano séculos XIX e XX, The sea within, Sempre disse tais coisas esperançado na vulcanologia - 12 poetas dos Açores (organização e notas de Emanuel Jorge Botelho). Teatro: Um Quixote, Morte ou Vida do Poeta, Manuel, seis vezes pensei em ti, e Uma hortênsia para Brianda. Ficção: Burra preta-com uma lágrimas, Triste vida leva a garça, Até Hoje (Memórias de Cão), Pátio d’Alfândega Meia-Noite, Já Não Gosto de Chocolates, Murmúrios com vinho de missa.
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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OS TRÊS REIS DO ORIENTE
Quando o Menino Jesus nasceu, em três países muito distantes da gruta onde estavam São José e Nossa Senhora, no Oriente, viviam três reis muito bondosos e sábios. Não se conheciam, mas, numa noite todos tiveram o mesmo sonho: viram uma estrela muito brilhante no céu que lhes dizia que algo de especial tinha acontecido especial tinha acontecido. Havia nascido um novo rei, o Filho de Deus, o Messias, que vinha salvar todos os homens e conduzi-los nos caminhos da paz, da bondade, da justiça e do amor
Cada um deles decidiu no dia seguinte pôr-se a caminho, na direção da estrela para vir adorar o Menino. Chamavam-se Gaspar, Melchior e Baltazar, falavam línguas diferentes e eram de raças distintas: um preto, um branco e um amarelo. Mas logo se encontraram e caminharam juntos. Como eram ricos traziam presentes valiosos, um incenso, outro mirra e o terceiro ouro. Seguiram a estrela que os guiava até que chegaram à cidade de Jerusalém. Aí, perguntaram ao rei Herodes por Jesus, o novo Rei dos Judeus que tinha nascido, pois tinham visto a estrela no céu.
Quando o rei Herodes soube que estrangeiros procuravam um bebé, ficou zangado e com medo. Os Romanos tinham-no feito rei a ele, e agora diziam-lhe que nascera outro rei, mais poderoso.
Então, Herodes reuniu-se com os três reis que vinham do Oriente e pediu-lhe para lhe dizerem quando encontrassem essa criança, para ele também poder adorá-la. Os Reis do Oriente concordaram e partiram, seguindo de novo a estrela, até que ela parou sobre uma gruta e eles perceberam que o novo Rei estava ali.
Ao verem o Menino Jesus, ajoelharam e ofereceram-lhe os presentes que tinham trazido. De seguida partiram. À noite, quando pararam para dormir, os três reis magos tiveram um sonho. Apareceu-lhe um anjo que os avisou que o rei Herodes queria matar Jesus.
De manhã, puseram-se a caminho mas já não foram a Jerusalém, ao palácio de Herodes. Regressaram às suas terras por outro caminho.
Quando Herodes soube que fora enganado pelos Reis do Oriente ficou furioso. Tinha medo que este novo rei o retirasse do trono para ocupar o seu lugar. Então, ordenou aos soldados para irem a Belém e matarem todos os meninos com menos de dois anos. Eles assim fizeram. As pessoas não gostavam de Herodes, e depois disto ficaram a odiá-lo ainda mais.
Nossa Senhora e São José, avisados em sonho por um anjo, partiram com o Menino para o Egipto, onde viveram sem problemas. Algum tempo depois, São José teve outro sonho: um anjo disse-lhe que Herodes morrera e que agora era altura de regressarem a Nazaré. Aí viveram até o Menino Jesus crescer.
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ADIVINHAS
Muitas eram as adivinhas que os adultos, em momentos de descanso de ócio, geralmente nos serões de inverno, para entreter as criancinhas iam contando. Muitas delas, sob a forma de texto com rima ou outros truques para mais facilmente serem decoradas, eram bem divertidas e com respostas para pensar e rir. Eis algumas delas, que cito de memória:
- Qual é coisa qual é ela: do tamanho duma abelha enche a casa até à telha.
- A luz de um candeeiro.
- Qual é a coisa que sempre cai, mas nunca se magoa?
- A chuva.
- O que é que está no meio do mar?
- O a.
- Qual é o animal que está no meio do purgatório?
- O gato.
- Qual é o mês mais curto? (Todos respondiam que era fevereiro, mas estávamos errados).
- Maio, porque só tem quatro letras.
- Alto está alto mora, todos o ouvem ninguém o adora?
- O sino (da torre da igreja).
- O que é que quanto mais se tira mais aumenta?
- O buraco.
- O que é que tem dentes e não come?
- O alho.
- Qual é coisa qual é ela que tem chapéu e tem cabeça, tem boca e não fala, tem asa mas não voa?
- O Bule do café.
- O que é que é preciso meter os dedos nos olhos para mastigar?
- As tesouras.
- Pinho, sobre pinho o linho, sobre o linho as flores e à volta os amores?
- A mesa posta com as pessoas a comer.
- Qual é o casal que nunca se encontrou?
- A noite e o dia
- Uma árvore tem doze galhos, cada galho tem seu ninho, cada ninho tem seu ovo e cada ovo um passarinho?
- O ano
- Qual é coisa qual é ela que quanto mais cresce, menos se vê?
- A escuridão
- Qual é coisa qual é que quando chamamos por ela deixa de existir?
- Silêncio.
- Pai cocuruto, mãe nazaré filhos miudinhos adivinha o que é?
- O ovo
- Quem vive com os pés na cabeça?
- O Piolho.
E tantas, tantas outras.
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A RECIPROCIDADE DA PAZ
“Estar em paz consigo próprio é o princípio certo para estar em paz com os outros.”
Frei Luís de Leão
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UM TESTEMUNHO
Com a devida vénia reproduzo aqui, parcialmente, trechos de um testemunho do Senhor António Silva, publicado em livro e na Net, de como na primeira metade do século XX se vivia o Natal em São Caetano do Pico.
Aproximava-se o Natal. Vinham aí as novenas, não se podia faltar. Além da componente religiosa, serviam não só de pretexto para os rapazes e, sobretudo para as raparigas e as mulheres saírem de casa à noite, o que não era autorizado naquela época, mas também para encontrar os amigos e, no caso dos rapazes, para ver as raparigas.
Cerca de três semanas antes do Natal, as pessoas, em quase todas as casas, punham o trigo em pequenos pratinhos com água, para abrolhar e estar crescido e bem verdinho para ornamentar os altarinhos do Menino Jesus e os presépios. A Senhora Beliza Nunes, era quem fazia o altarinho mais bonito e mais concorrido da freguesia. Parece-me estar a ver e ouvir a minha avó, normalmente a orientadora do terço e outras pessoas daquele tempo, que recordo com muita saudade.
Também haviam os chamados ranchos do Natal, compostos pelos melhores instrumentistas de cordas. A guitarra, normalmente bem tocada pelo Manuel Correia da Silva, o bandolim, pelo Deodato Marques, o violino, pelo António da Vigia, o violão pelo Prudêncio, a viola, o ferrinho e as melhores vozes dos jovens e adultos que cantavam os mais lindos versos alusivos à quadra Natalícia. Nestes ranchos, haviam normalmente duas pessoas que cantavam à frente os versos, e um grande coro que cantava atrás, uns e outros a duas vozes. Era hábito, os donos da casa brindarem os intervenientes no rancho quando acabavam de cantar, com aguardente, angélica, anis ou traçado, normalmente bebidas caseiras, que quase todos tinham, acompanhadas por uns figos passados e ou umas bolachinhas. Atrás destes ranchinhos, juntavam-se muitas pessoas, nomeadamente os mais novos, para os ir ouvindo cantar pelas casas que normalmente os recebiam e onde se juntavam também muitas pessoas durante o serão. Era também hábito, as pessoas visitarem os presépios e os altarinhos na quadra do Natal, para ver qual era o mais bonito. Quando o rancho era considerado mesmo bom, visitava também as freguesias vizinhas.
No dia de Natal, à tarde, havia a procissão do Menino Jesus, com as crianças levando as suas ofertas. Um levava um galo, outro uma galinha, outro uma dúzia de ovos, uma perna de massa sovada, uma cesta de laranjas, uns biscoitos, uma garrafa de aguardente, um garrafão de vinho, um cesto de asa de batatas, etc. etc.
Recolhia a procissão e principiava o arraial, com música de filarmónica, enquanto se procediam às arrematações das ofertas. Os mais afoitos lá iam picando e cobrindo o último lanço. Era uma forma de ajudar a receita da igreja e sempre se levava qualquer coisa para casa. Afinal, eram dias de festa. Alguns aproveitavam também a oportunidade para exibir as suas posses.
Na semana seguinte, era o Fim do Ano. Ano Novo e novamente os seus “ranchinhos”, agora com novos versos desejando um Feliz Ano Novo. Contavam-se os dias com esperança e alegria.
Normalmente, para as coisas da igreja, não faltava tempo. Minha mãe, tinha sempre tudo controlado, para que, ninguém – muito especialmente ela – faltasse a novenas ou qualquer devoção que houvesse na igreja da freguesia.
BOAS FESTAS
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ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO
Hélder Melo, professor e escritor picoense, na sua obra literária O Trevo de Quatro Folhas e Outras Histórias aborda inúmeros aspetos etnográficos, elogia a tradição e manifesta uma devoção incondicional pela sua terra natal. Regressa, por isso, através da memória, aos momentos em que a ilha ainda conservava intactas a simplicidade, a autenticidade e a harmonia do quotidiano rural açoriano. Esses momentos situam-se no tempo da sua infância e juventude, marcado pela admiração por certas figuras, pelo amor à família e amigos, pela valorização das pequenas coisas do quotidiano, pelo sentido religioso, pela inocência e pureza de sentimentos. Ao afirmar, no prefácio e no início de muitas narrativas, a veracidade dos acontecimentos, o escritor assume-se como o verdadeiro protagonista das várias histórias. Estamos, pois, perante textos híbridos, que dificultam uma classificação genológica, provavelmente resultantes da faceta de jornalista do autor, fiel à realidade factual. Todavia, no prefácio, Hélder Melo classifica-os de «pequenos contos, nos quais recordo cenas e ambientes que eu próprio observei na minha infância, e um ou outro acontecimento de épocas passadas que me foram contados por velhos amigos. […] Todos têm um fundo do verdadeiro. Portanto, segundo o autor, são duas as fontes que forneceram a matéria para os seus textos: a experiência pessoal, em contacto com a realidade empírica, e as narrativas orais ouvidas de outrem, agora recontadas através da sua voz. Outro aspeto importante referido nesse para texto é o sentimento dominante: a saudade. De facto, o escritor mantém uma ligação muito forte com o período da infância, pois, apesar de distante no tempo, continua tão vivo ainda como reminiscência. Em praticamente todos os textos, o narrador manifesta uma profunda saudade do passado, como se o presente fosse apenas uma sombra da felicidade de outros tempos. Ao afirmar que as suas narrativas mostram cenas e ambientes, Hélder Melo aponta já para a simplicidade da ação, visto que as histórias não apresentam grande conflitualidade ou profundidade, da mesma forma que as personagens não possuem uma notória densidade psicológica. As histórias são apenas fragmentos de memórias, pequenos episódios marcantes na vida do autor, não apresentando uma grande preocupação na construção de uma intriga com princípio, meio e fim.
Não é nosso objetivo analisar aprofundadamente esta obra, mas apenas lançar um olhar atento e crítico sobre a visão da infância insular configurada nos textos. Antes de mais, a narração oscila entre a primeira e a terceira pessoas. No segundo caso, como as imagens gravadas na memória do narrador se relacionam, principalmente, com as figuras que marcaram o seu passado, essa entidade assume-se como um observador, visto que agora a atenção recai sobre elas. Há indicações do espaço geográfico onde decorre a ação (normalmente, o Pico e o Faial), assim como referências temporais específicas. Em termos gerais, o autor utiliza um discurso que varia entre o poético, o cómico e o irónico. O léxico e a pronúncia regionais estão presentes nas falas de muitas personagens. Além disso, algumas das histórias revelam um pendor moralizante, na medida em que, por vezes, tudo se concentra na tentativa de exercer uma determinada influência sobre o leitor, a quem o narrador se dirige com frequência. A moral vigente nos textos relaciona-se com o enaltecimento do amor pela terra, do amor a Deus e do amor entre os membros da família. Todos estes aspetos ajudam a configurar uma visão idílica da infância.
Deparamo-nos, em alguns momentos, com figuras, situações e sentimentos menos positivos, que são, no entanto, encarados como próprios do processo de crescimento e atenuados pelas imagens de felicidade. A saudade da infância e a representação desse período como um tempo dourado são aspetos centrais no conto Retalhos da minha infância. Tudo conflui no sentido de mostrar uma visão positiva da infância, desde a beleza da paisagem, os acontecimentos rotineiros da pequena vila, as saudosas figuras, sobretudo a avó e a D. Adelaide, até mesmo as sensações, como o cheiro, o paladar, a visão, a audição e o tato. A história retrata, através de uma linguagem simples e emotiva, o fascínio que a chegada do vapor exerce sobre uma criança, o narrador, e mostra como esse meio de transporte influencia e acelera a vida da população local. A curiosidade, a ingenuidade, a impaciência e o entusiasmo caracterizam o seu modo de encarar a realidade circundante. Quase todo o texto é dominado por esse olhar infantil, e a história é narrada ao ritmo das recordações e duma consciência emocionada, como se o narrador-protagonista estivesse a experienciar as vivências pela primeira vez, tal é o poder de presentificação da memória. Todavia, o final revela a presença do narrador adulto, que, agora situado no presente, termina numa nota nostálgica: Que saudades! Que saudades, meu Deus! Deste modo, a escrita surge como uma forma de compensar a saudade da infância no solo natal.
A ativação da memória pode ser desencadeada de fora para dentro, isto é, pela presença de um determinado objeto ou lugar, no qual o narrador vê as lembranças armazenadas. Assim acontece em A louca, em que as recordações da infância são despoletadas por um elemento do mundo exterior: a secular ermida da Prainha de Cima, digna do pincel romântico de Júlio Dinis». Desta forma, o narrador/personagem recua até uma certa tarde de Outono para reviver figuras aldeãs, que não se me apagaram ainda da memória. Com efeito, a narrativa é composta pela caracterização física e psicológica das figuras que marcaram a infância do narrador, algumas detentoras de elogiosas virtudes, como a beata Srª Maria Rita, bondosa criatura outras portadoras de defeitos, como a Mónica, meio anormal, zarolha e deficiente na fala» e a Louca, uma velhota solitária e silenciosa que apavorava as crianças e o próprio narrador-menino. Vivendo afastada do convívio social, num casebre abandonado e apodrecido, é uma figura demente, peculiar
e assustadora que marcou o quotidiano infantil do narrador. Destaca-se um dia em que o
rapaz viu a estranha personagem, completamente nua, atravessar o pátio: A visão emocionante, do seu olhar espavorido, da face esquálida e pergaminhada, dos cabelos crinisparsos, de um branco sujo, dos seus membros de rã e dos sacos desajeitados dos longos seios, todo aquele conjunto do seu esqueleto coberto por uma pele negra, cor de terra, eis uma imagem insólita que emerge das recordações da minha infância e me transporte à galeria shakespeareana, do Hamlet à criação fantástica das bruxas de Lady Macbeth.
Esta visão grotesca não só provocou espanto e medo no narrador como estimulou a sua imaginação, levando-o a tecer relações entre o mundo empírico e a literatura. Deste modo, o autor termina como começou, com a referência a dois grandes escritores (primeiramente, Júlio Dinis e, agora, Shakespeare), exímios criadores de mundos ficcionais e personagens inolvidáveis.
Adaptação do excerto de Mónica Serpa Cabral in O Conto Literário de Temática Açoriana: a Ilha, o Mar e a Emigração
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PAZ
Um pedaço de pão comido em paz é melhor do que um lauto banquete comido em guerra.
Esopo (adpt)
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