PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O CICLO DO MILHO VIII
Pão, bolo, escaldas e papas eram comidos geralmente com leite. No entanto o pão, o bolo e as escaldas acompanhavam o conduto da maior parte das refeições. Muitas vezes o pão tinha que ser estufado ou frito para evitar o bolor. O bolo, quando mais velho, também se comia frito.
Na altura em que o milho era apanhado e com as maçarocas que não eram encambulhadas faziam-se as célebres “papas grossas”, de cozedura semelhante às outras mas com a diferença de que o milho ainda estava verde e era moído em casa, num “moinho de mão” que muitas famílias possuíam. Estas papas muitas vezes eram partidas às talhadas e fritas o que constituía uma refeição muito gostosa e apreciada.
Todos os anos, alguns dias após o milho estar todo apanhado, o que acontecia geralmente pelos Santos, recolhia-se, em toda a freguesia o “Milho para as Almas”.
Na Fajã Grande, como aliás em toda a ilha das Flores, houve sempre um grande culto, devoção e, sobretudo, respeito pelas almas do purgatório, o que se verificava especialmente ao longo de todo o mês de Novembro. Recorde-se que inclusivamente o primitivo orago da freguesia da Caveira era as Benditas Almas, aliás nunca mudado por decisão canónica mas apenas por vontade popular, dado que considerava-se “que o dia em que se celebravam as Benditas Almas era de ofícios fúnebres e portanto pouco próprio para festas e celebrações”.
A importância do culto e devoção ou lembrança dos que tinham partido e eventualmente estariam no Purgatório a expiar as suas faltas até terem o álibi para entrar no Céu, era de facto gigantesca, desmesurada e a ela inequivocamente toda a freguesia aderia. Um dos pontos altos era o da recolha do milho da primeira casa da Assumada à última da Via d’Água e cujo dinheiro resultante da venda se destinava a celebrar missas opor alma de todas as pessoas até então falecidas na freguesia.
Com uma organização impecável e sob as ordens da “Mordoma das Almas” cargo desempenhado durante a minha infância pela minha avó materna, um grupo de homens carregando cestos às costas corriam as casas da freguesia uma a uma e recolhiam as maçarocas já descascadas que cada um achava que podia e devia oferecer por alma dos seus e dos outros. Todo esse milho era levado para casa da Mordoma e colocado na sala formando, a pouco e pouco, um enorme monte. Um grupo de mulheres e crianças sentavam-se à volta e debulhavam-no todo, maçaroca após maçaroca e enchiam-no em sacos a fim de ser vendido, o que acontecia geralmente no próprio dia da recolha.
O dinheiro resultante da venda do milho era entregue ao pároco que com ele ia celebrando missas e rezando responsos durante todo o mês de Novembro pela alma de todos os familiares já falecidos de todas as casas da freguesia.
Em tempos mais antigos, segundo relatos de pessoas mais idosa, esta recolha do milho era feita de forma diferente. Segundo esses relatos havia na rua Direita, perto da casa de Espírito Santo de Baixo, uma casa, chamada “Casa do Purgatório”. Nessa altura, em vez do milho ser recolhido sob as ordens da Mordoma, seriam as pessoas a ir levá-lo a essa casa, onde ia ficando guardado até ser debulhado e vendido, sendo o dinheiro resultante da venda também destinado a missas para as almas. Uma das minhas tias actualmente a rondar os noventa e quatro anos garante-me que se lembra de ir levar um saco de milho à “Casa do Purgatório”.
Curiosamente muitas pessoas, especialmente mulheres, quando se viam em dificuldades ou com problemas, voltavam-se para as almas e prometiam “tirar uma esmola” se, por intercessão destas, ficassem aliviadas de seus males. Se as Benditas Almas supostamente atendiam o pedido formulado, a votante corria sozinha todas as casas da freguesia. Batendo à porta gritava: “Esmola para as almas”. Cada família dava então um pouco de milho ou se o não tivesse ou não quisesse dar, respondia simplesmente: “Pai Nosso e Ave Maria”. O milho resultante deste peditório era geralmente entregue à Mordoma que o juntava ao anteriormente recolhido ou lhe dava destino idêntico.
Note-se que rituais semelhantes a este eram cumpridos quando se solicitava a intervenção do Santíssimo, da Sra da Saúde, de São José, Santa Filomena ou de outro santo, sendo neste caso o dinheiro entregue na igreja em memória do santo respectivo.