PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
AGRURAS
Dália acabara de fazer vinte e seis anos. Era livre, livre como um passarinho. Há dois anos que terminara o Curso de Medicina em Coimbra e agora estagiava no Centro de Saúde de Megonvil. Seis anos como estudante haviam-na transformado numa médica competente, perspicaz e sonhadora. Esperava-a uma longa e árdua carreira. Em breve terminaria o tempo de estágio ao qual se seguiriam alguns anos, a fim de completar a especialidade. Só então seria uma médica autónoma e independente. Onde havia de trabalhar? Onde havia de se impor como profissional de saúde? Profissional competente e digna… Não sabia e, também, pouco se importava saber. Talvez perdida num gigantesco hospital de uma grande cidade, talvez excessivamente reconhecida num pequeno Centro de Saúde de uma desertificada vila ou aldeia do interior. O futuro havia de lhe traçar o destino…
E foi numa viagem de férias para Maiorca que tudo mudou. Um dos últimos passageiros a entrar sentou-se no lugar que vagava a seu lado. Não usava aliança, parecia viajar com um objetivo igual ao dela e falava um inglês quase perfeito. Pediu licença para passar e sentou-se à janela, no lugar indicado no talão de embarque. Pediu desculpa pelo incómodo, por tê-la obrigado a levantar-se do seu lugar. Ela sorrindo respondeu simplesmente:
- You’re welcome.
Nada mais se passou durante a viagem. Nada mais disseram até ao aeroporto de Palma de Maiorca. Ela saiu à frente e não mais o viu.
Quando se preparava para fazer o check-in no hotel em que se hospedara foi informada de que alguém a esperava no bar. Para espanto seu, era ele, o passageiro que viajara a seu lado. Conversaram, riram e beberam até de madruga. Seriam umas três horas quando, inesperadamente, a polícia local irrompeu pelo hotel, levando-o para ser interrogado. Na manhã do dia seguinte, Dália informou-se na polícia local. Soube que fora preso por suspeita de tráfego de droga. Dália também foi chamada a depor, acabando por ser acusada de ser cúmplice do meliante. Presa também ela, ficou à espera de ser julgada, por falta de provas. Aguardou mais de um mês pelo julgamento e, por fim, foi condenado a mais seis meses de prisão.
Sozinha em Maiorca não teve quem a auxiliasse, nem quem zelasse pelos seus direitos. Impedida de regressar ao seu país de origem perdeu o emprego, sendo afastada da ordem dos médicos. Posta em liberdade teve receio e sobretudo vergonha de regressar ao seu país. Aguardou que o responsável pelo seu infortúnio fosse posto em liberdade. Foram meses de fome, miséria e sofrimento.
Finalmente ele saiu. Promessas e mais promessas levaram Dália a um envolvimento mais profundo. Sem que suspeitasse, pouco tempo depois ele desapareceu. Sozinha, de novo, sem trabalho, desolada e triste, personificou-se como lenitivo para as suas mágoas. Dentro em breve foi-lhe detetada uma grave e contagiosa doença. Dália era médica e sabia os riscos que corria. Temeu. Possivelmente teria sido contagiada por ele. Ao infortúnio juntava-se agora uma enorme angústia. Como médica sabia muito bem o que lhe poderia acontecer. Durante os tempos que seguiram e em que procurou a cura, Dália chorou, sofreu e voltou a passar fome, deambulando pelas ruas como mendiga.
Certa tarde em que se encontrava sentada no vão das escadas de um prédio, gelado, faminta, desesperada, à espera que a morte a levasse, um cão latiu, denunciando a sua presença. O dono do prédio, ouvindo o cão, surgiu nas escadas dando de caras com ela. Sem lhe fazer perguntas ou sequer a recriminar, pegou-lhe pelos braços com carinho, amparou-a e levou-a para a sua própria casa. Dália, envergonhada e tímida ao início, perante as insistências do seu paraninfo, tomou um banho, mudou-se de roupa que ele próprio lhe dispusera e tomou uma ligeira refeição, deitando-se de imediato.
No dia seguinte, ao acordar, deu de caras com o homem que a recolhera sentado a seu lado. Havia-lhe colocado um ramo de flores no regaço. Dália sorriu, pela primeira vez, desde aquela noite fatídica, no hotel, em que fora presa.
Recuperou e, no mês seguinte, regressou a Portugal e a Megonvil mas só a muito custo e passado algum tempo conseguiu reintegrar-se na carreira médica, mas numa vida profissional muito diferente daquela com que sonhara nos bancos da Universidade!