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PARTE V - IV ATO CENA 9 C

Terça-feira, 14.03.17

D JOSEFA - E rezar? Também já sabes rezar?

ÁLVARO     - Claro que sei D. Josefa. Até já sei o Pecador em latim e responder ao De Profundis. Sabe o que é o De Profundis? É o responso que o senhorr Padre reza quando morre alguém: O senhor Padre diz: “De profundis blábláblá até domine” e a gente responde: “Ne caspicias ne visonis”, três vezes seguidas.

D.JOSEFA   - Louvado seja o Sagrado e Imaculado Coração de Maria! Até já sabe o “Necaspicias”. Como é que tu já sabes isso!?

PAI               - Meu cunhado é o sacristão lá na Fajã, D. Josefa. De semana não lhe dá jeito ir ajudar à missa, porque precisa de ir trabalhar para as terras. Então minhas cunhadas pediram-me para deixar ir o Alípio, o que é a seguir ao mais velho. É verdade que ele também me faz falta, mas dão-me cinquenta centavos por dia… Bastante jeito me dá! Elas ensinaram lá os latins da missa ou quê ao outro e este ia ouvindo, ouvindo e olhe: aprendeu tudo.

D.JOSEFA – Então Álvaro, tu é que devias ir para sacristão. É tão lindo ajudar à missa… Acender as velas dos altares e tocar a campainha quando se levanta Nosso Senhor… Estar ali tão pertinho de Nosso Senhor…

ÁLVARO     - Pois… Mas o senhor padre diz que sou muito pequeno e não chego para acender e apagar as velas. Eu já disse que punha uma cadeira e subia para cima do altar para acender as velas. Mas não pode ser… Não se pode por os pés em cima dos altares. Ó senhorr António, posso lhe fazer uma pergunta?

ALGARAVIO – Todas as que quiseres. Ora vamos lá. O que queres saber?

ÁLVARO     - O senhor chama-se mesmo Algarvio ou isso é um apelido? É que eu nunca vi ninguém com esse nome.

ALGARAVIO – Não! Eu chamo-me António Alves da Costa Cabreira, mas em toda a ilha sou conhecido pelo António Algarvio. É que cá na ilha vocês tem uma mania muito engraçada: como há muitos Antónios e muitos Josés e muitos Manéis e muitos não-sei-quê, resolvem distingui-los com qualquer indicativo a eles ligado, é o José de Tianina, o Manuel do Monte, o António Cambado e a mim baptizaram-me por António Algarvio, sabes porquê? Porque não sou de cá, sou do Algarve. – (Retorcendo as pontas do bigode.) – Eu nasci em São Bartolomeu de Messines, a freguesia maior e mais importante do concelho de Silves, no Algarve. Também lá passam dois rios, mas mais pequeninos: o Arade e o Gavião. É a terra das pedras de amolar, que vocês aqui chamam esmorizes e também a terra onde nasceu o ilustre poeta João de Deus. Ainda lá está a casa onde ele nasceu e viveu. Já ouviste falar em João de Deus? Foi ele que escreveu a “Cartilha Maternal”, o primeiro livro escrito em português para as criancinhas aprenderem a ler.

D. JOSEFA - Lá está ele com as suas literaturas. Deixa em paz a criança, homem! Precisa é de aprender a rezar e fazer as nove primeiras sextas-feiras em Louvor do Sagrado Coração de Jesus.

ÁLVARO     - Não nunca ouvi. Mas, senhora D. Josefa, eu já sei rezar e até já sei responder à missa. Mas eu gosto muito de ouvir as histórias do senhorr António. Ele fala tão bem e sabe tanta coisa…

ALGARAVIO - Então vou contar-te uma história que nem os professores sabem ensinar, porque não vem nos livros da 4ª classe. - (Retorcendo as pontas do bigode e muito entusiasmado e com grande orgulho e patriotismo.) – São Bartolomeu de Messines foi um eficiente baluarte miguelista, por duas razões: primeiro porque foi local de residência de um dos mais célebres comandantes das tropas que apoiavam o nosso rei D. Miguel, de nome José Joaquim de Sousa Reis, mais conhecido pelo “Remexido”; segundo porque foi lá, junto à ermida de Sant’Ana, que as forças que apoiavam o nosso rei D. Miguel infligiram, em vinte e quatro de Abril de 1834, uma pesada derrota às forças liberais, que eram bem mais numerosas e melhor apetrechadas, comandadas pelo Marquês de Sá da Bandeira.

ÁLVARO     - Se fosse o Marquês de Pombal eu sabia quem era, porque vem a fotografia dele no livro da 4ª classe.

D.JOSEFA – Credo, menino. Esse foi que matou os frades e os padres todos e roubou os conventos… Um herege! Um herege!

ALGARAVIO – Pois ficas a saber para nunca mais esqueceres que esta vitória se deveu ao sábio e eficiente comando dum valoroso general chamado Tomás António da Guarda Cabreira, – (retorcendo as pontas do bigode) - meu antepassado e acérrimo defensor da causa miguelista.

D. JOSEFA - Tinha que vir, mais uma vez à baila, o general! E dizem que o homem era ateu e que morreu sem se confessar e arrepender… E tu vais pelo mesmo caminho…

ALGARVIO - Por isso não há messinense que se preze que não seja monárquico e miguelista. Abaixo a república! Viva a Monarquia! – (Retorcendo as pontas do bigode) - António, isto não demora muito e vamos ter rei outra vez a governar-nos…

D. JOSEFA - Foi por falares contra os nossos governantes e contra Deus que fugiste para aqui…

PAI               - Ó Dona Josefa, deixe lá! Os homens vêem-se é pelas acções e não pelas orações.

D.JOSEFA   -Pois o Antoninho fala assim porque também não põe os pés na igreja, não vai à missa, nem à desobriga. Está com o coração empedernido como este herege. Louvado seja o Sagrado Coração de Jesus. Mas Deus, através das minhas orações, há-de ter piedade de vocês. E tantos desgostos que ele já teve e tanto que já sofreu por falar de mais e não há maneira de se emendar e arrepender.

ALGARVIO – Enquanto for vivo hei-de pugnar pelos meus princípios monárquicos.

                     Batem à porta e vai a muda ver quem é

D. JOSEFA - Muda, vai ver quem é?... Despacha-te mulher.

MUDA         (Vai à porta e faz sinais de chorar e comer)

D. JOSFA - Quem é mulher? Gente a chorar! Ai credo! Querem ver que morreu alguém!

MUDA         (Faz sinais negativos e continua a fazer sinais de chorar e comer).

D. JOSEFA - Então? Alguém está a chorar porque levou uma tareia?

MUDA         (Faz sinais negativos e continua a fazer sinais de chorar e comer, com maior insistência).

D JOSEFA - Ai mulher que não te explicas com jeito! É alguém que está a chorar com fome?

ÁLVARO     - Já sei! É a Chora-Sopas que anda a pedir pelas portas!

MUDA         - Ih! Ih!  (Fazendo, para Álvaro, sinais afirmativos e de contentamento).

D JOSEFA - Ora essa! Era só o que faltava agora! É todos os dias isto… E às vezes mais do que uma vez por dia, gente à porta a pedir. Manda-a embora que não há nada.

ALGARVIO – Josefa! Isso é que caridade!? Isso é agir de acordo com a religião que praticas? Muda, diz-lhe para entrar que se lhe há-de dar uma côdea de pão e um pedaço de queijo. Não entendo a tua religião mulher…

PAI               - É uma caridade! Ela é uma desgraçada, António. Não tem nada nem ninguém e corre a ilha toda a pedir. Ainda há dias andou na Fajã.

 

 

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