PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MEDITAÇÃO SOBRE A ETERNIDADE
(POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)
Das árvores que plantei
nenhuma já me pertence
e de quase todas nem comi´
ou sequer vi os frutos.
Sempre soube que devemos morrer
e penso que é melhor
não se saber quando nem como.
E quanto ao que deixámos
não se recorde de quem foi.
Que só assim somos eternos.
P Silveira, Poemas Ausentes.
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TEXTO NARRATIVO
Texto narrativo é um texto que narra ou conta uma estória. Os seus elementos fundamentais são, para além do autor, o narrador, as personagens e as ações.
O autor é a pessoa real que inventa, imagina e escreve a estória. Por sua vez o narrador é uma pessoa imaginária, criada pelo autor, que tem como função apenas narrar ou contar a estória. O que distingue estes dois elementos, para além das funções que desempenham na construção do texto, é o facto de o primeiro ser real, existir de facto, enquanto o segundo é, simplesmente, imaginário, isto é, não é pessoa real, existe apenas dentro da estória. O mesmo acontece com as personagens, seres criados pelo autor, que apenas existem dentro da estória. Por vezes o narrador desempenha, simultaneamente, as funções de narrador e de personagem. Neste caso chama-se narrador presente e as suas marcas são facilmente detetáveis no texto.
As ações são factos, atitudes, gestos e sentimentos praticados pelas personagens dentro da estória pelo que também são imaginários, embora autor, geralmente, se baseie em factos reais que molda, altera e enriquece com a sua imaginação. Muitas ações, porém, são meramente inventadas pelo autor. Importante é situar as ações no espaço e no tempo pelo que o autor também pode basear-se no real, embora muitas vezes recorra apenas à sua imaginação.
Na construção do texto narrativo, no entanto, o autor pode ainda ter que recorrer a descrições quer das personagens, quer dos espaços, quer das ações. São os momentos de pausa em que a estória para e que são facilmente detetáveis ao longo do texto porquanto geralmente são utilizados exclusivamente os verbos estáticos: ser, estar, permanecer e ficar. Estas descrições também podem ser fruto só da imaginação do autor, embora muitas vezes também recorra ao real. Recorrer ao real para ajudar a imaginação, para muitos autores, torna, na verdade, a escrita mais fácil e mais apelativa.
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ROBERTO BELCHIOR
O Senhor Roberto Belchior morava na Tronqueira, numa casa logo a seguir ao tanque onde o gado bebia água. Era um homem muito reservado e trabalhador, metido consigo e dos poucos que naqueles tempos, na Fajã Grande, ainda usavam barbas. Era casado e tinhas dois filhos, um do sexo masculino e outro do feminino.
Roberto Belchior nascera a 13 de Março de 1894 e era Filho de José de Freitas Belchior, natural de Boston e de Isabel Leopoldina de Freitas, natural da FG., moradores na rua Direita.
Neto paterno de Manuel de Freitas Belchior e de Mariana de Freitas Trigueiro e materno de José Cardoso de Freitas e de Maria Leopoldina.
O que mais o caracterizava era possuir um apelido muito raro e único na Fajã Grande – Belchior. Cuida-se que Belchior é aquele que … embora viva em busca de prazeres, é muito preocupado com a segurança financeira. Tem hábitos enraizados, uma memória celente e adora dividir suas experiências com alguém, \de preferência com seu amor. Seu aprendizado é lento, mas profundo: depois que aprendeu, nunca mais esquece. Por sua vez o lado negativo é o risco de se tronar teimoso e ciumento..
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A VIGIA DA BALEIA EM SÃO CAETANO DO PICO
Para os que não acreditam ou pretendem que os outros não acreditem, para os que ficaram insensíveis ou nada fizeram a fim de que a Rota da Faina Baleeira da Ilha do Pico passasse por São Caetano, para os que foram cúmplices da transformação da histórica Casa dos Botes no mítico porto de São Caetano numa residência turística transcrevo aqui, com a devida vénia, o testemunho do Senhor António Silva, natural de São Caetano:
Em São Caetano, na minha infância, o vigia, era o Tio Raxa, uma figura carismática e respeitada.
Diziam os que melhor o conheciam, que o Tio Raxa gostava muito duma pinguinha de vinho.
A vigia das baleias, ficava num alto, entre os dois moinhos de vento, que existiam na freguesia, o do Domingos e o do mestre Pompeu, ali no meio das adegas, do chamado Caminho do Meio. Muitas pessoas o convidavam para ir à sua adega beber uma tigela (de barro) de vinho.
Eu e outros rapazes amigos, gostava-mos muito de ir visitar o Tio Raxa à sua vigia, para ele nos deixar pôr os olhos por alguns momentos no seu binóculo de 18 vezes. Aquilo tinha um sabor especial, no tempo. Coisa engraçada e não rara, é que, muitas vezes, passava-mos no caminho e, víamos o chapéu do Tio Raxa pela fresta horizontal da vigia sobre o binóculo. Chegava-mos lá, era de facto o chapéu e o binóculo do Tio Raxa, mas, o resto tinha andado. Tinha ido consolar o corpo e a alma para a adega dum amigo qualquer, que o havia convidado (…) Tantos nomes de baleeiros célebres, outras figuras carismáticas, que ficaram na história da caça à baleia em São Caetano. O povo duma maneira geral era bom. Respeitava toda e qualquer pessoa de fora da terra que por lá vivesse ou passasse. Alguns baleeiros – normalmente os mais simpáticos – eram convidados para as matanças dos porcos, para ir à adega beber umas tigelas de vinho, para ajudar a vindimar as uvas, etc. Estes, agradeciam, pois normalmente gostavam muito daquele precioso líquido e sempre levavam para casa um cesto de asa de uvas para comer mais a família. Recordo-me ainda dos tempos do Caçoila do Capão do Loiro, etc. profissionais da baleia, que mais para o fim da festa, até cantavam o desafio.
Muito novo ainda, parece-me estar a ver e ouvir o Capão a cantar ao desafio a sua cantiga ao Caçoila:
O Raxa mais o Caçoila
São dois amigos leais
Se o raxa gosta de vinho
O Caçoila muito mais
Com a entrada de Portugal na União Europeia, no ano de 1978, foi proibida a caça à baleia na Comunidade Europeia e por conseguinte, também nos Açores.
No Pico, onde houve forte atividade, resta apenas e ainda bem, o museu da baleia nas Lajes do Pico que vale a pena visitar, onde se pode ver tudo em artesanato, a tenda do ferreiro, o bote, a palamenta, as ferramentas e utensílios que eram utilizados, e se podem recordar aqueles saudosos tempos.
No cais do Pico (São Roque), existe a Fábrica-Museu com todos os seus equipamentos, caldeiras, máquinas, etc., muito bem conservados,
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CAÇA À BALEIA EM SÃO CAETANO DO PICO
A caça à baleia, fez-se em quase todas as Ilhas dos Açores, mas foi no Pico que teve o seu epicentro e era também nesta ilha que existiam os melhores baleeiros. A quantidade e a qualidade dos baleeiros picoenses eram tantas que desta ilha muitos baleeiros saíram a procurar trabalho noutras ilhas, como acontecia na Fajã Grande, onde todos os anos se fixavam baleeiros da ilha do Pico, nomeadamente, mestres, oficiais e até o vigia, o Manuel Manquinho, pese embora existissem várias armações baleeiras, no Cais do Pico, nas Lajes, nas Ribeiras e ainda outra na Freguesia da Calheta de Nesquim. Haviam frotas estrategicamente colocadas nos diversos portos da ilha, para que pudessem chegar mais depressa à ou às baleias, consoante se tratasse duma baleia (cachalote) grande e isolada, ou de um cardume. Existiu uma frota instalada em São Caetano constituída por dois botes e uma lancha, a Espartel, a lancha que melhor andava na sua época. Em São Mateus existiam três botes e uma lancha, nas Lajes, 14 botes e quatro lanchas, nas Ribeiras, duas lanchas e quatro botes, na Calheta de Nesquim, duas lanchas e sete botes e ainda uma frota considerável, no Cais do Pico. Havia duas fábricas de transformação das baleias. Uma nas Lajes do Pico, outra no Cais do Pico, onde além da transformação do toucinho em azeite, se fabricavam também farinhas da carne e dos ossos daquelas, para adubos e alimentos de certos animais. Como já disse, também se derreteu no porto de São Mateus. Havia muita rivalidade entre as diversas companhias a laborar na ilha. Dia de baleia, era dia de alvoroço na freguesia. Estalava o foguete e, todo o baleeiro, estivesse onde estivesse, largava tudo e corria em direção ao porto. Nem passava em casa. A mulher ou filhos iam levar-lhe a comida e mais alguma peça de roupa ao porto, enquanto estes iam arreando os botes, pois a lancha já se encontrava no mar presa na sua amarração própria. Os baleeiros tinham outras atividades. Não era possível viver exclusivamente só da baleação.
Não foram poucas as vezes em que, nem todos regressaram a casa. Por vezes as coisas corriam mesmo mal. A baleia ao sentir o arpão na pele, reagia das mais diferentes maneiras; ora levantando e voltando o bote, ora batendo-lhe com o rabo de cima para baixo partindo-o e deixando tudo e todos espalhados por cima das águas profundas e salgadas, à conta de Deus e à sua sorte. Nesta operação, muitas vezes os que eram diretamente apanhados, tinham morte quase instantânea. Alguns, nunca mais apareceram.
NB - Dados retirados de uma Publicação de António Silva, em 29 de Maio de 2009
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POESIA
“A Poesia? Procura-a também onde tu sabes que não existe…”
Pedro da Silveira
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A LUA E O MUNDO
Deus
só te fez
- Lua -
porque,
ao teu redor,
queria
colocar o mundo.
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O DOM DAS LÁGRIMAS
“O dom das lágrimas é a característica mais nobre da espécie humana, imediatamente depois da palavra e antes do riso.”
Bulos Salama
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A MINHA TOUCADA
Meu pai tinha uma vaca chamada “Toucada” de que eu gostava muito. Tinha um andar elegante, um aspecto altivo e era muito mansa. Era malhada de branco e preto, mas um preto acastanhado e muito luzidio. A cabeça também era preta, com uma grande mancha branca na testa, a qual lhe valera o epíteto de “Toucada”.
Eu adorava-a e, por isso, fiquei muito triste quando o meu progenitor decidiu embarcá-la, para Lisboa, para “ ir ver os senhores de bengala”.
Mas a decisão estava tomada e a vaca entrou, de imediato, em fase de engorda. Erva fresquinha todos os dias, maçarocas de milho de vez em quando, não saía do palheiro, não se lhe tirava mais leite e, além disso, nunca mais puxou o arado ou o corção, tarefas, agora, atribuídas à Benfeita, não habituada à canga, pois era a vaca de estimação de meu pai.
O empenho na engorda da vaca, no entanto, intensificou-se excessivamente. Cuidava meu pai que, se a engordasse bem, ela valeria mais dinheiro.
Alguns dias antes da chegada do Carvalho, o Portela, de Santa Cruz, como de costume, veio à Fajã arrolar gado para o próximo embarque.
Meu pai, meus irmãos e eu abdicámos das tarefas do campo e, em ar de festa, esperamo-lo sentados à porta da sala. O homem, ao chegar, entrou no palheiro e observou minuciosamente a vaca. Apalpou-lhe as virilhas e a rabada, passou-lhe a mão sobre o dorso duas ou três vezes, abraçou-a pelo pescoço. Depois, com voz convicta perante a expectativa de meu progenitor, sentenciou: “Sim senhor! Bonito animal! Um conto."
Meu pai ficou um pouco perplexo e hesitante. Aproximou-se mais da vaca, anafou-lhe o pêlo com muito carinho, fez-lhe umas festas na cabeça e, argumentando que estava muito pesada, com o pelo muito luzidio, pediu-lhe mais cem escudos.
Como o Portela teimasse em não dar nem mais um escudo, meu pai ainda arriscou: “Mil e cinquenta..." Mas o Portela persistia no seu carracismo e a Toucada foi vendida por mil escudos.
Na véspera do dia de vapor meu pai decidiu que seria eu a acompanhá-lo a Santa Cruz, para a embarcar. Partimos alta madrugada: eu à frente, aguentando a corda da Toucada, meu pai atrás, tangendo-a com uma aguilhada, para que ela não se atrasasse no longo caminho que teríamos de percorrer, até Santa Cruz. Ao chegar aos Terreiros, porém, a vaca já ostentava indícios de grande cansaço. Subíramos a rocha da Fajãzinha pela ladeira da Figueira, para encurtar caminho e parámos junto à Casa do Estado. Meu pai tirou, de uma das mangas da froca que trazia ao ombro, meia dúzia de maçarocas de milho que a Toucada comeu frugalmente. Da outra manga tirou um pedaço de pão de milho e outro de queijo, repartiu-os comigo.
Terminado o bródio, reiniciámos a longa caminha até Santa Cruz. Só ao descer a Ventosa avistámos o Carvalho, ancorado na enorme baía da Ribeira da Cruz.
Quando chegámos a Santa Cruz já o Sol ia muito alto. A vila vivia um burburinho excitante e belicoso. Homens e mulheres, vindos de toda a ilha, dirigiam-se, instintivamente, para o Boqueirão. Era dia de “São Vapor”!
O Portela havia montado escritório em cima do cais, ao lado das dezenas de grades onde estavam empacotadas as latas com a manteiga que a ilha produzia e exportava. Tivemos que aguardar a nossa vez. Eu, agarrando a corda da Toucada, observava as primeiras barcaças que chegavam a transbordar com malas e passageiros. Antes da lancha atracar, de cima do cais, lenços brancos abanavam em direcção ao mar e eram correspondidos com acenar de mãos dos que vinha na embarcação. Depois, era a confusão geral: uns abraçavam-se, outros choravam e outros simplesmente cumprimentavam-se. O cais era um mar de gente, misturada com animais, caixas, caixotes e malas. Tudo o que o “Carvalho” descarregava e o que havia de carregar...
A nossa vez chegou. Meu pai aproximou-se do Portela e este puxou a corda da Toucada. Observou-a minuciosamente, como que a certificar-se de que era a vaca que, dias antes, observara. Depois, um dos seus ajudante pegou num ferro em brasa e cravou-o num dos quartos da vaca. A pobrezinha emitiu um forte rugido e começou aos coices, tentando uma fuga louca, sem que eu a pudesse aguentar. Meu pai agarrou-a e trouxe-a novamente para junto do Portela. Este depois de preencher uns papéis onde constava, entre outros elementos, a cor, o peso e o número com que a haviam marcado, soltou-a da corda que eu trazia de casa e amarrou-a com uma corda nova. Um empregado, aproximando-se, puxou-a abruptamente, enquanto ela, estranhando o novo dono e o ambiente que se vivia sobre o cais, teimava em movimentar-se. O homem puxou-a com mais força, deu-lhe uns fortes pontapés na barriga e a pobrezinha teve mesmo que andar. Começava ali o seu cruel cativeiro e a sua caminhada para a morte. Senti uma enorme dor e comecei a chorar agarrando-me ao seu pescoço. Ela também berrava, de dor e desespero, sentindo não só a violência com que era tratada mas como que entendendo a inevitável separação do seu dono e amigo. O homem aproximou-a da borda do cais, enlaçou-lhe uma lona por baixo da barriga e prendeu-a num guindaste, que de imediato a levantou, colocando-a dentro do barco onde já se encontravam muitos outros animais. Eu chorava desalmadamente...
Meu pai dirigiu-se para junto do Portela. Esperou algum tempo até que o homem lhe deu uma nota de mil escudos. Pedi-lhe para a ver. Era a primeira vez que eu via uma nota de mil escudos!...
Algum tempo depois, o barco que levava a Toucada, repleto de animais que se empurravam e atrapalhavam uns aos outros, partiu. Lá ia a minha Toucada comprimida entre dois enormes touros. O barco foi-se afastando e a mancha negra e branca da Toucada foi-se desvanecendo, até eu a perder de vista, enquanto lágrimas corriam de meus olhos, cada vez mais abundantes. Meu pai, compreendendo a minha dor e disse-me que voltaríamos pelos Lajes para comprar outra vaca.
Regressámos, pernoitamos na Lomba e viemos para as Lajes, onde meu pai comprou outra vaca. Era mansa, toda preta, com os chifres arredondados, boa de leite. Oitocentos escudos. Meu pai ficou feliz e eu triste porque a achava tão feia, comparada com a minha Toucada, que aquela hora, na abalizada opinião do meu progenitor já devia estar no Pico ou em S. Jorge.
Atravessámos novamente a ilha de lés-a-lés, com a vaca, que vezes sem conta, se recusava a andar. Chegámos a casa já de madrugada. Durante a viagem e nos dias seguintes lá me fui afeiçoando à Trigueira, (assim chamámos à nova aquisição) mas a verdade é que nunca esqueci a minha Toucada.