PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FREGUESIA DE ÁGUA D'ALTO
A Freguesia de Água D´Alto situa-se na Costa sul da ilha de São Miguel e possui uma área de 18.44 km quadrados. Segundo Gaspar Frutuoso, pouco se sabe da origem desta freguesia. Apenas se sabe que, por volta desta altura, ali havia uma Ermida, junto à qual se situa um hospital de leprosos, ao qual se deu o nome de Lazareto, origem do nome de São Lázaro ou Gafaria. De acordo com Gaspar Frutuoso, nesta altura havia trinta casas, almas devotas e um padre, Baltazar Faguntes.
Em 1602, o Bispo D. Gerónimo visitou a freguesia e achou-a pequena e maltratada, ordenando assim a transferência do padre para a freguesia de São Pedro. O Hospital que aqui funcionava, foi igualmente transferido, para a beira-mar, sendo edificado no local hoje denominado Degredo, assim chamado pelo facto de todos os leprosos serem degradados para lá.
Em 1832, tendo-se verificado um aumento da população pediu-se ao Bispo autorização para instituir aqui um santuário, onde se pudesse colocar o Santíssimo sacramento.
Esta povoação fez parte da freguesia de São Pedro, sendo promovida a freguesia no ano de 1908, no governo de João Franco.
O nome da freguesia Água d’Alto tem origem na existência de uma queda de água com cerca de trinta metros, localizada na ribeira do Degredo. O facto de esta queda de água cair de tão alto, deu origem o nome de Água D´Alto à freguesia.
Consta do património desta freguesia o Lugar da Praia, constituído por casas bem integradas, com típicas ruelas calcetadas. Este lugar debruça-se sobre a “Ribeira da Praia”, contém uma ponte construída em pedra, onde havia 2 casas de moinhos de 2 pedras que serviam de moenda em Vila Franca, o Museu da Eletricidade instalado na central hidroelétrica, onde estão representadas as principais características do pioneirismo da iluminação elétrica. Foi precisamente junto à Ribeira da Praia que o engenheiro José Cordeiro construiu a primeira central hidroeléctrica dos Açores, o Moinho da Praia com o aproveitamento da força motriz do vento para fins de moagem e drenagem de água e os trazidos há mais de 40 anos das ilhas Canárias pelo falecido Visconde. Os dragoeiros são cultivados facilmente por semente. Esta árvore é a que cresce com maior lentidão, existindo exemplares com 400 anos.
A igreja da freguesia é dedicada a São Lázaro Igreja de São Lázaro e está em íntima relação quanto à sua edificação como Gafaria que ali houve, pois junto dela levantaram logo, aquela Casa de Oração ao patrono dos gafos, como refúgio aos doentes que ali se acoutavam, como mais desenvolvidamente é descrito no trabalho.
“Esta Gafaria é assim a sua Igreja, e é anterior ao terramoto de 1522, que assolou Vila Franca, por quanto João Afonso, das Grotas Fundas no seu testamento escrito a 26 de Novembro de 1511.
Pelo andar do tempo a Gafaria foi decaindo, por se tornar desnecessária pela diminuição da doença dos gafos aqui nesta Ilha, mas a Igreja se desenvolvia naquele sitio, manteve-se.
A Igreja devia ser pequeníssima, portanto fora ali levantada para refúgio dos gafos e só para eles.
Este lugar continuou a desenvolver-se e pela sua religiosidade, restaurou o seu Templo de São Lázaro e tempos depois teve Cura que apenas celebrava missa ao povo, no entanto a sua vontade era outra.
A 27 de Maio de 1832, a requerimento do povo da freguesia, que cada vez era mais importante, foi instituído nesta Ermida, o Santíssimo Sacramento.
Esta freguesia continuou a progredir, e a sua pequena Ermida já não satisfazia ao culto do seu povo, pelo que empreenderam a construção da atual Igreja, que a levantaram sobre os alicerces da antiga Ermida, e tem no seu frontispício a data de 1855.”
NB - Dados retirados do site da Junta de freguesia de Água D'Alto.
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TRINDADES
Quem não se lembra delas, de manhã e, sobretudo, à noitinha, a emanarem harmónicas, pungentes e ataráxicas dos bronzes gigantes pendurados nas janelas da torre sineira da igreja?! Um sino maior, com o som mais grave e sério, que dobrava e rodopiava sobre um eixo que o atravessava a meio e o outro mais pequeno e mais reguila, com um som mais agudo e acutilante, encastoado nos umbrais da janela, da torre altaneira, voltado a Sul. Todos os dias, de manhã ao abrir-se a igreja e à noite ao fechá-la, três fortes badaladas no sino grande, espaçadas por intervalos de tal maneira longos e adequadamente suficientes para quem estivesse nos campos, nas casas, nas ruas, por aqui e por além, dispusesse do tempo necessário a fim de rezar o “Anjo do Senhor”, acompanhado duma “Ave-Maria”. Ao primeiro toque os homens tiravam o boné e paravam o trabalho, as mulheres suspendiam os afazeres domésticos, apertavam as mãos e oravam, as velhinhas sentadas às janelas, à espera que o Sol desaparecesse no ocaso para renascer na manhã seguinte, apertavam as contas do rosário com mais fervor. As três badaladas terminavam com duas finais, menos espaçadas a fim de rezar apenas o “Glória ao Pai.”
Aos domingos e dias santos, e na véspera destes dias à noite, porém, o toque alterava-se substancialmente. Eram as Trindades Dobradas. O sino mais pequeno juntava o seu som ao do grande e os dois batiam as badaladas simultâneas e em uníssono. Só que enquanto, nas Trindades habituais, também chamadas de Trindades Singelas, precisamente por serem tocadas por um só sino, se dava apenas três badaladas seguidas das duas finais, nas Trindades Dobradas ou Festivas, os dois sinos davam simultaneamente três badaladas seguidas, antes de cada um dos intervalos destinados à reza do Anjo e da Ave-Maria. Mas a grande diferença era no final. As duas badaladas destinadas ao Gloria final eram substituídas por um, dois ou três repiques, consoante a importância da festividade. Por exemplo, Natal, Páscoa, Espírito Santo, Senhora da Saúde e São José, por ser o padroeiro, tinham três repiques. As outras festas e dias santos dois e os domingos, um só.
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FRANCISCO PUREZA E O DESASTRE DO CORVO
Francisco Pureza Greves nasceu na Fajã Grande, mais concretamente na Assomada, a 31 de Outubro de 1929 e era filho do Ti José Pureza. Passou a sua infância na terra natal, a qual, no entanto, abandonou no dia 31 de Dezembro de 1949, a bordo do Carvalho Araújo, a fim de assentar praça na armada em Lisboa. Serviu a marinha portuguesa durante 37 anos, após os quais se reformou, seguindo a carreira de radarista da armada. Durante estes anos de atividade marítima e naval, navegou no navio Escola Sagres e em muitos outros, incluindo o navio Afonso de Albuquerque, acompanhado o general Craveiro Lopes, então Presidente da República na sua visita a Angola. Também fez comissões de serviço em várias regiões do país, incluindo os nos Açores. Durante a sua carreira, raramente tinha possibilidades de visitar a Fajã. Apenas depois de se reformar, como sargento da armada, a visitou demoradamente.
Francisco Pureza foi um dos trinta e nove tripulantes da lancha Senhora das Vitórias que na fatídica noite de 13 de Agosto de 1942 naufragou nos laredos do Corvo, onde perderam a vida dezassete das trinta e nove pessoas que seguiam a bordo.
Recentemente deu uma entrevista à Costa Ocidental TV. Aqui se reproduz uma parte da mesma, no que aquele acidente diz respeito:
Costa Ocidental – Senhor Francisco, nós vamos falar agora de um assunto do qual, atualmente, 90% dos florentinos não conhecem ou nem têm conhecimento. Os corvinos, como é uma terra pequena têm, até porque todos os anos fazem uma homenagem a essas gentes da ilha das Flores, a maior parte delas aqui da Fajã, da Ponta, mas também da Fajãzinha e que faleceram num desastre marítimo que vai fazer ou faz precisamente anos…
Francisco Pureza – Ontem! Dia treze (2017)! Fez precisamente setenta e cinco anos ontem.
CO – Então pronto. Eu vou deixá-lo falar. Se o senhor me conseguir narrar tudo o que lembra dele e tudo o que aconteceu nessa altura ou que lhe contaram, eu ficava muito agradecido.
FP – Bem, eu... ui…ainda ontem chorei e choro todos os anos quando me lembro… Uma dor muito grande! Bem nós saímos daqui, às seis da tarde, numa lancha chamada Francesa, salvo erro. Era um barco de um navio francês que tinha sido tropeado no início da segunda Guerra Mundial. Saímos daqui às seis horas e, por volta das onze da noite, ao chegar à costa do Corvo, a lancha abalroou nuns penedos, porque, segundo constou havia pessoal a apanhar caranguejos para fazerem petiscos lá para a festa e o mestre do barco, sem grande conhecimento do porto, pensou que aquilo era pessoal que estava no porto à espera dos romeiros ou como se diz dos peregrinos e enfiou o barco por ali dentro. O Barco bateu, abanou para o ar… e depois virou… Eu e mais um vizinho meu que faleceu íamos cá atrás ao pé do motor que era mesmo à popa e o barco era todo coberto e aquilo, com a coisa, talvez virou que eu não tenho a mais pequena ideia de como é que saí dali porque eu não fiz nenhum esforço. Na altura tinha doze anos mas já nadava um bocado, mas há um senhor da Ponta que era o João de Freitas que também estava ali e deitou-me a mão. A lancha ficou de quilha para o ar, com a traseira toda debaixo de água. Ele pegou em mim, agarramo-nos a um pantilhão da proa e para ali estivemos, não quero mentir, mas para aí à volta de uma hora ou mais, até que um barco de um indivíduo de Ponta Delgada que era João Medeiros nos apanhou porque a maré já nos ia levando pela ponta da ilha fora. Isto era de noite e era noite escura. Fomos as últimas pessoas a virem com vida para terra, eu e esse senhor João de Freitas. Depois… há umas coisas tristes que talvez não vale a pena falar… que é o médico…
CO – Se o senhor quiser contar vai ficar o registo da testemunha…
FP – Esse médico foi bem conhecido aqui na ilha, que era o doutor… não me lembro agora do nome dele…
CO – Pois eu também não sei. Depois, se o Senhor se lembrar, diz.
FP – Ao chegarmos, no barco, com os corpos, um senhor das Lajes que era o João Tiana, quis fazer uns exercícios… umas coisas para tentar recuperar alguns daqueles corpos e ele não autorizou que ele mexesse neles. O homem estava embriagado e isso nunca me passa da ideia, por isso não deixou que eles fizessem aquelas coisas… com os corpos. E ainda uma outra coisa. É que eu, uma criança de doze anos, faleceu lá a minha irmã, tinha dezassete anos e eu estive ali dias e ele nunca me procurou para saber se eu estava doente, se eu precisava de alguma coisa. Ele não foi à casa onde eu estive para ir ver se eu estava doente ou não estava. Aquilo foi uma mágoa muito grande! Durante muito tempo e ainda hoje me lembro. Eu estava muito nervoso. Aquilo foi muito triste para mim. Ele não fez, nem deixou fazer coisa nenhuma. Mas algumas daquelas pessoas deviam ter sido recuperadas se fizessem umas respirações, etc. E foi assim…
CO – Esse senhor que estava consigo, sobreviveu?
FP – Sim, sim.
CO – Ele era mais velho do que o senhor?
PF – Sim, sim. Ele tinha um filho da minha idade. Era João de Freitas. Era da Ponta, aqui da Fajã Grande. Até tinha a alcunha do Preguiça.
CO – A maior parte dessas pessoas era mesmo daqui da Fajã e Ponta?
FP – Era. A maior parte
CO – A todo eram?
FP – Dezassete pessoas que morreram.
CO – Então iam dezanove pessoas no barco…
FP – Mais…
CO – Mais!? Então iam mais pessoas?
FP – Trinta e nove, salvo erro.
CO – Quer dizer que faleceram essas dezassete e as outras, na altura conseguiram salvar-se.
FP – Sim.
CO – Muito bem! Depois como é que… agora passados estes anos sabe-se que, infelizmente… nem se quer se sabe bem onde estão sepultados no Corvo. Sabe-se que estão ali…
FP – Ali!... Eu passei lá uma vez num navio… eu nunca tive coragem de lá ir. Mas passei uma vez num navio fui lá e disseram-me que era lá num canto…
CO – É! Continua a ser assim. A Câmara Municipal, ainda hoje, não sabe bem onde eles estão. Mas nós vamos fazer essa homenagem, como já lhe disse… que eles bem merecem.
…
CO – E passados muitos anos, eu não tenho a data aqui, mas tenho-a em casa, é que houve um juiz que veio cá em serviço, à ilha, e teve conhecimento desse processo, pegou nesse processo e é que oficializou quer o naufrágio quer as certidões… todas as coisas, porque até esse juiz mexer nisso, esteve no esquecimento.
FP – Tudo, tudo…
CO – Dessas pessoas que iam no barco, o senhor tem conhecimento de ainda haver alguém vivo ou o senhor é dos últimos?
FP – Eu penso que não. Mas não sei. Havia um rapaz da Fajãzinha que era filho de José Velho, era o Álvaro de José Velho, como diziam. Ele era da minha idade. Talvez ainda esteja vivo, As outras eram todas pessoas mais velhas. Era esse rapaz da minha idade e pessoas mais velhas. Portanto, não me parece que exista mais alguém.
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ESTRANHA DECISÃO
Desde há muito que o Libório não se conformava com a sua sorte. Viver ali, naquela terra pobre e sem futuro, agarrado à rabiça do arado, de enxada em punho, ou a acarretar molhos e cestos às costas, não era para ele. Por isso é que não se conformava e não lhe saía da cabeça a ideia de que um dia havia de mudar de vida. Esse dia não tardou.
Na feira de um de Março, a que deslocara para vender dois bácoros, encontrou um amigalhaço do tempo da tropa que havia emigrado para a França e agora estava em Portugal a passar uns dias. Conversa daqui, conversa dacolá e o sonho de abandonar a vida agrícola, para o Libório, tornou-se mais real do que nunca. A vida em Portugal não melhorava, o país não progredia e a agravar a situação o regime de então acabara de iniciar uma guerra em Angola. Dizia-se que também seriam mobilizados os que tinham feito tropa nos últimos anos, mesmo já tendo passado à disponibilidade. Como se encontrava nessa situação, temia que o azar lhe batesse à porta e ainda fosse bater com os costados em Angola. Assim, emigrar para França transformou-se numa decisão irreversível.
A mulher nem queria acreditar e atirava-lhe à cara com inúmeras dificuldades, repetindo constantemente:
- Tu endoideceste por completo, homem de Deus!
Não, não endoidecera. Afinal já estava tudo planeado. É verdade que não tinha quem lhe fizesse carta chamada, mas iria como muitos outros tinham ido – clandestino. A diferença é que ela e os pequenos também iam, apesar dos passadores não quererem levar mulheres, nem muito menos crianças. É que a fuga era muito perigosa.
Foi um tipo de Macedo de Cavaleiros que o contactou através de um primo de Senande, para acertar tudo. Era preciso que ninguém soubesse ou desconfiasse de nada. E foi lá, em Senande, em casa do primo, que encontrou o homem. Álvaro Ramalho, assim se chamava o contrabandista, no início recusou levar a mulher e as crianças. Aos poucos foi cedendo. Era uma questão de preço. Mas garantiu-lhe que era sério e honrava os compromissos. O que se combinasse ali seria escrupulosamente cumprido. Oitenta contos: trinta por cada um dos adultos e vinte pelas crianças mas estas, sempre que seguissem de carro ou camioneta, seriam levadas ao colo. Claro que tudo o que lhes acontecesse era da responsabilidade dos pais.
O Libório regressou sem firmar contrato. O preço era altíssimo. Era-lhe de todo impossível arranjar aquele dinheiro. Um segundo encontro e o Ramalho cedeu:
- Vinte mil em notas e quarenta em bens. Aceitamos casas, terras… Mas temos que ser nós a avaliar os bens – sentenciou o homem, apertando-lhe a mão – e tens emprego garantido em Clermont-Ferrand. Ao chegares lá um tipo chamado Cardoso vai procurar-te, vai arranjar-te trabalho e dizer-te como deves pagar o restante. Não devem levar muita bagagem. Para além de ser comprometedor é impossível transportá-la. Levem apenas o indispensável.
A mulher, ocultou a decisão às crianças, mas teve muitas dificuldades em aceitar.
- Vais vender a casa e o campo!? E se temos que voltar para trás? O que vai ser de nós e dos pequenos? Nem ao menos posso avisar meus pais? – Perguntava ansiosa.
- De forma nenhuma. Ninguém, absolutamente ninguém pode saber, a não ser o primo de Senande. E não te esqueças que aos pequenos e a quem te preguntar para onde vais, deves dizer que vamos às Caldas, a casa dos teus pais.
- E o Lavrado? E a cabra? E as galinhas e o porco?
- O boi já está vendido. A casa e o campo ficam ao cuidado de meu primo. Só depois de receber a notícia de que já estamos seguros e em França ele venderá o que puder e fará a entrega da casa e do campo ao passador.
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REPROVE-ME
Educadíssimo, entrava na sala esquivando-se a atropelos e empurrões, não se emaranhava em confusões nem em barafundas, alienava-se a berreiros e algazarras e agarrava-se à delicadeza e às boas maneiras como se fossem apanágio das suas atitudes e do seu comportamento. Depois sentava-se como que amordaçado na sua cadeira, abria com acentuado esmero e desmedida pachorra a mochila que carregava a tiracolo e ia colocando, arrumadamente, sobre a mesa, à sua frente, livros, cadernos, canetas, enfim, tudo o que fosse indispensável ao trabalho de aluno aplicado.
Os outros num alvoroço excessivo, numa atribulação gritante e numa algazarra desmedida, embebidos na ânsia de que quanto mais curta fosse a aula melhor. Ele, o Bruno, a desejar lá bem no seu íntimo, que se calassem, que se sentassem, que ouvissem o mestre e os seus ensinamentos.
Por fim, açulados com os apelos do professor, os outros lá se iam calando, acomodando, deixando que a aula se iniciasse. E a aula começava, com os outros a perguntar, a questionar, a interromper e, por vezes, a alienarem-se e a distraírem-se. Ele, o Bruno, sempre calado, sempre atento, sempre a observar o que se passava dentro da sala, apenas a responder, adequada e correctamente, quando interrogado. Mas nas fichas e nos trabalhos de avaliação os outros a empenharem-se, a elaborar respostas correctas e a conseguir resultados positivos. Ele, o Bruno, a desmazelar-se, a elaborar, como que de propósito, respostas erradas e a obter resultados negativos.
Nas reuniões dos conselhos de turma os professores, admirados e pasmados, sem entender o que se passava, indignavam-se, constrangiam-se, interrogavam-se, elaboravam planos de recuperação e comprometiam-se a desvendar o enigma. A directora de turma já chamara a mãe à escola, mas a senhora ainda se admirara mais do que ela com o incompreensível e estranho comportamento do filho. Mas prometeu que ele havia de mudar. Mas não mudou. Pelo contrário, quanto mais revelava ser um aluno de comportamento exemplar e de uma boa capacidade de aprendizagem, menos se empenhava nos trabalhos de avaliação.
Tão estranho comportamento levou-me a pensar que ali havia embuste e eu, um dos professores, havia de o descobrir, custasse o que custasse.
Certo dia, já perto do fim do ano, aproximei-me dele e de rompante, atirei-lhe:
- Sabes uma coisa? Mesmo com todas as negativas que tiveste nos testes, eu vou passar-te de ano.
Foi como se o céu lhe desabasse em cima. Voltou-se para mim com os olhos rasos de lágrimas e começou a implorar-me:
- Professor, não, não faça isso, reprove-me, reprove-me por favor.
Era o que faltava! Havia de passá-lo e até com um quatro ou com um cinco. E ele, o Bruno, cada vez mais lavado em lágrimas, mais indignado, mais revoltado, mais desesperado, a implorar com maior insistência;
- Reprove.me, professor. Reprove-me.
Coloquei-lhe o braço por cima do ombro, pedi-lhe que enxugasse as lágrimas e disse-lhe com alguma serenidade:
- Está bem. Vou fazer-te a vontade. Vou reprovar-te, mas com uma condição. Concordas?
- E qual é a condição, setor? – Perguntou apreensivo.
Respondi-lhe:
- Só te reprovo se tu me explicares porque é que queres que te reprove.
Calou-se por uns momentos e ficou pensativo por mais alguns. Depois olhou-me com uns olhos cheios de verdade e um rosto expectante de ternura e explicou. Explicou que os pais eram muito pobres e que precisavam dele para trabalhar. Explicou que se passasse de ano o pai não o deixava ir para o terceiro ciclo e havia de ir trabalhar… trabalhar que nem um escravo… Além disso, em casa passava fome e ali, na escola tinha almoço do bom e do melhor e com o pratinho sempre cheio. Que o deixasse ficar ali, na escola, pelo menos mais um ano, sem ir trabalhar e a ter comidinha boa e em quantidade.
E como mais uma vez me pedisse que o reprovasse, reprovei-o mesmo, eu e alguns dos outros professores.
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MARÉ CHEIA
Era uma tarde de calor sufocante, arreliador. Imperava um silêncio demolidor, aniquilante. Pelas ruas quase desertas corriam ecos petrificados das sombras que, na véspera, haviam domado todos os destinos. No ar pairava um perfume azulado e, por entre as vidraças das janelas semicerradas, olhos ávidos espreitavam o restolho da bruma que envolvera a madrugada. As casas, humildemente plantadas sobre o perfume da lava, tinham portas e janelas cerradas e nenhum automóvel espelhava o brilho entontecido do sol. Ainda era cedo, mas era verão e o dia estava muito claro.
Buliçoso estarrecer que se envolve em emoções edificadas sobre castelos de vento. Mas de repente um enorme clarão surgiu de oeste desfazendo todas ansiedades, desobstruindo todos os caminhos, desmistificando toda a escuridão. Era a destruição radical e definitiva do silêncio, das sombras, das incertezas e dos sonhos perdidos.
O único caminho aberto era mar e por isso, o único percurso imposto, a percorrer em loucura desusada, era o mar. Só o mar, pois era o mar que embalava a sublimidade, que acariciava a beleza, que aconchegava a transcendentalidade.
Sobre a rocha negra do baixio, num rasgo de cimento ali plantado, um raio de sol espelhado em silêncio, entregava-se à contemplação. As formas desenhadas pelas sombras circundantes entonteciam e provocavam dulcificados espasmos nas gaivotas.
E o mais estranho de tudo é que a maré estava cheia.
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FAJÃ GRANDE ILHA DAS FLORES
(TEXTO RETIRADO DO BLOGUE PERDIDA POR LISBOA)
A Fajã Grande é das freguesias mais bonitas da ilha e a principal zona de veraneio. E para mim, tem também o pôr-do-sol mais bonito do mundo.
Ilhéu do Monchique – Junto à costa oeste da ilha encontra-se o ponto mais ocidental da Europa. Um rochedo oceânico que já foi ponto de referência para os barcos acertarem as rotas. Aproveita para o conhecer durante uma volta de barco à ilha com a Extremo Ocidente. Durante essa viagem podes também conhecer outros ilhéus, grutas, cascatas que desabam no mar e até quem sabe ser surpreendido por golfinhos.
Poço do Bacalhau - Queda de 90 metros de altura, que se despenha numa lagoa natural e convida a um mergulho que dificilmente irás recusar. Se gostas de ter como companhia adrenalina, aventura e emoções fortes aproveita para fazer canyoning com a West Canyoning que já vos falei aqui
Moinho da Fajãzinha – Aqui o milho ainda é moído como antigamente. Os locais levam o seu milho, pagam um x e levam a farinha para casa moída de uma forma artesanal. A senhora Fátima, que explica com todo o amor o processo de moagem a quem por lá passa, garante que o pão feito com esta farinha é 2mil vezes mais saboroso":
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FLORES A MINHA ILHA
(TEXTO RETIRADO DO BLOGUE PERDIDA POR LISBOA)
Antes de começar a falar da “minha” ilha, tenho de ser sincera. Demorei meses a ter coragem para escrever este post. As razões são as mais variadas. É difícil escolher o essencial quando o geral não é o mais importante. Para mim, a ilha das Flores é um todo, de afetos, de paisagens, de memórias e recordações que me trazem, na maioria das vezes, sentimentos ambíguos. É árduo escolher os melhores lugares a visitar sem apresentar um post de um quilómetro, selecionar fotos quando acho que as imagens não mostram a essência desta ilha e optar por palavras para definir uma terra tão pequena e tão grande ao mesmo tempo que só o coração consegue absover.
Dizem os livros de história que lhe chamaram Ilha de São Tomás e depois Santa Iria. Mas, obstinada desde o início, foi ela que escolheu o seu próprio nome. A abundância de flores amarelas que revestiam toda a superfície da ilha não deixou margem para dúvidas, o nome desta pequena terra era desde o nascimento, Flores. Dos cubres restam apenas amostras, mas a denominação continua a fazer sentido. Nos meses de verão, as encostas e os vales cobrem-se de milhares de hortênsias de cor azul, que dividem as terras de mil verdes e dão outra cor às margens das ribeiras e lagoas.
E quem a visita é isso que vê. A beleza natural, autêntica e quase virgem de um pedaço isolado de paraíso no meio do imenso oceano atlântico. Uma terra tranquila, de 1001 cascatas, de piscinas naturais com temperaturas amenas, de fenómenos geológicos estranhos e de histórias de aventura e de encantar. Mas o mesmo isolamento que faz desta ilha uma das mais bonitas do mundo, é um pau de dois bicos.
Quem aqui vive é sortudo, mas é também sobrevivente. Sobrevivente ao peso de residir na fronteira mais ocidental da Europa, a meio caminho entre o continente europeu e o americano, entre tempestades que ora trazem chuva e vento, ora dão à ilha uma vegetação luxuriante. Os florentinos vivem permanentemente divididos entre as saudades dos que partem, a rotina que todos conhecem e as falhas difíceis de combater numa terra tão pequena. Aqui, não há hospitais, há apenas um centro de saúde e os casos mais graves são evacuados. Aqui, as grávidas têm de viajar para outra ilha um mês antes de ter os filhos. Aqui, muitos alimentos frescos teimam ainda em não chegar. Aqui, não há cinema, centro comercial, dezenas de restaurantes e cafés, milhares de pessoas. É verdade. Aqui, neste éden, ainda desconhecido por muitos portugueses, não há perfeição… mas está muito perto dela.
A SATA é a única companhia aérea a voar para as Flores e se viajares a partir do continente tens obrigatoriamente de fazer escala em pelo menos uma outra ilha. Consulta os preços aqui.
Entre as verdejantes matas - que os florentinos chamam de “mato” - vais encontrar sete crateras de vulcões tornadas lagoas. As minhas preferidas vêm em dose dupla porque a paisagem contempla as duas. São elas a Caldeira Negra e a Lagoa Comprida (na imagem), que ficam perto da freguesia da Fajã-Grande, e a Funda e a Rasa, perto da vila das Lajes.
Rocha dos Bordões – Este fenómeno geológico com cerca de 570 mil anos provoca muita curiosidade nos visitantes. O morro alto rodeado de “bordões” é o resultado da solidificação de basalto em altas estrias verticais. Se fores no mês de julho esta rocha vai estar ainda mais bonita pois enche-se de hortências que lhe dão uma tonalidade azul.
Poço da Ribeira do Ferreiro – Este local (primeira foto deste post) é também conhecido por Poço da Alagoinha, ou Lagoa das Patas. Mas o nome pouco interessa. A sensação, ao chegar aqui, é de ter encontrado o Éden. Uma lagoa onde desabam dezenas de cascatas rodeadas, com uma luxuriante vegetação de onde saem libelinhas e por vezes até patos. Para chegar aqui tens de fazer um trilho de cerca de 20 minutos, onde o único som que vais ouvir é o chilrear dos pássaros e o correr das ribeiras.
Miradouro Craveiro Lopes - Esta ilha é rica em trilhos e vistas magnificentes. O miradouro Craveiro Lopes é exemplo disso. Uma visão panorâmica sobre o vale da Fajãzinha, com o Poço da Ribeira do Ferreiro à direita e o mar em frente.
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UMA VISITA À ILHA DE LANZAROTE
Lanzarote ou Lançarote é a ilha mais oriental do arquipélago das Canárias. É formada por vulcões adormecidos, enormes crateras e rios de lava. A sua capital é Arrecife.
Impõe-se uma visita a esta ilha e ver:
O Parque Nacional de Timanfaya: -Trata-se de um valioso parque vulcânico. Timanfaya é a cratera mais elevada, dando nome ao Parque Nacional, criado em 1974 e que ocupa uma área de cerca 51 km quadrados a Sudoeste da ilha. As últimas erupções ocorreram em 1824. Ainda existe atividade vulcânica, a 13 metros de profundidade a temperatura varia entre os 100ºC e os 600ºC. Durante a visita ao Parque, que é obrigatoriamente em autocarros do próprio parque, é impossível não ficar maravilhado e atónito com a paisagem vulcânica muito peculiar, cada montinho corresponde a um vulcão. É possível testemunhar diferentes experiências geotérmicas, com demonstrações do intenso calor subterrâneo, nomeadamente através de géiseres ou em covas relativamente baixas onde colocam palha e que rapidamente entra em combustão. Para os mais gulosos, no restaurante 'El Diablo' é possível degustar uma refeição completamente cozinhada pelo calor do vulcão.
Dar um passeio de Camelo: - Trata-se de passeio de dromedário ou de camelo... Vários dromedários ou camelos alinhados, a caminhar em fila, na paisagem vulcânica do Parque Nacional Timanfaya. Trata-se de um passeio diferente, que permite desfrutar da paisagem vulcânica de Lanzarote e interagir com os simpáticos dromedários.
Visitar uma zona muito bonita, onde se assiste a um espectáculo natural do mar rompendo efusivamente através de túneis e cavernas vulcânicas. Quando mar está revolto, ao chocar contra as escarpas vulcânicas e ao penetrar nos túneis debaixo dos nossos pés, forma um névoa no ar como se o mar estivesse a ferver. Quando visitámos o mar estava relativamente calmo pelo que não presenciámos este espectáculo da natureza.
E ainda Lagoa Verde em El Golfo com um verde, mesmo verde! Em Lanzarote há uma Lagoa Verde! O verde da lagoa contrasta com o azul do mar e o negro das rochas vulcânicas, produzindo um cenário improvável e de rara beleza. A cor da lagoa deve-se a umas algas específicas que estão à superfície da água e as quais estão adaptadas a água doce e ao enxofre do local.
As Salinas de Janubio São as maiores salinas das Canárias e encontram-se numa lagoa que se formou pelas sucessivas erupções vulcânicas, que acabaram por criar uma barreira ao mar. São consideradas como Local de Interesse Científico pela presença de inúmeras aves migratórias.
La Geria:A região vinícola de La Geria apresenta uma das paisagens mais extraordinárias da Europa. Semelhante à ilha do Pico, nos Açores, as videiras estão plantadas sobre terreno vulcânico, protegidas por muros feito de pedras, em formato arredondado, produzindo uma bonita e original paisagem.
Esta ilha foi descoberta pelo navegador genovês Lanzelot Maloisel em 1312. Entre 1730 e 1736 deram-se grandes erupções vulcânicas, que destruíram vilas inteiras, originando uma fuga generalizada da população para as outras ilhas do arquipélago. Para pôr cobro a esta debandada, o rei Filipe V proibiu o abandono da ilha sob pena de morte. Em 1776, foi erigido o castelo de San José, com a finalidade de proteger o porto das naus. Em 1993, a Unesco, atribuiu a Lanzarote o estatuto de Reserva da biosfera.
O seu habitante mais célebre, no que à Língua Portuguesa respeita, foi José Saramago, Prêmio Nobel da Literatura, em 1998.
(dados retirados de Sapo Blogs)
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O BEZERRO PROMETIDO
Conta-se que há muitos anos numa determinada freguesia açoriana um homem prometeu matar um bezerro e distribuir a carne pelos pobres, em louvor do Senhor Espírito Santo. Aconteceu, porém, que um mês e meio antes da data marcada para cumprir a promessa e levar a coroa à igreja, o bezerro desapareceu. O homem e alguns amigos andaram esse tempo todo à procura do bezerro e ele nunca apareceu. Desesperado o homem decidiu comprar outro bezerro para fazer o lugar do que estava perdido, e assim cumprir a sua promessa. Comprou o bezerro e no dia marcado, matou-o. Quando regressavam do matadouro com a carne, em procissão, ouviram berrar e viram que era o bezerro que se perdera e que estava prometido. O homem pediu então que trouxessem a coroa e os foliões que acompanhavam o cortejo fizeram uma roda à volta do bezerro como se estivessem diante do altar a cantar e dançar as Alvoradas. Conta-se que o bezerro assim que viu a coroa ajoelhou-se diante dela e o homem que levava a coroa colocou-a sobre a cabeça do bezerro, que foi benzido e depois morto, a fim de ser dados como esmolas em louvor do Senhor Espírito Santo. Foi um dia de alegria mas ao mesmo tempo havia choros e todas as pessoas ali presentes diziam que tinha sido o Senhor Espirito Santo que queria as coisas daquela maneira e que o Espirito Santo tem muita força e que com Ele não se brinca.
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A MATRIZ DE SANTA CRUZ DAS FLORES
A matriz de Santa Cruz das Flores, o maior templo da ilha, é uma igreja de grandes dimensões situada num adro nivelado e elevado em relação à rua, acessível por cinco largos degraus pavimentados com calçada à portuguesa que, frente à fachada, têm uma configuração semicircular que amplia o adro. O espaço livre ao lado esquerdo da igreja, definido pela fachada lateral, pela torre esquerda e pela sacristia, é também pavimentado com calçada à portuguesa entre canteiros. As áreas que envolvem o edifício pelos lados direito e posterior são relvadas.
O edifício assume uma posição de destaque em Santa Cruz, sendo visível de praticamente toda a vila. É composto pelo corpo principal, retangular, pelo corpo mais estreito da capela-mor, pelas duas torres sineiras e por dois corpos anexos de cada lado, nos ângulos formados pelo corpo principal e pela capela-mor, implantados perpendicularmente às respetivas paredes laterais (cada um destes anexos é constituído por um corpo retangular mais antigo e por uma ampliação, em "L", que contorna o canto do corpo principal).
A fachada principal está dividida em três níveis por cornijas e em três secções verticais por meio de pilastras. No nível inferior, cada secção tem uma porta, correspondente a cada uma das naves. As molduras das portas têm lintel duplo e cornija e são ladeadas por colunas de fuste cónico com base e plinto muito pronunciados. Os capitéis das colunas integram-se na cornija da porta e parecem ser sucedâneos da ordem coríntia na porta central e da ordem jónica nas portas laterais. No primeiro lintel de cada porta há uma roseta em relevo. Por cima de cada capitel há um elemento bojudo que o une à cornija de separação dos níveis. Por cima da cornija há pináculos na vertical das colunas.
No nível intermédio, cada secção tem uma janela de guilhotina de duas folhas, alinhada pela porta que lhe é inferior, mas mais estreita. Cada janela tem uma moldura e um enquadramento que repete, em ponto mais pequeno, a moldura e o enquadramento das portas, mas com um avental almofadado entre os plintos das suas colunas. Em cada um destes plintos há uma inscrição em latim, sendo, da esquerda para a direita: "CONCEPTIONEM", "BEATÆ", "VIRGINIS", "MARIÆ", "CUMGAUDIO" e "RECOLAMUS". Acima dos capitéis das colunas das janelas, que são mais elaborados que os das portas, os elementos bojudos ligam a uma segunda cornija que, por sua vez, tem elementos de ligação à cornija de remate do segundo nível da fachada. Toda esta cornija apresenta zonas mais salientes no cruzamento com os elementos verticais da fachada.
O terceiro nível da fachada tem um remate superior semelhante a um frontão contracurvado. É encimado por uma cruz de ferro a eixo. As pilastras que dividem as secções da fachada terminam no nível correspondente à base do frontão com um capitel onde assenta um pináculo embutido. Na secção central há um óculo polilobado emoldurado por um quadrado que assenta na segunda cornija de divisão da fachada. No eixo, do lado superior do quadrado, há uma concha em relevo. Acima do quadrado há um segmento de cornija que suporta, a eixo, um segmento de pilastra encimado, já no tímpano do frontão, por um quadrado rodado a 45º e rematado por um elemento decorativo em forma de concha. Em cada uma das secções laterais há um óculo cego, quadrangular, rodado a 45º, com moldura dupla, encimado por uma pequena concha em relevo. Acima de cada concha há um segmento reto de cornija, encimado por um segmento de pilastra rematado por um capitel onde assenta um pináculo, com um grande plinto, que limita as volutas que compõem o remate contracurvado do frontão.
As torres sineiras estão implantadas à face da fachada, também divididas em três níveis pelo prolongamento das suas cornijas de tal modo que parecem constituir mais duas secções da mesma. O nível inferior tem uma janela de guilhotina com molduras simples cujas ombreiras, prolongadas superiormente, formam uma moldura retangular rematada por uma cornija com uma roseta em relevo ao centro. O nível intermédio tem uma janela semelhante mas mais baixa pelo que a moldura superior, com um elemento decorativo concheado, é de maiores dimensões. Tem, também, uma cornija sob o peitoril, suportada por duas meias volutas que definem um avental. No centro do avental tem uma cartela sem inscrições. O nível superior das torres tem um vão de sino em cada uma das três faces livres. Os vãos dos sinos são rematados em arco de volta-inteira peraltado, assente em impostas, e apoiam numa moldura horizontal situada acima da cornija do segundo nível. As torres são rematadas superiormente por uma cornija e encimadas por uma cúpula bulbosa octogonal assente num tambor e rematada por um pináculo. As portas das fachadas laterais têm molduras com lintel duplo e cornija, enquadradas por pilastras muito salientes assentes em plintos altos e moldurados. Há uma segunda cornija, separada da primeira por curtos prolongamentos das pilastras e rematada por um pináculo em cada extremo, onde assenta uma janela.
Das três portas de entrada da fachada principal, a axial está protegida no interior por um guarda-vento de madeira. O corpo principal está dividido em três naves, separadas por duas fiadas de cinco arcos de volta-inteira apoiados em pilares de secção quadrada, com base, plinto e capitéis salientes.
O coro-alto situa-se sobre a entrada, ocupando o primeiro tramo das naves, pelo que os arcos do primeiro tramo, que o sustentam, são mais baixos que os restantes e suportam paredes que dividem o coro em três secções. Os apoios da secção central são reforçados por quatro pilaretes em madeira, dois dos quais, de menores dimensões, ligados ao guarda-vento. A ligação entre as três secções faz-se através de portas. No coro há mais uma porta em cada parede lateral, de comunicação com as torres sineiras. Estas quatro portas têm molduras com as arestas boleadas e com duplo lintel encimado por cornija. Na secção central do coro há um órgão.
Sob o coro, do lado da epístola, há uma porta de ligação ao interior da torre onde se situa a escada de acesso ao coro. Em cada um dos pilares do primeiro tramo há uma pia de água-benta em forma de concha. Ainda sob o coro, do lado do evangelho, há um vão rematado em arco de volta-inteira assente em impostas, que acede ao batistério. Este vão tem a bandeira raiada, em madeira trabalhada.
O batistério, que corresponde ao aproveitamento do piso térreo da torre esquerda, tem o teto em abóbada de berço, em cantaria à vista, assente numa cornija. As paredes são revestidas a azulejo relevado e policromado. Na parede do lado direito tem um nicho retangular.
As portas laterais ficam na zona correspondente ao terceiro tramo. Ao lado direito da porta do lado do evangelho há uma pia de água-benta em forma de concha. Acima do nível das portas, em ambas as paredes, há quatro janelas situadas a diferentes alturas, cada uma correspondendo a um tramo.
No terceiro pilar a contar da entrada, do lado do evangelho, há um púlpito com consola de pedra em forma de grande mísula, acessível por uma escada em pedra que contorna o pilar no sentido da nave lateral para a central. O púlpito e a escada têm guarda de balaústres em madeira.
Na zona do quinto tramo, que tem o pavimento sobrelevado por um degrau, há uma porta em cada uma das paredes das naves laterais. A do lado do evangelho dá acesso à sacristia e a do lado da epístola e a uma pequena capela retangular, atualmente utilizada como arrumo. Estas duas portas e a porta de acesso à torre têm molduras com duplo lintel e cornija encimada por uma concha em relevo ao centro e dois pináculos embutidos no alinhamento das ombreiras.
O arco triunfal é de volta-inteira, assente em impostas. De cada lado do arco, no topo das naves laterais, há um retábulo. Nas mesmas paredes de topo, acima das cornijas, há óculos circulares. Acima do arco triunfal, cujo fecho está ligado à cornija superior, podem-se ver, entre o arco e a cornija, dois elementos almofadados em cantaria em posição simétrica. Acima da cornija há um elemento decorativo em relevo ladeado por três estrelas de cada lado e encimado por uma janela quadrangular.
A capela-mor é profunda e da mesma largura da nave central. Na parede do lado do evangelho há uma porta de acesso a um compartimento de arrumos seguida por duas janelas altas. Do lado da epístola há uma composição simétrica mas com a porta emparedada. Ao fundo da capela-mor, numa zona mais elevada, há um retábulo. Este retábulo, assim como os das naves laterais, é em talha revivalista (dourada e pintada) de sabor vagamente neoclássico. As paredes e o teto são pintados tendo painéis figurativos rodeados de motivos decorativos.
Os tetos das três naves, da capela-mor, da sacristia e da capela lateral (arrecadação) são em madeira a simular abóbadas de berço apoiadas em grandes cornijas. Os tetos das naves e da sacristia estão pintados de azul.
Na sacristia há um vão rematado em arco de volta-inteira assente em impostas/capitéis, com fecho saliente, hoje fechado com uma parede e uma porta em madeira, que daria acesso a um compartimento, muito alterado, onde ainda se vê um lavabo em pedra.
Todo o edifício é construído em alvenaria de pedra rebocada e pintada de branco, exceto o soco, os cunhais, as cornijas, as pilastras, as colunas, as molduras dos vãos, os pináculos e restantes elementos decorativos, os arcos, os pilares interiores e a consola do púlpito que são em cantaria à vista. As coberturas são de duas águas, em telha de meia cana com beiral simples. As coberturas das ampliações dos anexos/sacristias resultam do prolongamento das águas posteriores dos corpos retangulares originais.
In C.M. de Santa Cruz das Flores.
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A PRÁTICA DO BEM
"Faz o bem mas não olhes a quem."
Adágio muito utilizado na Fajã Grande sob a forma de conselho. Na verdade era imperioso praticar o bem mas sem restrições sobretudo dos destinatários. Era sobretudo os nossos pais e os mais velhos que nos ensinavam que deveríamos fazer o bem ao próximo assim como gostariamos que nos fizessem a nós.
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O CARNAVAL ANTIGAMENTE
É desconhecida a época em que foram introduzidas as manifestações carnavalescas nas Flores, mas sabe-se que em meados do século XIX o Entrudo já se celebrava nesta ilha.
Antigamente as pessoas visitavam-se mascaradas, com indumentárias muito rudimentares (geralmente com roupas de outras pessoas amigas ou familiares) assim como as máscaras que cobriam as caras, confecionadas com materiais pobres, por vezes de bocados de cartão, serapilheira, folhas de plantas, etc.
Divertiam-se em receber as pessoas que faziam trejeitos espalhafatosos, emitiam sons diversos, alterando as suas características pessoais para aumentar o grau de dificuldade no adivinhar quem era o visitante mascarado, o que tornava alegres os serões a seguir ao domingo de reis, época a partir da qual eram oficialmente permitidas essas visitas, que eram contudo mais comuns nas duas semanas anteriores ao dia de Entrudo. Era sempre obrigatório o retirar da máscara antes de saírem da casa visitada, gesto esse que viria confirmar ou surpreender os de casa perante o verdadeiro visitante então identificado. Quando não era de surpresa o momento era sempre de riso e boa disposição.
Na vila de Santa Cruz, a partir das primeiras décadas do ano passado, passaram a fazer-se os chamados “assaltos” que se organizavam a partir de pessoas amigas que se juntavam e iam invadir a casa escolhida, que era anteriormente prevenida, mas que no momento da chegada à porta sempre fingia não saber da alegre visita, mostrando-se todos admirados, numa encenação que era tanto mais perfeita quanto a capacidade de representar dos cicerones. Era esse um ritual previamente intuído e que fazia parte desse faz de conta que essa época proporcionava também a esse nível.
Eram escolhidas as casas com salas maiores, para nelas se poderem dançar as músicas da época como os tangos, valsas, passo-dobles , one-steps e fox-trots, as quais eram arrumadas ou melhor desarrumadas para o efeito.
Os assaltantes geralmente contribuíam, levando consigo sanduiches e vinhos finos.
Nas tarde de Domingo-Magro, Domingo-Gordo e de Terça-feira de Carnaval passeavam-se pelas ruas e praças vários grupos de crianças dos dois sexos, vestindo trajes regionais do Continente e de outros lugares, e os rapazes mascarados imitando velhos, mendigos e marinheiros , não indo muito além disso o imaginação usada nas fantasias.
Nestas tardes apareciam em público as chamadas “danças”: que podiam ser de dança de arcos ou de fitas.
A primeira era composta de oito ou mais rapazes trajando à maruja, isto é calça branca, blusa da mesma cor com cabeção azul ou encarnado, meia preta e sapato branco; e de igual número trajando roupa feminina: saia curta, blusa de várias cores, sapato e meia brancos, cabeleira de trança ou corte à moda.
Cada um dos componentes da dança segurava nas mãos a extremidades de um arco de vime coberto de pasta de algodão entrelaçada com fitas de papel de seda de várias cores.
Comandava a mesma um personagem fingindo de almirante, com chapéu armado coberto de plumas brancas ou penachos de cor, casaca verde e calça vermelha ou vice-versa. Calçava meia preta e luvas brancas.
Numa das mãos empunhava uma comprida espada de folha e trazia na outra um apito por onde emitia sons agudos que substituíam as vozes de comando. Era acompanhado por um subalterno que o auxiliava na condução da dança, seguindo na retaguarda quando em marcha.
Caminhavam aos pares, percorrendo as ruas principais. Paravam para dançar nos lugares onde se encontrava maior número de espetadores e ainda em frente das casas de autoridades e pessoas de destaque. Essa dança era sempre acompanhada por um grupo de 5 ou 6 músicos que tocavam violino, viola, guitarra concertina ou gaita.
O bailado começava sempre por uma rasgada vénia aos espetadores, terminando sempre do mesmo modo.
Toda a coreografia constava de uma série de voltas e movimentos de vaivém de todo o grupo, mudança de pares, entrelaçamento de arcos e passeio por debaixo dos mesmos. Quase sempre a som da seguinte melodia:
A dança das fitas era composta por qualquer número de rapazes, segurando cada um a extremidade de uma fita de 4 a 5 metros de comprimento, presa à ponta de uma vara um pouco mais pequena, que um dos do grupo segurava verticalmente ao centro.
Por uma série de voltas e contravoltas, vão fazendo um entrançado em torno da vara, desfazendo-o depois pelo mesmo processo, a um sinal de apito dado pelo mestre da dança, geralmente vestido de grande personagem — casaca ou sobrecasaca, chapéu alto, luvas e bengala, ostentando ao peito condecorações espalhafatosas.
Acompanhava qualquer uma dessas danças um ou dois mascarados, ridiculamente vestidos, fazendo momices e pedindo aos presentes algum dinheiro (para elas), quase sempre empregado depois em bebidas.
Depois do jantar do meio dia da Terça-feira de Entrudo, que constava geralmente de galinha assada ou guisada com “debulho” ou arroz, algumas crianças e rapazes, junto aos chafarizes, jogavam ao carnaval arremessando baldes de água uns aos outros e ainda por vezes, nalgumas freguesias, ovos e limas de cera cheias de água, assim como pequenos embrulhos com mistura de farinha, areia e papel picado.
Durante algum tempo era também usada uma seringa de cana para os jatos de água mais assertivos. Na noite desse dia continuavam as visitas dos mascarados pelas casas, visitas essas que não podiam nunca ultrapassar a meia-noite, a partir da qual começava a Quaresma. Todos sabiam que no dia seguinte teriam de estar na igreja tristes, sérios compungidos, enfileirados perante o padre que lhes imporia na fronte cinzas escuras e lhes advertiria solenemente: “lembra-te ó homem que és pó e em pó te hás de tornar”.
Texto de António Maria
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TROVOADA
Aqui,
mesmo em frente à minha porta,
desabou um raio:
fulminante…
inesperado…
Seguiu-se, de imediato,
o trovão desejado!
(Razão tinha a minha avó
quando me dizia:
Se o trovão vem logo a seguir ao relâmpago deves fugir
porque a trovoada está perto de ti.)
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MALDITA FARANDOLA
Cuidando que nos davam grande esmola,
Vieram acorrentar uma inocente,
Prendê-la como se fosse demente.
Imbecil e maldita farandola!
Na adega isolada da aldeola,
O silêncio ancorava, bem dolente,
Entre raiva e suplício, tristemente.
Mas o vinho corria em carambola.
Tremeliques de lava em chão deserto,
Semelhanças apócrifas por perto.
Na mesa uma clareira desusada.
Cagarras esvoaçavam em berreiro
E o mosto fermentava no balseiro,
No afogo duma noite atormentada.
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UM MENU SIMPLES E ORIGINAL
Ontem como hoje, a Fajã Grande era fértil em produtos agrícolas de excelente qualidade. À magnífica produtividade dos tereenos aliava-se a enorme capacidade de trabalho dos seus habitantes e o esforço gigantesco que faziam, dia a dia, a fim de que os campos que cultivavam com esmero e dedicação produzissem o melhor, em qualida e quantidade. Assim, a nível da agricultuura, muito ali se produzia: milho, batatas brancas e doces, inhames, couves, cebolas, feijão, beterraba, etc. Paralelamente à agricultura, também a pecuária era exímia, destacando-se a criação de bovinos e suínos e a consequente produção de leite, queijo e de carne de porco. Acrescente-se ainda a produção de frutos, muitos deles sem exigir grande trabalho, uma vez que se desenvolviam naturalmente, entre os matagais de incensos e faias, como os araçás e as ameixas bravas, nos matos e nas encostasos áridas como as amoras e os tomates de capucho ou sobre os maroiros e paredes que ladeavam os cerrados, como os figos, as ivas e muitos outros. Plantada à beira-mar com excelentes baías e enseadas, o pescada também ocupava um lugar de relevo na alimentação quotidiana dos fajãgrandenses.
Apesar de todos estes recursos naturais e desta excelente produtividade a Fajã Grande não possuía nem possui uma significativa gastronomia tradicional. Talvez porque o tempo fosse escasso para o trabalho agrícola, talvez porque a mulher tivesse uma actividade doméstica intensa, ajudando, ainda, o homem no cultivo dos campos e na criaçao de gado, a culinária nunca foi objecto de grandes cuidados. Pratos pobres e simples, produtos cozidos ou fritos e pouco mais.
Mas com tão grande riqueza e variedade de produtos, hoje, dentro do espírito da cozinha gourmet, com muitos daqueles produtos poder-se-iam elaborar pratos fabulosos. A seguir apresentam-se três que poderiam ter ficado no historial pantracuélico fajangrandense. Mas não ficaram. São apenas uma mera fantasia, no entanto constituiriam o menu duma interessante refeição regional: sopa de agrião, croquetes de inhame e albacora e cheesecake de araçá.
Sopa de agrião: - Ingredientes: 200 gramass de batatas, cenoura, abóbora, cebola e alho, um mão cheia de agriões incluindo as folhas e os talos mais finos, um punhado de massinhas e uma colher de azeite. Preparação: Lavar bem todos os legumes, descascá-los e cortá-los em pedaços. Escolher os agriões, separar as folhas e aproveitar os talos mais tenros. Numa panela, colocar todos os legumes, menos as folhas de agrião e cobrir com água. Depois de tudo cozido, retirar algumas rodelas de cenoura e reservar. Triturar a sopa com a varinha mágica formando uma base. Juntar as massinhas, as folhas de agrião e a cenoura reservada, cortada aos cubinhos. Deixau ferver durante alguns minutos. Por fim colocar um fio de azeite e está pronta a servir.
Croquetes de inhame e albacora: Ingredientes: Um inhame pequeno cozido, sobras de albacora assasa, meia cebola, meio dente de alho, um raminho de salsa, pão ralado. Preparação: Escolher e retirar as espinhas das sobras de peixe, esmagando-as com um garfo. Desfazer também o inhame com um garfo e juntar ao peixe, misturando e envolvendo muito bem. Picar muito miúda a cebola, o alho e a salsa e misturar tudo muito bem. Moldar pequenos croquetes, passando-os por pão ralado. Levar ao forno a alourarem. Servir com uma boa salada.
Cheesecake de araçá: Ingredientes: duas colheres de compota de araçá; cinquenta gramas de queijo fresco, quatro colheres de açúcar mascavado, quatro bolachas Maria e um pouco de leite.
Preparação: Cozer os araçás e depois de cozidos reduzi-las a puré. Juntar duas colheres de açúcar e levar ao lume brando. Triturar, finamente, as bolachas e envolve-las no leite, juntamente com uma colher de açúcar, de modo a formar uma massa consistente. Esmagar o queijo, misturando a outra colher de açúcar. Numa forminha de fundo amovível, colocar a compota de araçá, a mistura do queijo e a bolacha amassada.
Sugestões simples e fáceis que poderiam ter enriquecido o património pantracuélico fajãgrandense…
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O CARRO DE BOIS
Os carros de bois ficarão para sempre intimamente ligados à história, à vida e aos costumes da população da mais ocidental freguesia açoriana, uma vez que na primeira metade do século passado, na Fajã Grande eram utilizados, frequentemente, como meio de transporte, sobretudo dos produtos agrícolas e afins. Isto porque, por um lado os animais bovinos foram sempre uma presença constante na vida económica daquela freguesia e, por outro, porque algumas terras ficavam muito distantes de casa e, além disso, por vezes a quantidade dos produtos a transportar era grande, como era o caso do milho, do sargaço, do estrume, dos fetos e até da lenha, por alturas da matança do porco.
Assim o carro de bois que substituiu o velho corsão feito de paus e a arrastar-se pelo chão, foi muito utilizado na Fajã Grande para transportar toda a espécie de carga e por vezes até pessoas, especialmente as que vinham esperar romeiros até à Eira da Cuada ou à Ribeira Grande. As crianças adoravam andar nos carros de bois sobretudo quando estes iam vazios. Estes carros, além disso, também eram muito utilizados para transportar para as Lajes e para os Terreiros a mercadoria que o Carvalho trazia sempre que fazia serviço no Porto da Fajã Grande. E não era pouca!
Mas era sobretudo por alturas de apanha do milho ou de carregamento do sargaço que o carro de bois era mais utilizado. Nestes dias a freguesia amanhecia e quase adormecia ao som agonizante que saía dos queicões de madeira apertados com potentes parafusos de ferro, pois os carros circulavam por ruas e vielas numa azáfama contínua, com as sebes bem acaculadas de maçarocas de milho. Depois paravam em frente às casas dos donos, despejando os carregamentos. No caso do sargaço este era levado do Lago, no Rolo, para os campos, deixando no ar um perfume quente e amarelado. De seguida voltavam às terras ou ao Lago, a encher-se mais uma, duas vezes ou as necessárias para carrear todo o milho ou todo o sargaço. Não era raro ver uma criança escarrapachada bem lá no alto em cima do carro de milho! Assim carregadinho, o carro como que cantava num monótono “nhemnhem” que se misturava com as campainhas das rezes que caminhavam à frente, puxando pacientemente o veículo sob as ordens da aguilhada do dono. Quando a carga era muito pesada, juntava-se uma segunda junto de bois, presa às solas.
Antes do automóvel o carro de bois era o único meio de transporte a circular na freguesia sobre rodas. Havia também. Embora em menor escala, carros de ovelha, os quais eram uma espécie de miniatura dos carros de bois.
Embora chamados carros de bois estes carros eram a maioria das vezes puxados por vacas, geralmente por uma junta de rezes, embora houvesse alguns carros de canguinha atrelado apenas a um animal. Num caso e noutro eram atracados às cangas de madeira e estas enfiadas no pescoço de cada rês por dois canzis também de madeira e presos um ao outro pela brocha de couro. O tamoeiro, com a ajuda duma chavelha, prendia o cabeçalho do carro à canga. Para tanger e conduzir os animais era usada uma aguilhada, ou seja uma vara comprida, tendo na ponta um aguilhão. Nas juntas, os bois ou as vacas ainda eram presos pelos chifres com uma ataca, também ela de couro que prendia nas ponteiras.
O carro de bois era composto por três peças principais: rodas, eixo e o tampo. As rodas eram formadas por um meião e duas meias-lua, abertas de acordo com o veio da madeira. As rodas, ladeadas por um arco de ferro, eram ligadas pelo eixo encaixado em cada uma delas e preso com grampões de ferro. Há no eixo, no local onde se apoiarão o queicão e as chumaceiras, uma pequena escavação para encaixe destes. O tampo era atravessado pelo cabeçalho no extremo do qual se prendiam tábuas que formavam uma espécie de mesa, por vezes até usada para matar e chamuscar o porco. Nos lados, havia buracos simétricos e equidistantes para neles se enfiarem os fueiros que prendiam a ceira ou seguravam a carga quando aquela não era utilizada, dependendo do tipo de carregamento. Na ponta do cabeçalho havia um ou dois buracos para enfiar a chavelha e prendê-lo à canga. A existência de dois buracos no cabeçalho destinava-se a adaptar o carro a rezes maiores ou menores.
Carro de bois, um dos mais primitivos e simples meios de transporte, que ficará para sempre na memória de quantos o utilizaram e, sobretudo, de quantos, em criança, se sentaram, alegremente, em cima dos seus carregamentos e de lá de cima nunca caíram
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O AMARGO LAMENTO DUMA ÁRVORE QUE NÃO DÁ FRUTOS
Tu que me plantaste aqui,
na esperança que eu desse frutos…
Tu que decidiste o meu destino,
plantando-me nesta encosta desconexa,
sem outras arvores ao redor
e sem pássaros de asas azuis…
Tu que chegaste ao cúmulo
de me abandonares neste deserto insípido,
onde as sombras me envolvem
e as manhãs de ventura nunca retornam…
Colhe, agora, apenas, o amargo sabor das minhas folhas
e ergue uma taça de nicotina
em memória dos meus frutos fenecidos.
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VIAJAR PARA OS AÇORES
A TAP convida a viajar para os Açores nestes termos:
“Descubra as belas e diversificadas ilhas dos Açores com a TAP Air Portugal. Paisagens vulcânicas, lugares de grande beleza natural, fauna e flora variadas, delicioso marisco, desportos aquáticos, praias encantadoras, edifícios históricos e locais de interesse cultural são apenas algumas das razões para uma visita. Com voos diretos para várias ilhas fabulosas, poderá desfrutar realmente do melhor que este arquipélago tem para oferecer.
Horta (HOR) – fica na Ilha do Faial e neste local pode maravilhar-se com as paisagens da Marina da Horta, experimentar os hábitos locais da Praia do Almoxarife, desfrutar de momentos à beira mar ou marcar uma viagem para observar baleias e golfinhos.
Ilha do Pico (PIX) – é uma ilha dominada por um vulcão enorme. Faça uma caminhada e conquiste a imponente Montanha do Pico. Descontraia nas praias, tente avistar baleias e golfinhos no oceano e faça um tour para saborear os vinhos da região.
Ponta Delgada (PDL) – paisagens montanhosas, adegas tentadoras e costas encantadoras fazem com que a vibrante Ponta Delgada seja um destino cada vez mais popular. Os locais a não perder incluem as Lagoas Empadadas, um local de eleição para os amantes da natureza, assim como as Portas da Cidade.
Ilha do Santa Maria (SMA) – visite a freguesia de Anjos, o primeiro local onde desembarcou Cristóvão Colombo depois da sua viagem épica às Américas. Admire as paisagens nos vários miradouros. Delicie-se com praias divinais. E explore as aldeias singulares.
Ilha de Sao Jorge (SJZ) – uma verdadeira joia para quem gosta de atividades ao ar livre; quedas de água, trilhos para caminhadas e paisagens magníficas atraem muitos visitantes. E é também importante não esquecer a longa História desta ilha.
Terceira (TER) – também conhecida como Ilha Lilás, tem atrações como a gruta do Algar do Carvão e o Museu de Angra do Heroísmo.
Corvo (CVU) – A Ilha do Corvo é a mais pequena dos Açores. É imperdível para quem gosta de História e para os entusiastas da observação de pássaros.
Ilha de Flores (FLW) – é conhecida pelas suas lagoas vulcânicas, escarpas acentuadas e por uma História de vários séculos; ficará maravilhado com a Rocha dos Bordões, poderá relaxar junto à Lagoa Comprida e desfrutar da costa.
Graciosa (GRW) – é a ilha situada mais a norte na zona central dos Açores e é também conhecida como a Ilha Branca. Poderá praticar desportos aquáticos, pescar ou visitar edifícios históricos espalhados por esta ilha de origem vulcânica.
Marque hoje o seu voo para os Açores e tenha umas férias divertidas e inesquecíveis.”
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A CANADA DA RIBEIRA DAS CASAS/MIMOIO
O Mimoio era um dos mais belos e mais produtivos lugares da Fajã Grande. Lugar de grandes cerrados para milho, trevo e erva-da-casta, onde se amarrava o gado à cordada, sítio de excelentes belgas para o cultivo da batata-doce e de uma outra relva de muito boa qualidade de erva. Paraíso de beleza excêntrica, celeiro privilegiado, recanto de quietude. Situado num amplo planalto, a encosta que o projetava sobre toda a zona da Tronqueira era fértil em canas, espadanas, faiais, sanguinhos e uma ou outra babosa. Mas o diabo eram os acessos. Pese embora houvesse três trilhos de acesso ao Mimoio, qualquer um deles era pior do que o outro. O primeiro e o mais usado era o que se fazia através duma canada, conhecida por Canada do Mimoio e que tinha o seu início na Fontinha, junto ao palheiro da porta sempre aberta, de Tio José Teodósio. O segundo acesso ao Mimoio e, curiosamente, o mais alcantilado e escabroso, era o da Canada do Calhau Miúdo, a qual se chamava assim por se iniciar no lugar como mesmo nome, ou seja no Calhau Miúdo. Finalmente um terceiro acesso ao Mimoio era efetuado por uma outra canada que se iniciava na Ribeira das Casas e se prolongava até ao centro do Mimoio. Como esta canada era menos perigosa e menos íngreme do que a primeira, era por aqui que transitava o gado com destino às relvas e às terras do Mimoio.
A canada iniciava-se precisamente na Ribeira das Casas, num largo onde havia um num largo que se servia de descansadouro para os homens que vinha carregados das Covas, do Vale do Linho, do Rego do Burro e de muitos outros lugares ara além daquela ribeira e que dava para a Ribeira de Cima. Logo acima voltava-se à direita. A canada ladeava algumas relvas e terras de cultivo ladeada por grossas paredes até se cruzar, já no alto da ledeia com a canada que vinha da Fontinha. Por este trajeto que incluía as duas canadas transitavam muitas pessoas sobretudo da Fontinha e da Assomada não apenas quando se deslocavam para aquelas terras mas também quem ia à Ponta e assim encurtava o caminho.
A Canada da Ribeira das Casas era a menos perigosa de quantas davam acesso ao Mimoio e por isso era utilizada como via de acesso sobretudo para os animais.
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JOÃO E ANGELINA
Tarde de Inverno! Na aba de uma parede da Silveirinha, a abrigaram-se da chuva e a protegeram-se das intempéries. Ela exausta de carregar um cesto de inhames da Alagoinha, ele vergado ao peso de um enorme molho de lenha do Pocestinho. A chuva, cada vez mais intensa, opunha-se ferozmente à pertinente resistência da aba e começava a penetrar-lhe nos corpos, misturando-se com suores e canseiras. Encolheram-se mais, aconchegaram-se em demasia junto à parede e os seus corpos, tolhidos pela chuva e encharcados de inocência, tocaram-se, ao de leve. Ela mais nova, mais tímida, mais triste, mais dolente, mais silenciosa, mais embaraçada e menos requintada de desejos. Ele mais velho, mais ousado, mais afoito, mais conversador, mais habituado a bailaricos e folias e menos comedido em ousadia. A chuva, agora, caía mais forte, em catadupa e, por mais que se encostassem à parede e por mais que os seus corpos se embrenhassem na aba, não podiam resistir nem à intempérie, nem à troca de afectos. Deram as mãos e estremeceram. Olharam-se de frente e enterneceram-se. E com o cair permanente e cada vez mais intenso da chuva e com um simples acenar de cabeça e com um sorriso do tamanho do mundo, perceberam que tudo começava ali.
Os pais dela rejeitaram, condenaram, intimidaram, proibiram e ameaçaram. As irmãs zombaram, chacotearam, escarneceram e ridicularizaram. Um badameco daqueles, que não tinha onde cair morto, um zé-ninguém com o pai a finar-se, a mãe acamada e com uma irmã tola, um simplório sem sonhos e sem futuro que nem à América aspirava. Que não lhes batesse à porta, o palerma, que havia ouvir das boas. Fosse procurar mulher para junto dos da sua laia. Ela triste, deprimida, magoada, chorosa, sentindo cada vez mais o aperto da sua mão, o calor do seu corpo e a grandiosidade do seu sorrisos. Ele insistiu, nas Águas, nos Lavadouros, na Cabaceira, onde quer que fosse, quer ao sabor refrescante da chuva quer ao calor angustiante das tardes solarengas.
Certo dia, ele, subjugado ao amor e enchendo-se de coragem, entrou-lhe pela porta dentro, disposto a pedi-la. Enxovalharam-no, tentaram afugentá-lo, pediram-lhe que desistisse, exigiram que a deixasse em paz. Ele emudeceu mas ela ressurgiu, revoltou-se, interpôs-se e declarou, sem rodeios, a sua vontade. Era ele o seu eleito e dele não havia de desistir. Que se não a deixassem concretizar os seus sonhos havia de fugir. Encolheram os ombros… Que fugisse! Era lá com ela.
Não fugiu ela mas fugiram eles! Uma boda sem bodo, um vestido branco sem folhos e um dia sem festa e sem folia! Apenas uma flor de laranjeira porque isso, sabiam que ela merecia. Mas ele que não lhes entrasse mais pela porta dentro.
João amou Angelina apenas durante catorze anos, porque quis o destino que ela partisse. E ele ficou à espera de também, em breve, ir ao seu encontro.
Destinos cruéis. Traços rasgados a sangue em horizontes perdidos. Sulcos de dor tracejados em sonhos desfeitos. Efémero amanhecer onde a certeza se confunde com a impertinência angustiante de um sofrimento perene.
João e Angelina escreveram, com pinceladas de sofrimento um amargo poema de amor que até as gotas da chuva caídas, naquela tarde de Inverno, sob a aba de uma parede da Silveirinha, não compreenderam ou não quiseram compreender.
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PASSARÁS PASSARÁS
Sem que o grupo de crianças participantes da brincadeira saiba, duas crianças escolhem aleatoriamente dois nomes – podem ser de frutas, flores, animais, etc. – e cada uma guarda o nome escolhido. De seguida todas as crianças se posicionavam em pé, uma de frente para a outra e, de mãos dadas, formam um arco. O grupo de participantes formava uma fila encabeçada por uma criança maior ou mais esperta que representava uma espécie de chefe ou mãe de todas elas. Esta criança puxava a fila e passava por baixo do arco, cantando:
- Passarás, passarás, algum deles há de ficar. Se não for o da frente, deve ser o de detrás.
A última criança da fila fica “presa” entre os braços do “arco” e devia responder à pergunta:
- Queres prefere uva ou maçã? (por exemplo).
A opção escolhida levava a criança a ficar atrás daquela que guardara aquele nome. A brincadeira mantém esta sequência até o último participante ficar “preso” e escolher a fruta. Ganha a criança que tiver maior número de participantes na sua fila.
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UMA MADRUGADA INFERNAL
A noite embora permanecendo escura e fria, aproximava-se da madrugada. Aqueles trovões secos, terríveis e temíveis, que a todos assustava e horrorizava, agora eram mais espaçosos e sobretudo bem mais fracos. José Pereira de Azevedo, cuidando que o pior já passara e temendo que o frio da noite lhe engelhasse o filho, decidiu regressar a casa, com a mulher e o pequeno António. Era outro conforto, embora a segurança fosse quase nula. A mulher, inicialmente, manifestou determinada recusa, mas por fim cedeu. Não havia de ficar sozinha, ali ao relento, e o marido em casa com o filho. Foi sobretudo o argumento, teimosamente sustentado pelo marido de que o frio da noite iria fazer muito mal ao pequeno, que a demoveu da sua persistente teimosia. Regressaram os três a casa. Primeiro adormeceu o menino e, algum tempo depois, de tão cansado que estava, o pai. Madalena de São João, nervosa e temendo o pior, manteve-se acordada.
Não tardou muito! Seriam umas seis horas da madrugada, quando José Pereira de Azevedo, pese embora tivesse adormecido poucos momentos antes, acordou sobressaltado com um enorme, terrível e monumental estrondo. Ao seu lado a mulher, que, antes, na velha enxerga de pragana se havia voltado e revirado, vezes sem conta, sem pregar olho, contara bem, muito bem. Dezasseis vezes! Dezasseis vezes durante aquela madrugada infernal, a terra tremera em horrendos abalos, seguidos de grandes estrondos. O último, porém, aquele que acordara o marido, já quase madrugada, fora o maior, o mais horroroso, o mais tremendo, o mais demolidor. Parecia que a casa, a montanha, o mundo lhes desabava em cima.
Há noites e noites, que era aquele martírio sobressaltado, aquele susto contínuo, aquela maldição permanente. Quase não pregavam olho e se adormeciam, era como um passar por brasas, para logo acordar com um estrondo maior do que o anterior. O pequeno casebre de pedra negra e solta dos Azevedos, só por milagre do Divino Espírito Santo ainda lhes não caíra em cima. Em muitas casas da freguesia, algumas mesmo ali, ao lado, já não havia pedra sobre pedra.
Tresloucada e aos gritos, antecipando-se ao marido, Madalena saltou da velha enxerga num ápice e agarrou-se ao corpo do pequeno António, que dormia, ali ao lado sobre um tapete de palha, enrolado em grossos cobertores de lã, como que a impedir que as pedras que rolavam das paredes vacilantes caíssem sobre o filho. Depois agarrando-se e amparando-se ao marido, com o garoto muito embrulhado e muito aconchegado ao seio, saíram, os três, atónitos, assustados, porta fora.
Ainda não amanhecera por completo mas a madrugada, apesar de escura, parecia clarear com as revoadas dos trovões secos e com os estrondos sucessivos e aterradores, vindos das encostas da montanha. Atónita, apavorada e entontecida com o ribombar daqueles trovões secos, toda a população, temendo o pior, saíra para o relento da madrugada. Dos casebres ao redor, novos e velhos, homens e mulheres gritavam em alto berreiro, confusos e apreensivos, tentando encontrar um outro familiar que havia permanecido no interior dos velhos casebres.
De repente e por entre o escuro da madrugada e o cada vez mais aterrador ribombar dos ruídos, uma enorme clarão. Começava, lá no alto, entre a montanha quase invisível e o firmamento adormecido, um fogo terrível, vermelho, assustador que se escoava como se fosse um rio, na direcção das casas, dos campos, das hortas, das vinhas e do mar. Um verdadeiro inferno! Parecia que o mundo acabava naquele momento, ali sem salvação ou redenção possíveis para ninguém. O terror era geral e o pânico indomável. Cada qual procurava, sem proveito, os seus familiares.
A manhã até parecia que se clarificava com aquele fogo estranho e pavoroso, por entre um alvoroço louco e imaginável. O fogo descia cada vez com mais veemência, pelas encostas sobranceiras ao povoado, na direcção do mar e começava a atingir os casebres mais pobres mais pequenos, construídos no sopé da montanha, do lado das Bandeiras. O povo aos gritos, aos sobressaltos, aos berros corria sem fazer coisa nenhuma, tentando procurar os familiares desaparecidos. Era um alvoroço tresloucado, uma gritaria inaudita, um desassossego nunca visto. Parecia que a abóboda celeste se havia transformado numa enorme bola de fogo que caía sobre a ilha, aniquilando-a e destruindo-a por completo.
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UMA NOITE DE TERROR
José Pereira de Azevedo deitou a mão à taramela da porta de casa já noite escura. Na cozinha, mais atónita do que atarefada, a mulher segurava, no regaço, o pequeno António, num berreiro aflitivo, angustiante e pouco habitual. No lar, entre duas pedras toscas, fumegava um lume frouxo, a definhar-se de instante a instante e como que a deixar a cozinha envolta em penumbra. Sobre o lume, um caldeirão de ferro negro e tisnado, prestes a suspender a cozedura.
Deste há muito que Madalena de São João, numa aflitiva agonia, desistira de atiçar o brasido com uma acha ou sequer com um garrancho. Aguardava com uma ansiedade desmesurada e uma aflição desmedia a chegada do marido. Por isso, mal ouviu o barulho do levantar da taramela da porta da cozinha, que dava para um pequeno pátio exterior, agarrou ainda mais o filho, apertou-o ao peito com maior intensidade e veio postar-se frente à porta, ao mesmo tempo que o marido a abria:
- Credo, homem! Que te demoraste tanto! E eu aqui, numa aflição tão grande! Numa agonia por ele, por mim e por ti! Ainda há pouco, tudo voltou a tremer! Sentiste? Parecia que a casa vinha abaixo… E eu aqui… Sozinha, com ele ao colo… Cheia de medo, sem saber onde me esconder, para o proteger! Agarrei-o, debrucei-me sobre ele! Se a casa desabasse, se estas paredes caíssem eu havia de o proteger e o Senhor Espírito Santo havia de fazer o milagre de salvar o nosso menino.
José arrumou num canto da cozinha o alvião e o foicinho que trazia ao ombro, limpou as mãos num pano amarelado, suspenso da borda de um lava mãos de ferro, arrumado junto do lar, pegou no filho ao colo e abraçou-se a ela, na tentativa de a acalmar. Talvez a sua presença transmitisse tranquilidade ao filho e permitisse à mulher recuperar o ânimo perdido.
Na realidade, Madalena de São João, sentindo a presença reconfortante do marido, calou-se, por uns minutos. Também o menino, vendo ali o pai e, sentindo os seus braços a envolver-lhe o corpito, pareceu aquietar-se um pouco. José sabia que todas as palavras que proferisse naquele momento seriam uma farsa em que ela não acreditaria, mas arriscou:
- Também não foi tanto assim, mulher. Foi grande, foi um grande abalo de terra, é verdade, mas os da semana passada foram bem maiores. – E sentindo que a mulher ia acalmando enquanto o ouvia, acrescentou com mais convicção: - Deus teve piedade de nós. Protegeu-nos e protegeu a nossa casa. Cuidei que isto já tinha acalmado… E há-de acalmar, Deus é pai de misericórdia - e com gestos de carinho e blandícia tentava distrair o pequeno António que, de imediato, estendeu os bracitos vacilantes na direcção da mãe, a querer, também, encavalitar-se no colo dela.
A arfar cansaço e suor, José, aconchegando a si o pequeno, sentou-se num banco, junto ao lar. O lume que a mulher agora se entretinha a reanimar, iluminava-lhe o rosto tisnado de sol, que o filho fixava com ternura.
De repente, um outro abalo, mais forte, mais vertiginoso, mais abrupto, mais terrível, mais apavorante e mais ameaçador do que todos os que durante aquele anoitecer, até então se haviam feito sentir. Seguiu-se um forte estrondo, que acometeu com enorme violência o velho casebre. Madalena expeliu um grito de horror, de aflição e de angústia, ao mesmo tempo que invocava a protecção divina. José, procurando manter uma calma que não tinha, tentava, sem proveito, proteger com o seu, o corpo do filho. Fora um abalo fortíssimo e demorara uma eternidade. Algumas das frágeis paredes do velho casebre começavam a ruir. José Pereira de Azevedo, aconchegando mais o pequeno ao colo, deitou o braço sobre os ombros da mulher e, empurrando-a, à sua frente, saiu de casa, numa correria louca e numa aflição inexaurível.
Na realidade, desde há alguns dias que abalos muito fortes, tremores de terra assustadores, estrondos tão espantosos que pareciam trovões secos, se haviam feito sentir, não apenas, em Santa Luzia, mas também ali ao lado, nas Bandeiras e em muitos outros lugares e freguesias do Pico. Uma tragédia terrível que atormentava e punha em alvoroço as populações. Muitas pessoas já pernoitavam na rua, algumas casas já haviam ruído quase por completo. O medo e o terror haviam-se apoderado de todos.
Aquela noite porém estava a ser a mais trágica, a mais sinistra e a mais desoladora. Uma noite de terror permanente! A pior de sempre! Já iam em mais de meia-dúzia o número de abalos sentidos, desde o anoitecer. Alguns com uma intensidade fortíssima e uma duração prolongada e assustadora.
As ruelas circundantes ao casebre de José Pereira de Azevedo, ao lado da pequena ermida de Santa Luzia, embora fosse Inverno e a noite estivesse muito fria e escura, estavam cheias de gente, de medos, de desânimos, de preces e de súplicas ao Altíssimo. A aflição, o medo, a angústia, o desespero apoderavam-se de todos. Amparando-se e confortando-se uns aos outros, novos e velhos, homens e mulheres, jovens e crianças, numa prece comunitária, imploravam a misericórdia e a compaixão divinas, pediam, publicamente, perdão pelos seus pecados, ao mesmo tempo que se iam enrolando com cobertores de lã, a fim de se protegerem do frio.
Há noites e noites que era aquele martírio sobressaltado, aquele susto contínuo, aquela maldição permanente! Tudo havia começado quase no início do ano e já íamos a seis de Fevereiro. Toda a população vivia num enorme angústia. Todos estavam apavorados e cheios de medo. Quase não pregavam olho, durante a noite, e se adormeciam, era com um passar por brasas, para, logo a seguir, acordarem com um estrondo maior do que o anterior. A pequena casa de José Pereira de Azevedo e os outros casebres de pedra negra e solta, espalhados por aqui e por acolá, ao redor da pequenina ermida, só por milagre do Divino Espírito Santo ainda não haviam ruído por completo.
Estávamos nos primórdios do século XVIII, mais concretamente no início de Fevereiro do ano de 1718 e não apenas a freguesia de Santa Luzia mas quase toda a ilha do Pico vivia num medo e numa angústia permanente desde há algumas semanas assoladas por abalos de terra, constantes, permanentes, pavorosos e aterradores.
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O PINHACRE DAS COVAS
Encafuado no meio das Covas, situado lá para os lados da Ponta, junto à Rocha do Vime, o lugar do Pinhacre das Covas era, como aquele em que se encastoava, um dos mais diversificados da Fajã Grande, porquanto nele existiam os quase todos os tipos de propriedade em que o amplo terreno da Fajã Grande, no século passado, estava coberto ou subdividido. De facto ali, como nas Covas existiam terras de mato, terras da rocha, pastagens e uma ou outra terra de cultivo, estas paredes meias com a Ribeira das Casas e com o Vale do Linho. Mas a grande especificidade das Covas era o facto de parte de a quase totalidade da sua área ocupar uma parte da rocha, até ao cimo, prolongando-se quase até às relvas do mato. Tratava-se, no entanto, de uma área quase inculta, alguma só composta por gigantescas vergas de pedra, revestidas de musgo, pelo que grande parte da mesma era terreno de ninguém, uma vez que aí a rocha era muito íngreme e não possuía nenhuma vereda ou caminho de acesso.
A outra pequena parte da área do Pinhacre das Covas assemelhava-se a uma enorme ribanceira ali caída há centenas de anos e situava-se em terreno plano, integrando uma pequena parte da ampla fajã desde a Ribeira Grande até ao Risco. Junto à rocha ficavam as terras de mato, pobres e perigosas, onde floresciam apenas incensos e faias. O chão era pejado de fetos, cana roca e erva-santa. Não existiam árvores de fruto, pelo que dali se extraía apenas lenha e comida para o gado. Os fetos eram ceifados e postos a secar a fim de serem utilizados como cama para o gado nos palheiros. A cana roca, dadas as dificuldades em carreá-la era cortada e ficava por ali a apodrecer, sem utilidade nenhuma.
O Pinhacre ficava encastoado nas Covas que, por sua vez configurava a norte com o lugar do Vime e com a Rocha do mesmo nome, a oeste com o Vale do Linho e o Rego do Burro, a sul com a Ribeira das Casas, enquanto a leste era protegido pela rocha, até lá ao alto onde existiam as relvas da Caldeirinha e do Bracéu. O lugar era atravessado de sul a norte por um dos mais antigos e importantes caminhos da freguesia que ligava a Fajã à Ponta, sendo quase todo ele no espaço do território das Covas constituído por uma lendária ladeira que descia da Ponta para a Fajã conhecida por Ladeira das Covas. Várias lendas existiam sobre a mesma com destaque para a da Mulher com Pés de Cabra. Foi também naqueles descampados que durante muitos meses se ouviram gritos agonizantes que, até serem desvendados, assustaram muitas pessoas da Fajã e da Ponta que por ali passavam.
O topónimo Covas, muito comum nos Açores, terá a ver naturalmente com o facto de por ali terem existido algumas covas ou de uma parte da morfologia do terreno formar uma espécie de cova gigante. Quanto a Pinhacre muito provavelmente será uma corruptela de pingo acre, o que poderia ser uma referência a que os pingos da chuva ou os respingos de água da Ribeira das Casas, trazidos pelo vento sueste fossem bastante incómodos.