PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O CARRO DE BOIS
Os carros de bois ficarão para sempre intimamente ligados à história, à vida e aos costumes da população da mais ocidental freguesia açoriana, uma vez que na primeira metade do século passado, na Fajã Grande eram utilizados, frequentemente, como meio de transporte, sobretudo dos produtos agrícolas e afins. Isto porque, por um lado os animais bovinos foram sempre uma presença constante na vida económica daquela freguesia e, por outro, porque algumas terras ficavam muito distantes de casa e, além disso, por vezes a quantidade dos produtos a transportar era grande, como era o caso do milho, do sargaço, do estrume, dos fetos e até da lenha, por alturas da matança do porco.
Assim o carro de bois que substituiu o velho corsão feito de paus e a arrastar-se pelo chão, foi muito utilizado na Fajã Grande para transportar toda a espécie de carga e por vezes até pessoas, especialmente as que vinham esperar romeiros até à Eira da Cuada ou à Ribeira Grande. As crianças adoravam andar nos carros de bois sobretudo quando estes iam vazios. Estes carros, além disso, também eram muito utilizados para transportar para as Lajes e para os Terreiros a mercadoria que o Carvalho trazia sempre que fazia serviço no Porto da Fajã Grande. E não era pouca!
Mas era sobretudo por alturas de apanha do milho ou de carregamento do sargaço que o carro de bois era mais utilizado. Nestes dias a freguesia amanhecia e quase adormecia ao som agonizante que saía dos queicões de madeira apertados com potentes parafusos de ferro, pois os carros circulavam por ruas e vielas numa azáfama contínua, com as sebes bem acaculadas de maçarocas de milho. Depois paravam em frente às casas dos donos, despejando os carregamentos. No caso do sargaço este era levado do Lago, no Rolo, para os campos, deixando no ar um perfume quente e amarelado. De seguida voltavam às terras ou ao Lago, a encher-se mais uma, duas vezes ou as necessárias para carrear todo o milho ou todo o sargaço. Não era raro ver uma criança escarrapachada bem lá no alto em cima do carro de milho! Assim carregadinho, o carro como que cantava num monótono “nhemnhem” que se misturava com as campainhas das rezes que caminhavam à frente, puxando pacientemente o veículo sob as ordens da aguilhada do dono. Quando a carga era muito pesada, juntava-se uma segunda junto de bois, presa às solas.
Antes do automóvel o carro de bois era o único meio de transporte a circular na freguesia sobre rodas. Havia também. Embora em menor escala, carros de ovelha, os quais eram uma espécie de miniatura dos carros de bois.
Embora chamados carros de bois estes carros eram a maioria das vezes puxados por vacas, geralmente por uma junta de rezes, embora houvesse alguns carros de canguinha atrelado apenas a um animal. Num caso e noutro eram atracados às cangas de madeira e estas enfiadas no pescoço de cada rês por dois canzis também de madeira e presos um ao outro pela brocha de couro. O tamoeiro, com a ajuda duma chavelha, prendia o cabeçalho do carro à canga. Para tanger e conduzir os animais era usada uma aguilhada, ou seja uma vara comprida, tendo na ponta um aguilhão. Nas juntas, os bois ou as vacas ainda eram presos pelos chifres com uma ataca, também ela de couro que prendia nas ponteiras.
O carro de bois era composto por três peças principais: rodas, eixo e o tampo. As rodas eram formadas por um meião e duas meias-lua, abertas de acordo com o veio da madeira. As rodas, ladeadas por um arco de ferro, eram ligadas pelo eixo encaixado em cada uma delas e preso com grampões de ferro. Há no eixo, no local onde se apoiarão o queicão e as chumaceiras, uma pequena escavação para encaixe destes. O tampo era atravessado pelo cabeçalho no extremo do qual se prendiam tábuas que formavam uma espécie de mesa, por vezes até usada para matar e chamuscar o porco. Nos lados, havia buracos simétricos e equidistantes para neles se enfiarem os fueiros que prendiam a ceira ou seguravam a carga quando aquela não era utilizada, dependendo do tipo de carregamento. Na ponta do cabeçalho havia um ou dois buracos para enfiar a chavelha e prendê-lo à canga. A existência de dois buracos no cabeçalho destinava-se a adaptar o carro a rezes maiores ou menores.
Carro de bois, um dos mais primitivos e simples meios de transporte, que ficará para sempre na memória de quantos o utilizaram e, sobretudo, de quantos, em criança, se sentaram, alegremente, em cima dos seus carregamentos e de lá de cima nunca caíram