PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MARÉ CHEIA
Era uma tarde de calor sufocante, arreliador. Imperava um silêncio demolidor, aniquilante. Pelas ruas quase desertas corriam ecos petrificados das sombras que, na véspera, haviam domado todos os destinos. No ar pairava um perfume azulado e, por entre as vidraças das janelas semicerradas, olhos ávidos espreitavam o restolho da bruma que envolvera a madrugada. As casas, humildemente plantadas sobre o perfume da lava, tinham portas e janelas cerradas e nenhum automóvel espelhava o brilho entontecido do sol. Ainda era cedo, mas era verão e o dia estava muito claro.
Buliçoso estarrecer que se envolve em emoções edificadas sobre castelos de vento. Mas de repente um enorme clarão surgiu de oeste desfazendo todas ansiedades, desobstruindo todos os caminhos, desmistificando toda a escuridão. Era a destruição radical e definitiva do silêncio, das sombras, das incertezas e dos sonhos perdidos.
O único caminho aberto era mar e por isso, o único percurso imposto, a percorrer em loucura desusada, era o mar. Só o mar, pois era o mar que embalava a sublimidade, que acariciava a beleza, que aconchegava a transcendentalidade.
Sobre a rocha negra do baixio, num rasgo de cimento ali plantado, um raio de sol espelhado em silêncio, entregava-se à contemplação. As formas desenhadas pelas sombras circundantes entonteciam e provocavam dulcificados espasmos nas gaivotas.
E o mais estranho de tudo é que a maré estava cheia.