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REPROVE-ME

Sexta-feira, 23.02.18

Educadíssimo, entrava na sala esquivando-se a atropelos e empurrões, não se emaranhava em confusões nem em barafundas, alienava-se a berreiros e algazarras e agarrava-se à delicadeza e às boas maneiras como se fossem apanágio das suas atitudes e do seu comportamento. Depois sentava-se como que amordaçado na sua cadeira, abria com acentuado esmero e desmedida pachorra a mochila que carregava a tiracolo e ia colocando, arrumadamente, sobre a mesa, à sua frente, livros, cadernos, canetas, enfim, tudo o que fosse indispensável ao trabalho de aluno aplicado.

Os outros num alvoroço excessivo, numa atribulação gritante e numa algazarra desmedida, embebidos na ânsia de que quanto mais curta fosse a aula melhor. Ele, o Bruno, a desejar lá bem no seu íntimo, que se calassem, que se sentassem, que ouvissem o mestre e os seus ensinamentos.

Por fim, açulados com os apelos do professor, os outros lá se iam calando, acomodando, deixando que a aula se iniciasse. E a aula começava, com os outros a perguntar, a questionar, a interromper e, por vezes, a alienarem-se e a distraírem-se. Ele, o Bruno, sempre calado, sempre atento, sempre a observar o que se passava dentro da sala, apenas a responder, adequada e correctamente, quando interrogado. Mas nas fichas e nos trabalhos de avaliação os outros a empenharem-se, a elaborar respostas correctas e a conseguir resultados positivos. Ele, o Bruno, a desmazelar-se, a elaborar, como que de propósito, respostas erradas e a obter resultados negativos.

Nas reuniões dos conselhos de turma os professores, admirados e pasmados, sem entender o que se passava, indignavam-se, constrangiam-se, interrogavam-se, elaboravam planos de recuperação e comprometiam-se a desvendar o enigma. A directora de turma já chamara a mãe à escola, mas a senhora ainda se admirara mais do que ela com o incompreensível e estranho comportamento do filho. Mas prometeu que ele havia de mudar. Mas não mudou. Pelo contrário, quanto mais revelava ser um aluno de comportamento exemplar e de uma boa capacidade de aprendizagem, menos se empenhava nos trabalhos de avaliação.

Tão estranho comportamento levou-me a pensar que ali havia embuste e eu, um dos professores, havia de o descobrir, custasse o que custasse.

 Certo dia, já perto do fim do ano, aproximei-me dele e de rompante, atirei-lhe:

- Sabes uma coisa? Mesmo com todas as negativas que tiveste nos testes, eu vou passar-te de ano.

Foi como se o céu lhe desabasse em cima. Voltou-se para mim com os olhos rasos de lágrimas e começou a implorar-me:

- Professor, não, não faça isso, reprove-me, reprove-me por favor.

Era o que faltava! Havia de passá-lo e até com um quatro ou com um cinco. E ele, o Bruno, cada vez mais lavado em lágrimas, mais indignado, mais revoltado, mais desesperado, a implorar com maior insistência;

- Reprove.me, professor. Reprove-me.

Coloquei-lhe o braço por cima do ombro, pedi-lhe que enxugasse as lágrimas e disse-lhe com alguma serenidade:

- Está bem. Vou fazer-te a vontade. Vou reprovar-te, mas com uma condição. Concordas?

- E qual é a condição, setor? – Perguntou apreensivo.

Respondi-lhe:

- Só te reprovo se tu me explicares porque é que queres que te reprove.

Calou-se por uns momentos e ficou pensativo por mais alguns. Depois olhou-me com uns olhos cheios de verdade e um rosto expectante de ternura e explicou. Explicou que os pais eram muito pobres e que precisavam dele para trabalhar. Explicou que se passasse de ano o pai não o deixava ir para o terceiro ciclo e havia de ir trabalhar… trabalhar que nem um escravo… Além disso, em casa passava fome e ali, na escola tinha almoço do bom e do melhor e com o pratinho sempre cheio. Que o deixasse ficar ali, na escola, pelo menos mais um ano, sem ir trabalhar e a ter comidinha boa e em quantidade.

E como mais uma vez me pedisse que o reprovasse, reprovei-o mesmo, eu e alguns dos outros professores.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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