PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
FRANCISCO PUREZA E O DESASTRE DO CORVO
Francisco Pureza Greves nasceu na Fajã Grande, mais concretamente na Assomada, a 31 de Outubro de 1929 e era filho do Ti José Pureza. Passou a sua infância na terra natal, a qual, no entanto, abandonou no dia 31 de Dezembro de 1949, a bordo do Carvalho Araújo, a fim de assentar praça na armada em Lisboa. Serviu a marinha portuguesa durante 37 anos, após os quais se reformou, seguindo a carreira de radarista da armada. Durante estes anos de atividade marítima e naval, navegou no navio Escola Sagres e em muitos outros, incluindo o navio Afonso de Albuquerque, acompanhado o general Craveiro Lopes, então Presidente da República na sua visita a Angola. Também fez comissões de serviço em várias regiões do país, incluindo os nos Açores. Durante a sua carreira, raramente tinha possibilidades de visitar a Fajã. Apenas depois de se reformar, como sargento da armada, a visitou demoradamente.
Francisco Pureza foi um dos trinta e nove tripulantes da lancha Senhora das Vitórias que na fatídica noite de 13 de Agosto de 1942 naufragou nos laredos do Corvo, onde perderam a vida dezassete das trinta e nove pessoas que seguiam a bordo.
Recentemente deu uma entrevista à Costa Ocidental TV. Aqui se reproduz uma parte da mesma, no que aquele acidente diz respeito:
Costa Ocidental – Senhor Francisco, nós vamos falar agora de um assunto do qual, atualmente, 90% dos florentinos não conhecem ou nem têm conhecimento. Os corvinos, como é uma terra pequena têm, até porque todos os anos fazem uma homenagem a essas gentes da ilha das Flores, a maior parte delas aqui da Fajã, da Ponta, mas também da Fajãzinha e que faleceram num desastre marítimo que vai fazer ou faz precisamente anos…
Francisco Pureza – Ontem! Dia treze (2017)! Fez precisamente setenta e cinco anos ontem.
CO – Então pronto. Eu vou deixá-lo falar. Se o senhor me conseguir narrar tudo o que lembra dele e tudo o que aconteceu nessa altura ou que lhe contaram, eu ficava muito agradecido.
FP – Bem, eu... ui…ainda ontem chorei e choro todos os anos quando me lembro… Uma dor muito grande! Bem nós saímos daqui, às seis da tarde, numa lancha chamada Francesa, salvo erro. Era um barco de um navio francês que tinha sido tropeado no início da segunda Guerra Mundial. Saímos daqui às seis horas e, por volta das onze da noite, ao chegar à costa do Corvo, a lancha abalroou nuns penedos, porque, segundo constou havia pessoal a apanhar caranguejos para fazerem petiscos lá para a festa e o mestre do barco, sem grande conhecimento do porto, pensou que aquilo era pessoal que estava no porto à espera dos romeiros ou como se diz dos peregrinos e enfiou o barco por ali dentro. O Barco bateu, abanou para o ar… e depois virou… Eu e mais um vizinho meu que faleceu íamos cá atrás ao pé do motor que era mesmo à popa e o barco era todo coberto e aquilo, com a coisa, talvez virou que eu não tenho a mais pequena ideia de como é que saí dali porque eu não fiz nenhum esforço. Na altura tinha doze anos mas já nadava um bocado, mas há um senhor da Ponta que era o João de Freitas que também estava ali e deitou-me a mão. A lancha ficou de quilha para o ar, com a traseira toda debaixo de água. Ele pegou em mim, agarramo-nos a um pantilhão da proa e para ali estivemos, não quero mentir, mas para aí à volta de uma hora ou mais, até que um barco de um indivíduo de Ponta Delgada que era João Medeiros nos apanhou porque a maré já nos ia levando pela ponta da ilha fora. Isto era de noite e era noite escura. Fomos as últimas pessoas a virem com vida para terra, eu e esse senhor João de Freitas. Depois… há umas coisas tristes que talvez não vale a pena falar… que é o médico…
CO – Se o senhor quiser contar vai ficar o registo da testemunha…
FP – Esse médico foi bem conhecido aqui na ilha, que era o doutor… não me lembro agora do nome dele…
CO – Pois eu também não sei. Depois, se o Senhor se lembrar, diz.
FP – Ao chegarmos, no barco, com os corpos, um senhor das Lajes que era o João Tiana, quis fazer uns exercícios… umas coisas para tentar recuperar alguns daqueles corpos e ele não autorizou que ele mexesse neles. O homem estava embriagado e isso nunca me passa da ideia, por isso não deixou que eles fizessem aquelas coisas… com os corpos. E ainda uma outra coisa. É que eu, uma criança de doze anos, faleceu lá a minha irmã, tinha dezassete anos e eu estive ali dias e ele nunca me procurou para saber se eu estava doente, se eu precisava de alguma coisa. Ele não foi à casa onde eu estive para ir ver se eu estava doente ou não estava. Aquilo foi uma mágoa muito grande! Durante muito tempo e ainda hoje me lembro. Eu estava muito nervoso. Aquilo foi muito triste para mim. Ele não fez, nem deixou fazer coisa nenhuma. Mas algumas daquelas pessoas deviam ter sido recuperadas se fizessem umas respirações, etc. E foi assim…
CO – Esse senhor que estava consigo, sobreviveu?
FP – Sim, sim.
CO – Ele era mais velho do que o senhor?
PF – Sim, sim. Ele tinha um filho da minha idade. Era João de Freitas. Era da Ponta, aqui da Fajã Grande. Até tinha a alcunha do Preguiça.
CO – A maior parte dessas pessoas era mesmo daqui da Fajã e Ponta?
FP – Era. A maior parte
CO – A todo eram?
FP – Dezassete pessoas que morreram.
CO – Então iam dezanove pessoas no barco…
FP – Mais…
CO – Mais!? Então iam mais pessoas?
FP – Trinta e nove, salvo erro.
CO – Quer dizer que faleceram essas dezassete e as outras, na altura conseguiram salvar-se.
FP – Sim.
CO – Muito bem! Depois como é que… agora passados estes anos sabe-se que, infelizmente… nem se quer se sabe bem onde estão sepultados no Corvo. Sabe-se que estão ali…
FP – Ali!... Eu passei lá uma vez num navio… eu nunca tive coragem de lá ir. Mas passei uma vez num navio fui lá e disseram-me que era lá num canto…
CO – É! Continua a ser assim. A Câmara Municipal, ainda hoje, não sabe bem onde eles estão. Mas nós vamos fazer essa homenagem, como já lhe disse… que eles bem merecem.
…
CO – E passados muitos anos, eu não tenho a data aqui, mas tenho-a em casa, é que houve um juiz que veio cá em serviço, à ilha, e teve conhecimento desse processo, pegou nesse processo e é que oficializou quer o naufrágio quer as certidões… todas as coisas, porque até esse juiz mexer nisso, esteve no esquecimento.
FP – Tudo, tudo…
CO – Dessas pessoas que iam no barco, o senhor tem conhecimento de ainda haver alguém vivo ou o senhor é dos últimos?
FP – Eu penso que não. Mas não sei. Havia um rapaz da Fajãzinha que era filho de José Velho, era o Álvaro de José Velho, como diziam. Ele era da minha idade. Talvez ainda esteja vivo, As outras eram todas pessoas mais velhas. Era esse rapaz da minha idade e pessoas mais velhas. Portanto, não me parece que exista mais alguém.