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AMARRADAS À ESTACA

Sexta-feira, 23.03.18

As vacas, na Fajã Grande, tinham um papel primordial na economia de cada família, dado que constituíam a sua principal fonte de sobrevivência. Cada agregado familiar, no entanto, possuía apenas uma ou duas vacas. Somente os lavradores mais abastados, e que eram poucos, possuíam três e, muito raramente, quatro. Para além de um excelente e precioso meio auxiliar do trabalho agrícola, as vacas forneciam o leite, elemento fundamental na alimentação quotidiana de então e fonte exclusiva de receita, uma vez que uma boa parte do mesmo era vendida na Cooperativa ou no Martins & Rebelo. Daí que as vacas gozassem de um estatuto especial e de um tratamento cuidadoso e peculiar, não apenas quanto à alimentação, mas até na forma de se apresentarem. Vaca que se prezasse havia de percorrer as ruas da freguesia de manhã e à tarde, limpa, asseada, gorda, de pelo luzidio, de campainha presa ao pescoço com “estrape” de couro ensebado e fivela de latão e com ponteiras de metal nas pontas dos chifres. Uma beleza! Além disso, no Inverno, as vacas eram guardadas cuidadosamente nos palheiros, a fim de serem protegidas dos rigores das noites frias e tormentosas sendo, pela manhã levadas aos pastos, onde ficavam soltas a pastar a erva fresca e tenrinha, até à noite, altura em que eram novamente recolhidas aos palheiros. No Verão invertia-se o esquema: as vacas passavam as noites ao fresco, a pastar nas relvas e durante dia ficavam nos palheiros, protegidas do calor excessivo, da calmaria insuportável e das moscas incomodativas.

Os meses de Março e Abril, porém, constituíam uma alternativa radical a esta rígida transumância. Durante estes meses, as vacas eram “amarradas à estaca” no “outono”.

Nas terras onde habitualmente se verificava o ciclo agrícola do milho, havia um tempo em que os campos ficavam livres daquele cereal. Antes e por entre os milheirais de folhas amareladas e secas, a abarrotar de espigas loirinhas, semeava-se o trevo ou a erva da casta que iam crescendo, crescendo até se tornarem forragens apetitosas, que depois da apanha do milho formavam, com as folhas verdes e as flores vermelhas, azuladas, amarelas e esbranquiçadas, uma variadíssima gama de tapetes multicolores, ondulados pelo vento, ornamentando a freguesia de lés-a-lés.

Era por essa altura que as vacas eram para lá levadas, suspendendo assim o seu vaivém habitual pelas ruas da freguesia, entre palheiros e relvas e entre relvas e palheiros. Antes de lá as colocar, junto ao portal de entrada ou no sítio onde a forrageira era mais fraquita, ceifava-se uma boa parte, a fim de criar o “talho” ou seja o espaço adequado à colocação dos animais que ali ficariam alimentando-se não apenas das forragens verdejantes, mas também de erva e de incensos que para ali eram acarretados a fim de que a permanência dos animais durasse o tempo necessário e suficiente para “trilhar” bem o terreno, preparando-o assim para a próxima sementeira. Cada vaca era presa pela mão esquerda à ponta duma corrente, um pouco mais comprida do que o animal, dividida em duas partes, sendo uma, a da extremidade próxima da mão, mais delgada e curta e a outra mais grossa e presa por uma argola a uma estaca de ferro de tamanho variável, de acordo com a força do animal, para que este não a arrancasse e desse cabo do “outono”. As duas partes estavam ligadas por um “suevo” para evitar que a corrente se enrolasse devido ao esticar e encolher provocado pelo contínuo puxar do animal. Com um enorme maço de madeira as estacas eram enterradas em local que permitisse a cada vaca ter uma “cordada” ou seja, usufruir de um espaço de terreno individual que lhe proporcionasse alimento suficiente. A força da estaca por vezes tinha que ser reforçada com pedras retiradas das paredes circundantes, quer porque o animal fosse muito forte quer porque o terreno estivesse muito mole. No entanto, como o objectivo fundamental era estrumar bem o terreno, os homens passavam o dia a acartar para os campos onde tinham o gado molhos de erva e de incensos, acrescentando assim a cada “cordada” uma boa quantidade de outro alimento para que o animal estrumasse o campo da melhor forma. Junto ao portal a indispensável selha ou bidão com água, que era levada todos dias de manhã e à tarde, precisamente nas latas que depois da ordenha, haviam de vir carregadas aos ombros, suspensas em "caibos" e a transbordar de leite.  

À tardinha, depois de terminar a faina agrícola nos outros campos e como as terras de “outono” eram próximas umas das outras, os homens, depois de dar a última “cordada” ao gado, enquanto esperavam a ordenha da noite, agrupavam-se em cima de paredes e marouços circundantes. Vinham os de perto, vinham os de longe e vinham até os que nem gado tinham e ali ficavam em amena cavaqueira, discutindo sementeiras, planeando ceifas ou passando em revista os acontecimentos mais recentes do povoado, enquanto nós os fedelhos, pedindo as navalhas aos pais, íamos escolher o garrancho mais adequado, que depois era preparado e alisado, preferivelmente com um pedaço de vidro, ao mesmo tempo que retirávamos o miolo a um toro de sabugueiro, um pouquinho mais comprido. Tudo preparado adequadamente, colocávamos-lhe em cada extremidade do tubo do sabugueiro uma espécie de rolha feita de raiz de cana roca. Com a ponta do garrancho carregávamos uma das rolhas que ia penetrando, lentamente no tubo, comprimindo o ar até ao expulsar com propulsão a da outra extremidade, atirando-a para bem longe, provocando um estalido semelhante ao de uma pistola. Depois viramo-nos aos tiros uns contra os outros, contra as paredes, contra as vacas e até contra os navios russos que passavam no mar alto.

Quando as vacas, terminavam a “cordada” era a hora da ordenha. Abdicávamos então da guerra simulada e íamo-nos posicionar ao lado do ordenhador a fim de beber uma boa tapa de leite que saía morninha, com sabor a trevo e a erva da casta e que nos sabia tão bem.

E quando regressávamos a casa, já lusco-fusco, os animais ficavam no campo, “amarrados à estaca” de mão bem estendida para chegar ao melhor do “eito”, fazendo tilintar as campainhas penduradas ao pescoço, provocando uma delirante e estranha sinfonia.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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