PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O MEU PAR
O Antonino era o meu maior amigo, nos meus tempos de criança. A amizade que tínhamos um pelo outro definia-se e concretizava-se não apenas nas brincadeiras e folguedos mas também, na escola, na catequese e até na partilha da realização em comum de muitas tarefas e trabalhos. Esta amizade, que quase nos transformava em verdadeiros irmãos, originara-se no facto de sermos da mesma idade e, ainda por cima, termos nascido no mesmo dia. Por isso crescemos juntos e tínhamos muito em comum. De diferente tínhamos apenas duas coisas: o Antonino, por imperativos genéticos, era um gigante e eu um “lingrinhas” e os pais dele eram ricos e os meus pobres. Mas verdade é que essas diferenças nunca puseram em causa a nossa amizade.
Entrámos juntos para a escola, sentámo-nos na mesma carteira, fizemos passagens de classe e exames ao mesmo tempo, tomámos as vacinas no mesmo dia e até tivemos o sarampo e a papeira pela mesma altura. Na catequese e na missa aos domingos também nos sentávamos lado a lado e raro era o dia em que, depois da escola ou da catequese, não nos juntássemos para a brincadeira ou para fazer em conjunto as contas e as cópias que a senhora professora mandava fazer em casa.
Assim fomos crescendo e o tempo passando.
Quando se aproximou a Comunhão Solene, marcada para o dia da festa de S. José, por razões mais do que óbvias, decidimos, sem consultar quem quer que fosse, que seríamos o par um do outro.
Nos dias que antecederam a festa, reunimo-nos, na igreja, para ultimar os preparativos, sob a orientação do pároco. Uma das primeiras medidas que ele tomou foi formar os pares. Coloquei-me logo ao lado do Dionísio, sabendo que o senhor padre aceitaria, de bom grado, qualquer formação que nós propuséssemos. E os ensaios começaram com afinco e determinação... Todos os dias, depois da saída da escola, corríamos para a igreja, onde esperávamos que o pároco chegasse. Formávamos no guarda-vento, deambulávamos pelo corredor central e pelo cruzeiro, voltávamos ao baptistério lado a lado e de mãos postas, cantando e rezando como se já fosse o dia da comunhão. Depois o padre sentava-nos em lugar de destaque na capela mor e, colocando-se no meio do altar fazia-nos subir dois a dois, de acordo com os pares formados, até junto dele, ensinando-nos as vénias e genuflexões que devíamos fazer e o que devíamos dizer, depois dele erguer a hóstia muito pequenina e proclamar, traçando uma cruz sobre a píxide: “Corpus Domini Nostri Iésus Christi custodiat animam tuam in vitam aeternam”. Cada um respondia simplesmente: “Amen”. O Dionísio e eu ensaiávamos com o maior empenho, lado a lado, felizes por sermos o par um do outro.
Nas vésperas da festa, porém, uma grande “tragédia” aconteceu. A Dona Maria veio ensaiar os cânticos e, julgando do pouco empenho do irmão nos ensaios anteriores, resolveu dar-lhes os últimos retoques. Começou por analisar os pares um a um, com excessiva meticulosidade e depressa entendeu que alguns estavam muito mal formados. Olhei para o Antonino e trememos. Segundo a eminente irmã do senhor padre, os pares deviam formar-se não em função de “amizadezinhas”, mas sim pelo tamanho e altura dos meninos. Não ficava bem nem era bonito um menino grande ser par de um pequeno. De imediato desfez todos os pares que entendeu, incluindo o nosso.
Reclamámos, barafustámos, rezingámos, alegando como único argumento em nossa defesa que era o senhor padre que assim tinha feito e que assim é que devia ser... Mas nada!
Entrámos numa choradeira desenfreada, a tal ponto de já nem querermos fazer a comunhão. Era o que havia de faltar! Que quem mandava ali era ela, que não queria choramingas, que meninos que iam fazer a Comunhão Solene tinham que ser dóceis e humildes, que o Nosso Senhor assim é que queria, que tinha que ser assim e que por nada deste mundo seria doutra maneira... Nada pudemos fazer… e foi a sua vontade que prevaleceu…
E lá tivemos que fazer a comunhão desgostosos com os pares arranjados à última hora, pela Dona Maria, envoltos em lágrimas e revolta… Mas, quando a missa terminou, dirigimo-nos, como estava ensaiado e programado, para o altar da Senhora do Rosário, que ficava ao lado da capela-mor. Foi então que o Antonino e eu, sem que ninguém se apercebesse ou desse por isso, nos esquivámos e ficámos ao lado um do outro, enquanto oferecíamos as flores a Nossa Senhora, Lhe rezávamos a consagração e cantávamos o cântico final:
“Aceitai estas florinhas,
Óh Virgem pura, cecém.
Aceitai-as como ofertas/
Do nosso amor, doce Mãe.
E na hora da nossa morte
Vinde-nos óh Mãe valer.
Lembrai então as florinhas
Que hoje aqui vimos trazer.”
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O TOLO
Conta-se que, numa certa aldeia, havia um indivíduo que todos julgavam ser tolo. Para se divertirem e o gozarem à grande, sempre que entrava num determinado café, alguns dos aldeões ali presentes, de imediato, lhe colocavam na frente duas moedas: uma de um escudo e outra de dois e quinhentos- Depois diziam-lhe que se ele conseguisse escolher a que achasse mais valiosa, ficaria com ela.
O tolo hesitava um pouco, mas escolhia sempre a maior, ou seja a de um escudo, o que levava os outros a rir, desmesuradamente, e a apoucá-lo, pois cuidavam que, na sua ignorância, associava o valor ao tamanho.
A cena repetia-se todos os dias e o tolo, apesar da risota e da galhofa de todos, não hesitava em eleger, sempre, a moeda de um escudo, como a mais valiosa.
Certo dia um dos aldeões, indignado com aquela forma de gozar o desgraçado e com pena dele, chamou-o, à parte, e disse-lhe:
- Olha lá! Tu és mesmo tolo! Ainda não percebeste que estás a ser gozado todos os dias? Ainda não percebeste que a moeda mais valiosa é a mais pequena?
Resposta do tolo:
- Lá perceber, percebi. Só que no dia em que eu escolher a mais pequena, por considera-la mais valiosa, acaba-se a brincadeira e não ganho nem mais um escudo. Por isso, enquanto puder, vou continuar a escolher sempre a maior. Assim todos continuarão a pensar que sou tolo e a divertirem-se à minha custa mas continuarão, também, a dar-me um escudo todos os dias.
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O CALHAU DAS FEITICEIRAS
Na Fajã Grande, ao cimo da ladeira do Covão, no caminho que dá para o Outeiro Grande e antes do cruzamento da Pedra d’Água, existia, e provavelmente ainda hoje existe, um estranho calhau, que o povo chamava “Calhau das Feiticeiras”.
Tratava-se de um enorme e negro tufo de forma oval, encravado na rocha que ostentava desde a base até ao cume mais de uma dúzia de pequenas pegadas, cuja elegância, delicadeza e graciosidade eram denunciadoras de que pés femininos por ali teriam passado vezes sem conta.
Como este, tantos outros calhaus, montes, morros, ribeiras, lugares e até ilhéus, não apenas na Fajã Grande mas também por toda a ilha das Flores, estão repletos de lendas e “estórias”, umas vulgarizadas outras desconhecidas e que, normalmente, os seus nomes encerram.
No caso do “Calhau das Feiticeiras”, contavam os antigos que as pegadas nele assinaladas tinham sido provocadas pelos pés das feiticeiras que ali viviam escondidas e tantas e tantas vezes o haviam subido e descido que ali deixaram, para sempre, as marcas indeléveis dos seus delicados pezinhos. Pelos vistos, as estouvadas, todos os dias, ao anoitecer, pegavam no corpo de alguém que tivesse tido procedimentos menos correctos, praticado actos indecorosos ou feito algumas diabruras e atiravam-no por ali abaixo para castigo do mal que havia praticado. Depois vinham buscá-lo e voltavam a atirá-lo, procedendo assim tantas vezes quantas as maldades cometidas ou as diabruras praticadas pelo prevaricador.
E eu que passava por ali quase todos os dias, quando ia levar as vacas ao Outeiro Grande!... É verdade que quando subia na companhia das rezes, ou porque me abstraísse com o tilintar as suas campainhas ou porque ainda fosse dia claro, não me assustava rigorosamente nada. Mas no regresso… Quando vinha sozinho, já quase noite!?... Oh pernas!... Cheio de medo, passava junto ao calhau numa correria louca. Às vezes, sobretudo quando partia da relva do Outeiro Grande já lusco-fusco, evitava aquele caminho e esgueirava-me pela Cabaceira. É que embora a distância fosse bastante maior, livrava-me de passar junto ao famigerado esconderijo daquelas malditas, impedindo assim que me agarrassem e me atirassem pelo calhau abaixo… Razões para ser abalroado por elas, tinha eu de sobra…
Verdade, verdadinha, é que nunca me agarraram e lá passei muitas vezes. Mas verdade também que por toda a freguesia era voz corrente de que o pai de tia Aniquinha, há muitos anos falecido, todos os dias, à noitinha, era atirado pelo calhau a baixo.
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DIA DA LIBERDADE
(TEXTO DE CARLOS SOUSA)
Neste saboroso feriado, que hoje nos chegou, para fazer lembrar a data importante que foi o 25 de Abril de 1974, queria aqui recordar alguns dos grandes alicerces, pelo menos para mim e colegas desse tempo, em que se tornaram as cantigas de intervenção, poetas, compositores e cantores. Nos finais dos anos sessenta e inícios dos de setenta, mexeram connosco, abanaram consciências e influenciaram a maneira de pensar e de agir de muitos de nós.
Nomes como os de Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, José Gomes Ferreira, Luís Cília, Manuel Alegre, Francisco Fanhais, Manuel Freire, Ary dos Santos, Manolo Diaz, Paco Ibañes, Patxi Andion, Fausto, Sofia de Mello Breyner, António Gedeão, António Aleixo, Geraldo Vandré, … para citar apenas alguns dos mais importantes, pois eram muitos, puseram-nos entre mãos tantos e tão bons e enigmáticos poemas/canções – que se transformaram em verdadeiros temas para conversa, para meditação, despertando consciências ainda adormecidas.
Era ver-nos, naquele tempo, de coração aberto à novidade e à mudança, por esses campos fora, quer isoladamente, quer em grupo, trauteando muitos dos proibidos e censurados estribilhos que nos enchiam de porquês e nos abriam horizontes de liberdade.
Quem não se lembra de poemas e canções como a Pedra Filosofal – o sonho comanda a vida… sempre que um homem sonha o mundo pula e avança; Trova do Vento que Passa – há sempre alguém que diz não; Canção para desfazer equívocos – irmão doutra cor, não estranhes que te chame irmão; Ó pastor que choras – deita as mágoas fora; Porque – porque os outros se mascaram mas tu não; Borboleta Preta – há muitas asas ardendo neste descampado; Corpo Renascido – canção, casa do mundo, viagem do homem para o homem; Descalça vai para a fonte – se os filhos se alimentassem com a sua formosura … Leonor pensa de mais, vai formosa e não segura; Traz outro Amigo Também – não percas tempo que o vento é meu amigo também; Canto Moço – somos filhos da madrugada; Este parte, Aquele Parte - e todos, todos se vão; Eles - Ei-los que partem novos e velhos; Menina dos Olhos Tristes - vem numa caixa de pinho, desta vez o soldadinho; Sei duma Menina – enfrentar a vida é o seu pavor; Para não dizer que não falei de flores – caminhando e cantando e seguindo a canção/somos todos iguais braços dados ou não; Natal para os Meninos da Guerra – era de morte o tempo nesse dia velho de ser Natal; Recuso-me – ao silêncio e à mordaça… a ter medo e a estiolar na concha dos poetas sem mensagem; Canção do Vento - há tempo p’ra tudo na terra; O que menos importa é o fato surrado; Os Vampiros – eles comem tudo e não deixam nada; Calçada de Carriche - Luísa sobe, sobe a calçada; O que faz falta é avisar a malta; Natal dos Simples - vamos cantar as Janeiras; Cantata da Paz – vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar; Cantilena - cortaram o bico ao rouxinol; Livre - não há machado que corte a raiz ao pensamento; Menino do Bairro Negro – onde não há pão, não há sossego; Exílio - Venho dizer-vos que não tenho medo – a verdade é mais forte que as algemas; Canta, Amigo, Canta - erguer a voz e cantar; É preciso avisar toda a gente – dar notícia, informar, prevenir; Dedicatória - se poeta sou, sei a quem o devo/ao povo a quem dou os versos que escrevo; Regresso – dia de festa na pátria amada; Sou Barco – e os barcos abandonados voltarão a Portugal; Canta, Camarada, Canta – canta que ninguém te afronta; Grândola, Vila Morena – o Povo é quem mais ordena; Somos Livres – uma gaivota, voava, voava…
…e outros, muitos, muitos singles e LPs, alguns estampados à pressa, mas novidade clandestina que mão amiga nos trazia de Lisboa.
Tempo de esperança, que se foi tornando realidade, com avanços e recuos, abusos e mal-entendidos, verdades e inverdades, paz, sossego, desassossegos e guerras, sempre e tudo em nome da liberdade, esse caminho nunca completo que teimosa e convictamente vamos trilhando.
Carlos Sousa, Facebook
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O ARAME DA RIBEIRA
Outrora, subir a Rocha sobranceira à Fajã, um pungente e doloroso martírio! Descê-la, uma desafiadora e fascinante aventura! Mas descê-la carregando molhos de erva, feitos, bracéu, ou lenha ou outro carregamento qualquer, uma pungentemente martirizada e castigadora desventura! (Hoje, subida e descida fazem-se por motivações de ordem turística, numa louvável tentativa de reabilitar, recuperar e manter antigos trilhos pedestres, dos quais este é um dos mais delirantemente paradigmáticos.)
Com mais de 300 metros de altura, a rocha era, naqueles tempos e continua a sê-lo, actualmente, um alcantil escarpado, abrupto, pétreo e a pique, possuindo apenas uma vereda, um aclive íngreme e desnivelado, com trinta e duas voltas desenhadas em ziguezague nas fragas negras e enrijecidas, somando degraus atrás de degraus, intercalados com alguns atalhos mais rectilíneos, vários descansadeiros, algumas furnas e uma inesgotável fonte de água fresca, saborosa e retemperadora de forças – a Fonte Vermelha.
A rocha, outrora, era o único meio de acesso aos matos onde abundavam pastagens luxuriantes e onde para além da erva tenra e fresquinha que alimentava bovinos e ovinos, sobretudo nos meses quentes do verão e de onde também se extraía lenha, fetos, cana roca e bracéu e outros bens necessários mas difíceis de acarretar até ao povoado, face às dificuldades inerentes ao descer aquelas perigosas veredas, carregando às costas pesadíssimos molhos. Bastavam as latas de leite, os cestos de lã e as ovelhas em dia de fio, que estes não podiam ser carregados de outra forma.
Como “a necessidade aguça o engenho” foi desta dificuldade que nasceu o recurso ao arame para lançar os produtos pela rocha abaixo, com destaque para o mais frequentemente utilizado – o que ligava o cimo da Rocha à Ribeira.
O arame era uma enorme extensão de fio de aço bem esticado e preso nas extremidades a enormes vergas de madeira, umas lá no cimo da rocha e outras cá em baixo, numa espécie de espojadoiro, para tal construído. O arame formava com a rocha e o caminho paralelo à Ribeira e que dava para a Figueira, uma espécie de triângulo rectângulo do qual constituía como que uma real e verdadeira hipotenusa. Assim, fixando-se rijamente de alto abaixo da rocha em diagonal, os molhos, presos por fortes ganchos de ferro em forma de S ou de C, eram nele colocados, um a um e deslizavam vagarosa mas airosamente, como que dançando e balouçando-se ao longo do arame, ao sabor do vento e da gravidade, até atingirem, por vezes, enorme velocidade, e chegarem cá abaixo, donde eram imediatamente retirados.
Na Fajã, ladeada a oeste por uma infinidade de rochas, existiam pelo menos mais três ou quatro arames: um na Rocha da Ponta, um na dos Paus Brancos e outro no Cabeço da Rocha, mas o principal e mais utilizado era realmente “o Arame da Ribeira”.
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LIBERDADE
"Povos livres, lembrai-vos desta máxima: A liberdade pode ser conquistada, mas nunca recuperada."
Jean-Jacques Rousseaux
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MATEUS PIRES
Na Fajã Grande, como em todas as outras freguesias das Flores e das restantes ilhas dos Açores, existiam diversíssimos lugares, a maior parte dos quais não habitados, mas, alguns deles com nomes muitíssimo interessantes. É o caso de um lugar da toponímia fajãgrandense, chamado “Mateus Pires” e que, como a maioria dos outros lugares, tem uma pequena história ou lenda, relacionada com a origem e a razão de ser do seu nome bem como do motivo ou motivos que terão originado. Mateus Pires é um deles!
O lugar de Mateus Pires ficava no caminho que ligava a Fontinha aos Lavadouros, mais precisamente integrando um outro lugar, muito maior e mais amplo, chamado Alagoinha. Partindo da Fontinha e Alagoeiro, subindo por aquele caminho em direcção aos Lavadouros, a seguir à ladeira do Pico Agudo, começava a Alagoinha. O caminho, no cimo da ladeira, fazia uma curva à esquerda, em direcção à rocha, seguindo depois paralelo a esta, para iniciar logo a seguir a descida da ladeira da Alagoinha.
Era precisamente neste sítio e junto à rocha, um pequeno montículo na enorme planície da Alagoinha, que ficava o lugar chamado Mateus Pires. Tratava-se de um lugar pequeno, formado por duas ou três terras de mato e uma relva, tendo sido claramente originado por uma ribanceira, em tempos muitíssimo recuados, caída da rocha.
Contavam os antigos que andando, outrora, por ali um homem de nome Mateus Pires, teve o azar de ser colhido pela ribanceira e ficar soterrado debaixo da mesma, nunca mais sendo de lá tirado o seu cadáver, pois a quantidade de entulho caído da rocha era tanta e tal que não havia meios que o permitissem fazer. Dele apenas ficou a memória assinalando com o seu nome aquele lugar – o lugar de Mateus Pires.
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A INEXAURÍVEL SINGULARIDADE DO CORVO
Localizadas sobre a placa tectónica norte americana e edificadas, conjuntamente, sobre um fundo oceânico com cerca de dez milhões de anos, as Flores e o Corvo, quais irmãs gémeas, emergem, paradoxalmente, do mesmo banco submarino. Unidas no espaço, estiveram também sempre lado a lado no tempo, desde que os seus descobridores as encontraram e os seus primeiros povoadores penetraram por elas dentro, desbravando, cultivando, construindo e edificando. Além disso, as duas ilhas do grupo ocidental açoriano permanecem unidas uma à outra, por ligações marítimas, outrora mais espaçadas, rudimentares e lentas, hoje mais rápidas, seguras e sofisticadas. Por isso ir às Flores e não realizar uma visita ao Corvo é como que “ir a Roma e não ver o Papa”. O “Ariel” em carreiras diárias, regulares, os barcos da “Maré Ocidental” e de outras empresas, em viagens ocasionais ou fretados, permitem fazer uma visita, suficientemente prolongada, à mais pequenina e singular ilha açoriana – o Corvo.
Nas idas e vindas de uma ilha para a outra, pelo menos a bordo do “Avô Augusto” e graças aos seus experientes marinheiros, netos do “lobo do mar” José Augusto, é possível parar a meio do canal para observar uma infinidade de golfinhos que saltitam, acompanhando o circular da embarcação, em graciosas e variadas acrobacias e tornear o noroeste da magnífica costa florentina, entre a Ponta Ruiva e Santa Cruz, e entrincheirar-se por entre os inúmeros ilhéus que por ali proliferam. Também é possível observar as magníficas grutas com solo de água e tecto de lava e aproximar-se dos penhascos e ravinas entrecortados por quedas de água a despejarem-se sobre o Oceano. Uma verdadeira maravilha da natureza!
A chegada ao Porto da Casa, no Corvo, consubstancia uma singeleza que ainda torna mais singular a singularidade inexaurível desta ilha anã, estampada quer na simplicidade e idiossincrasia dos corvinos que esperam sobre o cais ou se sentam nas soleiras das portas das estreitas ruas da vila, quer na brancura das casas de portas escancaradas dia e noite ou destrancadas com fechaduras de madeira, quer ainda no emaranhado e estreiteza das principais e mais antigas vielas, ou até nos campos e belgas que as circundam ou nos desabitados palheiros que proliferam já nos matos, a caminho do Caldeirão. Trata-se duma ampla cratera de abatimento e onde se aloja uma, maravilhosamente bela lagoa, no fundo da qual se podem observar várias pequenas "ilhotas", umas compridas, outras redondas e onde, com um bocadinho de imaginação, se podem observar as nove ilhas açorianas. Lá ao fundo, no rebordo do Caldeirão, o ponto mais alto da ilha, o Morro dos Homens, com 718 metros de altura acima do nível médio do mar e, embora menos altos, mas ali bem perto, porque naquela inexaurível pequenez nada é longe e nada é perto, outros montes, onde se destaca o célebre e histórico Marco. Depois e mais a leste, as Quintas e o Fojo, as zonas mais altas do Corvo, onde se pratica a agricultura e cultivam algumas árvores de fruto. Por sua vez, as melhores pastagens para o gado ficam mais para norte, nas chamadas Terras Altas. Curiosamente uma parte desta zona de pastagens, ainda hoje, é de uso comunitário.
No regresso, impõe-se um passeio a pé, pela Vila do Corvo, localizada numa fajã lávica, a Sul e voltada para as Flores. A Vila do Corvo, que forma o concelho com o mesmo nome, é a mais pequena vila açoriana, com apenas 430 habitantes, de acordo com o Censos 2011. Única povoação da ilha, é constituída por um aglomerado de casas baixas com ruas estreitas e tortuosas que sobem as encostas, conhecidas localmente por canadas e possui o singular estatuto de ser o local habitado mais isolado de Portugal.
Do património arquitetónico existente na ilha, destaca-se a Igreja de Nossa Senhora dos Milagres, construída em 1795, que veio substituir uma primitiva ermida. No seu interior, podem admirar-se a estátua da padroeira, obra flamenga do século XVI, um Cristo em marfim e uma imagem em madeira de Nossa Senhora da Conceição, entre várias outras ali existentes. Além da igreja, é digna de ser visitada a Casa do Espírito Santo, no areópago da vila, o típico Largo do Outeiro, fundada a 1871, seguindo a traça arquitetónica das suas congéneres das Flores. Junto ao aeroporto ainda existem alguns interessantes e típicos moinhos de vento, classificados como imóveis de interesse municipal. Dos cerca de sete moinhos que existiram na ilha, apenas três se mantêm em funcionamento, embora já não sejam utilizados para o fim para que foram construídos. O casario da vila é um verdadeiro museu vivo, classificado pelo Governo Regional como conjunto de interesse público. Outro local de interesse é a “Cova da Junça” onde existe uma edificação protegida pelo Governo Regional dos Açores, cuja data de construção recua aos séculos XVII e XVIII, a qual faz parte do Inventário do Património Histórico e Religioso do Corvo. Trata-se de um silo subterrâneo, escavado no subsolo com forma de ânfora ou de talhão, tendo, muito provavelmente, sido usado em tempos idos com o objetivo de guardar os cereais, não só como forma de os conservar, mas também de os esconder quer dos piratas e corsários que assolavam a costa da ilha com frequência quer dos cobradores dos impostos do rei.
Foi toda esta inexaurível singularidade corvina que fez com que esta ilha fosse declarada no mês de Setembro de 2007 Reserva da Biosfera, pela UNESCO, na sequência de uma candidatura apresentada, para esse fim, pelo Governo Regional dos Açores.
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TAÇA DE PORTUGAL
A primeira competição com o estatuto de "Taça" foi criada em 1912, denominada Taça do Império (não confundir com Taça Império, que foi um troféu para a abertura do Estádio Nacional disputada entre o vencedor da Primeira Divisão e o vencedor da Taça de Portugal), que também teve o nome de Taça de Portugal na altura. Esta competição não-oficial, organizada pelo Sport Clube Império, tinha o intuito de participarem todos os clubes de Portugal. Porém, a prova só foi disputada três vezes, de 1912 a 1918, tendo o Benfica ganho todas as edições.[2]
Em 1921, após a derrota da seleção nacional na sua estreia, mostrou a necessidade de alterar o sistema de futebol português, constituído por campeonatos regionais (Porto e Lisboa, com algumas competições irregulares na Madeira e Algarve), criando-se uma competição nacional. Assim na época 1921–22 foi criado o Campeonato de Portugal disputado pelos Campeões Regionais (vencedores de cada Campeonato Regional) com o sistema de eliminatórias, tendo na primeira edição participado os vencedores dos campeonatos de Lisboa e Porto, tendo as associações do Algarve e Madeira renunciado à participação por razões financeiras e de organização.[3] Nos anos seguintes a competição iria sendo alargada à medida que mais campeonatos regionais iam sendo criados. Antes da criação do Campeonato da Liga os vencedores do Campeonato de Portugal eram declarados os campeões da modalidade em Portugal (apesar de os vencedores desta competição já não contarem como campeões nacionais). Depois da sua criação a Primeira Divisão passou a ser a competição mais importante do país e o Campeonato de Portugal foi substituído pela actual Taça de Portugal (no entanto, os títulos dos Campeonatos de Portugal não contam como títulos da Taça de Portugal).
O Sporting e o FC Porto são os maiores vencedores do Campeonato de Portugal, com 4 títulos conquistados, seguidos de Benfica e Belenenses com 3 títulos, ao contrário da Taça de Portugal, competição na qual o Benfica é o que tem mais triunfos, com 25 Taças conquistada.
Esta época estar-ao no Jamor Desportivo das Aves e Sporting numa final inédita.
(Dados Wikipedia)
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TOPONÍMIA DA FAJÃ GRANDE
Com a ajuda de algumas memórias ainda hoje muito lúcidas, foi-me possível fazer o levantamento dos nomes, se não de todos pelo menos da maior parte, dos lugares da Fajã Grande que outrora nos eram tão familiares e alguns dos quais hoje, possivelmente, já estarão ou esquecidos pelo tempo ou perdidos entre feitos, cana-roca, incensos e faias. Para uma melhor identificação dos mesmos, dividi o território abrangido pela freguesia em sete zonas tão imaginárias como a linha do Tratado de Tordesilhas, faltando, obviamente, uma zona: a da Ponta. Alguns dos nomes encontram-se repetidos porque, na realidade, se incluíam em mais do que uma destas pseudo zonas. Exemplifiquemos com o caso das “Queimadas” local onde havia relvas e terras de cultivo. Essa a razão por que o nome deste e de alguns outros lugares aparecem em duas zonas. A lista, no entanto, fica em aberto, a fim de alguns visitantes deste blogue, com os seus comentários, ajudem a completá-la.
ZONA DA COSTA E DA BEIRA-MAR
Areal, Baía d’Água, Baixa-Rasa, Barra, Barro, Cabouco, Calhau da Barra, Caneiro das Furnas, Caneiro do Porto, Cantinho, Canto do Areal, Cilindro, Coalheira, Covas, Eira, Estaleiro, Farol, Furna das Mexideiras, Furnas, Ilhéu do Constantino, Ladeira das Covas, Matadouro, Moinhos, Moinho do Engenho, Monchique, Pesqueiro de Terra, Pico, Pico da Vigia, Pico do Areal, Pinhacre, Poça da Barra, Poça das Salemas, Poça do Cobre, Poça do Farol, Poceirão, Ponta do Baixio, Ponta dos Pargos, Porto Novo, Porto Velho, Ramadas, Redondo,Rego do Burro, Respingadouro, Retorta, Ribeira das Casas, Rolinho, Rolo, Vale do Linho e Varadouro.
ZONA DAS CASAS
Alagoeiro, Assomada, Cambada, Caminho de Baixo, Canada da Fonte, Canada do Pico, Caravela, Casa de Baixo, Cimo da Assomada, Cruzeiro, Fonte da Assomada, Fonte Velha, Fontinha, Igreja, Ladeira do Calhau Miúdo, Ladeira da Fontinha, Ladeira da Via d’Água, Outeiro, Pico, Praça, Rua das Courelas, Rua Direita, Rua Nova, Rua da Tronqueira, Vale da Vaca e Via d’Água
ZONA DAS TERRAS DE CULTIVO
Arame da Ribeira, Bandeja, Batel de Baixo, Batel de Cima, Lage do Batel, Calhau Miúdo, Caminho da Missa, Covão, Cruzeiro, Descansadouro, Fontecima, Mimoio, Outeiros, Pico, Quebrada, Queimadas, Ribeira das Casas, Ribeira, Tanque, Tronqueira e Vale da Vaca.
ZONA DAS HORTAS E TERRAS DE MATO
Cabaceira de Baixo, Cabaceira de Cima, Cabaceira do Meio, Cabeço da Rocha, Cancelinha, Delgado, Desarraçado, Espigão, Fonte Delgado, Grota dos Paus Brancos, Horta das Abóboras, Ladeira do Espigão, Lameiro, Largo da Cancelinha, Lombega, Moledo Grosso, Paus Brancos, Pico Agudo, Pocestinho, Santo António, Vale Fundo e Volta do Pinheiro.
ZONA DAS RELVAS OU PASTAGENS
Águas, Calhau das Feiticeiras, Calhau da Quebrada, Covão, Covas, Escada-Mar, Figueira, Grota da Lagoinha, Lage da Silveirinha, Lagoinha, Ladeira da Fonte, Mateus Pires, Outeiro Grande, Pedra d’Água, Pico, Queimadas, Ribeira, Ribeira das Casas, Rolinho, Silveirinha e Vale de Linho.
ZONA DA CUADA E LÁ-DE-TRÁS
Calhau de Nossa Senhora, Calhau do Tufo, Caminho Quebrado, Cuada, Curralinho, Eira da Cuada, Fajã das Faias, Fonte Simão, Grota da Alagoinha, Hortinhas da Cuada, Ladeira da Cuada, Ladeira do Biscoito, Ladeira do Pessegueiro, Ladeira do Serrado, Lavadouros, Pedra Vermelha, Pessegueiro, Portalinho, Poço, Ribeira do Ferreiro, Ribeira Grande, Tamujinhos, Tufo da Quada e Vale Fundo.
ZONA DA ROCHA E DO MATO
Água Branca, Bracéu, Burrinha, Cabeços, Caldeirão da Ribeira das Casa, Calhau do Touro, Cancela, Cimo da Rocha, Curral das Ovelhas, Curral Velho, Descansadouro da Rocha, Fonte Vermelha, Furna da Caixa, Furna do João da Macaca e da Maria Peguinha, Furna do Peito, Furna dos Dez Reis, Juncalinhos, Ladeira da Burrinha, Miradouro, Paços, Pedrinha, Pináculo, Pináculo das Covas, Poço do Bacalhau, Pontas Brancas, Pulgueira, Pulo, Quebrada, Queiroal, Ribeira das Casas, Rochão do Junco, Rochão Tamusgo, Rochão Grande e Serrado Velho.
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MONTJUIC, O PICO DA VIGIA DE BARCELONA
Afinal, vistas de um certo prisma, as localidades são como as pessoas: em tudo diferentes mas em tudo iguais. De facto se repararmos bem qualquer, localidade, por mais pequena que seja, tem tudo o que as outras têm, mesmo se tratando de grandes vilas ou enormíssimas cidades: casas, ruas, praças, passeios, árvores, pessoas, lojas, mar ou rio, tudo é comum a umas e a outras.
Quando, há anos, visitei pela primeira vez a mágica cidade de Barcelona e passeei por algumas das suas ruas, dei comigo a pensar que naquela enormíssima cidade, capital da Catalunha, há afinal muita coisa igual ou semelhante aquilo que havia na minha minúscula Fajã Grande, a pequena freguesia onde nasci e cresci criança, quando por lá deambulava de pé descalço, no início dos anos cinquenta. Poderá parecer estranho mas é verdade. Senão vejamos.
Comece-se pelo Montjuic! Não é verdade que é sobranceiro à cidade e ao mar, que do seu alto se desfruta de uma aprazível, deslumbrante e encantadora vista sobre a cidade, talvez uma das mais belas de toda a Catalunha, o que o torna realmente numa espécie de Pico da Vigia de Barcelona? É verdade que não tem a cabine onde o vigia das baleias passava horas a tentar descobri-las, mas tem um castelo com binóculos e canhões por tudo o que é sítio. Mas ainda há mais: bem vistas as coisas não está a Rambla cheia de galos, pássaros, morganhos, salsa, cebolinho, hortelã, macela, japoneiras, hortênsias a fazer lembrar a Rua Direita, ambas com uma praça ao cimo? E o Porto Velho e o Porto Novo? Tal e qual como os da Fajã. A casa de Batló ou a de Mila não fazem lembrar a Casa do Chileno? A própria Fonte Canaletas reporta-nos para a nossa Fonte Vermelha, que embora não estando localizada perto da Praça, não lhe é inferior na qualidade e frescura da sua água.
É verdade que não tínhamos uma torre Agbar, mas tínhamos o Monchique que não lhe fica atrás em firmeza, rigidez e endurance e que tem a vantagem de lá bem no seu cimo, ao que se diz, os nossos avós terem dançado “A Chamarrita”, não constando que os catalães algum vez tenham dançado ou tenham a esperança de um dia vir a dançar “ La Sardana ” em cima da dita Torre. Vão-se contentando em dançá-la, apenas aos domingos, mas na Praça da Catedral.
E se Barcelona têm um Arco do Triunfo não o devia ter porque ele é de Paris, o Palácio Real é de Madrid, o Tibidabo do Monte Sinai e a Sagrada Família, segundo rezam as escrituras, era de Nazaré.
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TIA, O REGO
Antigamente, na Fajã era de bom-tom que todos oferecessem alguma coisa do pouco que produziam, ao pároco. Geralmente, cada um escolhia o melhor que tinha. Com este gesto, pretendiam os crentes, por um lado, cumprir o estipulado no 5º mandamento da Santa Madre Igreja “Contribuir para as despesas do culto e sustentação do clero” e, por outro, diligenciar um “descontozito” na compra dos indultos e das bulas ou até na própria côngrua. Em Dezembro oferecia-se uma posta do porco, uma morcela ou um pedaço de linguiça. Na altura das colheitas uma rasoira de milho, um saco de batatas ou uma gavela de couves. Ao longo do ano uma dúzia de ovos, um cesto de inhames ou um queijo.
A Ana Sapateira era muito pobre e não tinha nada de jeito que pudesse oferecer ao reverendo. Mas falta de lógica é que não tinha e lá foi matutando consigo própria: O senhor padre tem galinhas, as galinhas põem ovos para o alimentar. Logo dar comida às galinhas é o mesmo que sustentar o reverendo.
Atrás da sua casa, ladeado pelo caminho da Fontinha e fustigado pelas enxurradas invernais e pelas manhãs soalheiras do estio, havia um rego onde florescia erva-santa de excelente qualidade Um regalo para as galinhas!
Certo dia, a Sapateira, enchendo-se de coragem e boas intenções, lá se decidiu por apanhar um cestinho de erva-santa e, não sem algum embaraço, foi oferecê-lo ao vigário.
O prebendado ficou perplexo ao ver aquela florescente maravilha da natureza e, ao perguntar-lhe onde tinha ido apanhar erva-santa tão viçosa e fresquinha, a velhota respondeu, sem hesitar:
- Foi no meu rego de trás, senhor padre. Tem lá muita.
O Jacinto que estava a cavar a courela do pároco, ali ao lado, ouviu tudo. Um canhão a disparar uma bomba de cima da rocha não espalharia os estilhaços tão depressa. Em segundos toda a freguesia ficou a saber que a Ana Sapateira tinha um “rego de trás” e que o dito cujo era fértil e estava eivado de erva-santa.
Foi uma chacota danada, sobretudo por parte dos rapazes que, ao passar-lhe por trás da casa, começavam a gritar: “Ó tia, o rego!?” A Sapateira assomava logo à porta da cozinha, furibunda, de pá do forno ou varredouro na mão, ameaçando-os e insultando-os desalmadamente.
Eu esperava, ainda muito criança mas já danado para caçoar, pacientemente aguardei a ocasião mais oportuna de também me iniciar em tão audacioso ritual. Ia-me poupando porque muito miúdo, tinha medo que ela me pilhasse e arriasse o cabo da vassoura no lombo, como já tinha feito ao Amorim.
Mas lá chegou o dia em que, enchendo-me de coragem, decidi iniciar-me na praxe de insultos à Sapateira. Passei-lhe rente à porta da cozinha e gritei com quanta força tinha, uma, duas, três vezes: - “Ó tia, o rego!?”
Azar dos azares! É que a Sapateira estava sentada cá fora mas encoberta pela aba duma pedra e eu não a vira. Eis senão quando me surge pela frente e, barrando-me a fuga por completo, agarrou-me, cravou-me as unhas nas orelhas, levantou-me do chão e sacudiu-me bem sacudido pelas orelhas, enquanto, furiosa que nem uma barata, me arregalava uns olhos de raiva e gritava bem alto: “Pscinha mijinha, pscinha mijinha”.
Só a muito custo me libertei das garras odientas da Sapateira, iniciando tamanha correria que ela não mais me pôs a vista em cima.
Só mais tarde soube que tivera uma antepassada que, para além de demente e ciosa da fala, sofria de incontinência urinária. Contaram-me que a coitada urinava em tudo o que era sítio, formando uma pequena poça à sua volta e, depois, muito contente, punha-se a saltar à volta da dita poça, cantarolando: “Pscinha mijsinha, pscinha mijsinha,” o que, obviamente, significava “pocinha de mijinho”.
Confesso que nunca mais gritei à Velha Sapateira, não tanto por não querer sentir, mais uma vez, os seus gadanhos nas minhas orelhas, mas sobretudo porque temia que ela voltasse a descobrir o lastimoso currículo de algum outro meu antepassado.
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MAIS UMA FLOR SOBRE A TUA CAMPA
Depositei mais uma flor sobre a tua campa
e, apesar do negrume tumular que te envolvia
e do silêncio eterno em que te banhavas,
pareceu-me que sorriste
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A CAMBADA
Cambada, estranhamente, é o nome de um lugar da Fajã Grande, situado ente a Via d’Água e a Tronqueira, sendo ainda ladeada a sudoeste pela Caravela e a norte pelo Porto. A Cambada é uma afirmação contundente dum lugar mas desafiador da sua origem e génese. É um lugar cuja origem do nome não parece ser fácil.
Na língua portuguesa a palavra cambada que pode ser nome ou adjetivo e o verbo cambar têm os seguintes significados: cambada, substantivo feminino, tem dois significados. Significa porção de coisas enfiadas e dependuradas do mesmo cordão, gancho, etc e no sentido figurado grupo de pessoas consideradas desprezíveis ou de mau carácter, sendo, neste caso sinónimo de canalha, corja, súcia. Não parece que nenhum destes significados esteja na origem deste topónimo. Por sua vez, cambar, verbo intransitivo, significa mudar, transformar, mudar de rumo ou de direção, sendo que em náutica se utiliza com o significado de mudar de um bordo para outro (vento, escota das velas, etc.).Por sua vez, como verbo transitivo trocar. No entanto o significado mais vulgar de cambar é o de andar com as pernas tortas, estar coxo, coxear, entortar ou ficar torto. Neste caso o adjetivo formado a partir do participo passado, cambado significa que ou quem tem as pernas tortas, que está coxo, torto ou acalcado.
O mais provável é que este último significado seja o que estará na origem deste topónimo. Como o lugar da Cambada se situa perto de locais onde hoje existem moradias, noutros tempos poderá ter existido ali, como existiu no Areal, no Porto e noutros lugares, pelo menos uma casa onde, eventualmente, moraria uma mulher que tivesse um defeito nas pernas ou coxeasse. Neste caso aquele lugar passaria a identificar-se como o lugar da cambada e que passou a ser “A Cambada”.
Enquanto não germinar um esclarecimento mais perfeito, talvez de maior rigor com o objetivo de melhoria os primórdios originais e a origem do nome deste lugar, a eugenia lexical vai dando lugar a estes devaneios.
A Cambada situa-se um pouco distante quer do Caminho da Tronqueira, quer do da Via d’Água, pelo que o seu acesso se fazia através duma Canada com o mesmo nome e que ligava este lugar à Tronqueira. No pouco que consigo recordar, a canada localizava-se entre as casas do Tobias e de José Inácio Jorge, bem lá no fundo da Tronqueira. No entanto, havia quem fosse para a Cambara pela canada do Calhau Miúdo, que dava para o Porto, ou mesmo atravessando algumas terras dos lugares circundantes, Do alto do maroiço dum serrado que meu pai possuía no Porto, chegava-se facilmente à cambada. Por ali perto existiam outros dois lugares com nomes também muito interessantes: a Caravela e o Estaleiro. Na sequência do vizinho Porto era um excelente lugar agrícola, com bons terrenos onde florescia, sobretudo, milho, batata branca e couves.
O nome Cambada nos Açores, não é monopólio da toponímia fajãgrandense, uma vez que noutras ilhas existem lugares com o mesmo nome. Como é o caso do Pico do Cambado um monte localizada na ilha de São Miguel. Trata-se de um acidente geológico que tem o seu ponto mais elevado a 304 metros de altitude acima do nível do mar e localiza-se nas imediações da freguesia do Cabouco, da Mata das Feiticeiras e do Pico do Castelhano. Há também várias localidades onde existem ruelas designadas por canada do Cambado.
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AZÓRICAS
(TEXTO DE MARIA ANTÓNIA FRAGA)
Quando os navegadores avistaram ao longe as ilhas atlânticas, terão sentido a vontade compreensível de as visitar, não só pela curiosidade natural do descobridor como também para obter água e mantimentos frescos, e já agora para delas se apossar, em nome de El-Rei e para glória de todos. Abrigados os pequenos barcos nas poucas angras viáveis, ei-los que desembarcam num território que até então só pertencia às aves e à vegetação – e pouco mais.
Nas zonas mais baixas, encontraram as plantas de costa, tão densas em alguns locais que até o nome deram à ilha em questão; é o caso das Flores, que terá sido deste modo chamada por se encontrar literalmente coberta de cubres amarelos, na orla costeira, e decerto não de hortênsias azuis, como sucede hoje, mas que parecem ter achado nessa ilha, como um pouco por todo o arquipélago dos Açores, o seu verdadeiro lugar ao sol. Sol suavizado, é certo, pela humidade constante, chuvas abundantes e vento fresco, pois poderia ter sido Flores muito bem chamada a ilha das brumas eternas, ou aquela que dá de beber ao mar, segundo um poeta...
Nas zonas mais altas, geralmente acima dos 500 metros nos grupos central e oriental - no ocidental, a menos do que isso - observaram, aflitos (como é que se vai arrotear isto?) a floresta a que hoje nos referimos quase postumanente como laurissilva, ou floresta de louro e cedro, pois dela agora pouco resta, a não ser nos locais menos acessíveis das ilhas (*) como por exemplo a daqui bem próxima serra da Tronqueira. Árvores centenárias, algumas de preciosa madeira, arbustos e vegetação rasteira, (quase) tudo acabou por ser minuciosamente derrubado, desbravado e desmontado, numa actividade a princípio lenta e penosa, tornando-se mais rápida e descuidada com o melhoramento dos utensílios e o advento da perniciosa mania de que o que vem de fora é que é bom, e que levaria à introdução de muitas espécies alienígenas e agressivas para a flora local. Desta, onde estão agora os cedros do mato - em alguns locais conhecidos por zimbreiros ou zimbros – os loureiros, vinháticos, paus-brancos (ou paus-branqueiros), sanguinhos, azevinhos, tamujos e folhados, e quem os conhece hoje? A queiró (ou urze, nalgumas ilhas) lá se foi aguentando e é das poucas relíquias da laurissilva que pertence ao nosso quotidiano; a faia da terra também, até certo ponto, e devido talvez à sua utilização como abrigo para plantas fruteiras.
Muitas destas espécies são endémicas, ou seja nossas e só nossas; a algumas foi-lhes dado até o nome que entre todas as plantas deste mundo as distinguirá: “Laurus Azorica”, o loureiro açoriano; “Erica Azorica”, a nossa urze ou queiró; “Picconia Azorica”, o pau-branqueiro de nobre madeira; “Frangula Azorica”, o sanguinho de flor vermelha, etc.
O olhar do passante recai na mesma, nos dias de hoje, sobre o verde profundo das árvores, mas praticamente só distinguirá as exóticas “Cryptomeria Japonica” de crescimento rápido, sob as quais pouco ou nada consegue sobreviver, alguns “Eucalyptus Globulus” e abundantes incensos, “Pittosporum Undulatum”, também ao que parece introduzidos inicialmente para abrigo de pomares. Verá também outras colonizadoras eficientes, como as canas, “Arundo Donax”, a ornamental e competitiva “Hydrangea Macrophylla”, mais conhecida decerto por hortênsia ou novelão, e as atraentes conteiras (em algumas ilhas, roca-da-velha ou cana-roca), “Hedychium Gardneranum”, que lá por serem bonitas não deixam de ser também uma boa peste de erva, e a pior das ameaças para a pobre e açoriana laurissilva.
Fui buscar boa parte destes nomes, científicos e sonoros, já se vê, a um pequeno e muito útil livrinho, pois a única coisa aqui que é da minha especialidade é a verificação diária da (quase) geral indiferença pública e privada pelo desaparecimento das “azoricas”, quer sejam vegetais quer não. Entretanto, dois aspectos me chamaram a atenção logo à partida no dito livro. Em primeiro lugar, o facto do seu autor ser um estrangeiro - o sueco Eric Sjogren; e em segundo, uma das frases com que inicia o seu precioso trabalho: este livro foi "elaborado para turistas" que se encontrem no arquipélago dos Açores ou planeiem visitá-lo… as aspas são minhas.
Para turistas. E ainda há quem negue que quem está de fora vê melhor, e rapidamente se apercebe daquilo que a casa gasta. Depressa terá constatado Eric Sjogren de que os açorianos não se ralam excessivamente com as azoricas.
(*) nas Flores, junto das casas, praticamente ao nível do mar. Há mesmo, nessa ilha, quem tenha o seu zimbreiro no pátio… estas linhas foram escritas na ilha de S. Miguel, onde infelizmente os restos da laurissilva só se conseguem encontrar em altitudes elevadas.
(Do blog Janela de Guilhotina http://janeladeguilhotina.blogspot e publicado no Correio do Norte)
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EPITÁFIO AO MEDO
quando o medo
procurar refúgio
na noite escura
haverá (mesmo que apagada),
uma única luz
no meio do silêncio.
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ANTÓNIO CORDEIRO
O Padre António Cordeiro nasceu em Angra do Heroísmo no ano de 1640 e faleceu em Lisboa, a 22 de Fevereiro de 1722. Para além de teólogo e filósofo foi um notável historiador. O sexto e último filho de Manuel Cordeiro Moutoso e Maria de Espinosa, por linha materna aparentado com a fidalguia castelhana, fez os primeiros estudos no Colégio da Companhia de Jesus, na cidade natal, aí adquirindo notável cultura clássica. Em 1656, com destino a Coimbra, embarcou na armada castelhana que regressava da América, comandada pelo seu parente Álvaro de Bustamante. Uma peripécia de guerra naval entre a armada e os ingleses, já perto de Cádis, de que escapou apenas o navio em que viajava, saldou-se no infeliz episódio da sua prisão em Cádis. Acusado de ter sabido da presença dos ingleses e nada ter dito, foi condenado à morte. Após o insucesso de fuga, que lhe agravou mais a situação, revogaram-lhe a pena e libertaram-no, graças à acção de Bustamante. Numa travessia memorável, sempre a pé, dirigiu-se ao Algarve, por Ayamonte, seguindo por Tavira, Faro e Lagos, onde ainda grassava a peste; alcançou Setúbal e aí, de novo preso por vir dos lugares da peste, esteve por quarenta dias num areal solitário. Levantada a interdição, continuou, por Lisboa, até Coimbra, onde, finalmente, se matriculou na Universidade em Cânones e Filosofia. A 12.6.1657 entrou para a Companhia de Jesus. Fez votos em 1659. Mestre em Artes, regressou aos Açores como professor de Humanidades Clássicas no Colégio de S. Miguel. Anos mais tarde regressou a Coimbra, a fim de estudar de Teologia, tendo-se ordenado prebítero, provavelmente, em 1671. No tempo em que decorreu o terceiro ano do seu noviciado em Lisboa, pregou uma missão em Peniche e foi chamado para nova missão na comarca de Chaves, onde uma tentativa de assassinato por envenenamento o levou às portas da morte. Levado para Braga, ali se restabeleceu, regressando posteriormente a Lisboa como substituto do Páteo do Colégio de Santo Antão, onde permaneceu por três anos, ensinando Humanidades e Retórica. Entre 1676 e 1680, ocupou a cátedra de filosofia no Colégio das Artes de Coimbra, seguindo-se a de Teologia, cuja docência se estendeu até 1696, ano em que foi privado da cátedra e afastado de Coimbra por serem o seu ensino e método pouco ortodoxos. Nos anos seguintes, até 1712, exerceu actividade docente em Braga, Porto e Lisboa. Por volta de 1713, nesta última cidade, a ordem do Superior Geral foi obrigado ao isolamento na Casa do Paraíso, para que ali se dedicasse à reunião das suas lições, o que fez, tendo preparado seis tomos de vulto. Concluído o trabalho em 1716, assumiu, no ano seguinte, as funções de Padre Espiritual e Examinador Sinodal no Colégio de Santo Antão de Lisboa, aí permanecendo até à hora da morte. A sua obra divide-se em três áreas: Filosofia e Teologia – Cursus Philosophicus Conimbricensis e Theologia Scholastica, Direito – Resoluções Teojurísticas, onde se dedica a matérias do foro jurídico: testamentos, dotes, morgados ou capelas vinculares, etc.; e História: História Insulana, que traça a história das ilhas açorianas, também Cabo Verde e Madeira, cuja principal fonte foi a obra manuscrita Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, que este legara, em 1591, ao Colégio da Companhia de Jesus de Ponta Delgada, e Loreto Lusitano, obra dedicada à história do Santuário de N.ª S.ª da Lapa, na diocese de Lamego.
Obras: Cursus Philosophicus Conimbricensis. Ulyssipone, Ex Officina Regia Deslandesiana, Historia Insulana das Ilhas a Portugal Sugeytas no Oceano Occidental, In praecipua partium Divi Thomae Theologia Scholastica. Ulyssipone, Resoluçoens Theojuristicas, Loreto Lusitano, Residencia milagrosa do Real Collegio de Coimbra da Companhia de Jesus. Lisboa..
Dados retirados do CCA – Cultura Açores
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A HORTA DO SENHOR COSTA
O Senhor Costa tinha uma horta. Tinha uma horta o Senhor Costa. Horta pequena, simples, modesta, singela mas muito fértil e produtiva, porque muito bem trabalhada, extremamente cuidada e ainda melhor zelada pelo Senhor Costa.
Na horta do Senhor Costa havia tudo, mas apenas tudo o que normalmente há em qualquer horta. No entanto, o que mais produzia a horta do Senhor Costa eram frutos. Frutos de várias qualidades, de tamanhos diversos, de formas e feitios diferentes e de sabores diversificados. Frutos coloridos, maduros, apetitosos com os quais o Senhor Costa se regozijava e que faziam crescer água na boca a quantos passavam, caminhavam, rodopiavam e cirandavam junto à horta do Senhor Costa, sem poder lá entrar ou sequer colher um único fruto que fosse. É que o Senhor Costa, para a proteger dos assaltantes, construíra um alto e robusto muro ao redor da sua horta.
O Senhor Costa vivia feliz, com a sua horta. Passava lá os seus dias, não apenas a cavar, a sachar, a arrancar ervas e a juntar pedregulhos mas sobretudo a cuidar das árvores de fruto, a podá-las, a adubá-las, a chegar-lhes terra e estrume e, sobretudo a defendê-la de vendavais e intempéries. Depois, nos dias de bonança, o Senhor Costa sentava-se à sombra das árvores da sua horta, a saborear a frescura reconfortante das suas folhas, a deliciar-se com o perfume adocicado das suas flores, a deleitar-se com o colorido aveludado dos seus frutos ou simplesmente a ouvir o sibilar melódico do vento nos seus ramos.
A horta do Senhor Costa era uma verdadeira maravilha! Um éden, um paraíso!
Mas um dia, o dia mais triste da sua vida, o Senhor Costa, como tantos senhores Costas e muitos senhores com outros nomes, impelido pela necessidade de dar uma vida melhor aos seus filhos, foi obrigado a partir, para longe, isto é, a emigrar para a América. E a horta deixou de pertencer ao Senhor Costa. Vieram senhores Pereiras, senhores Silvas e senhores Machados e vieram senhores com outros nomes, mas nenhum deles cuidou da horta como cuidava o Senhor Costa. E com o passar do tempo e dos anos, na horta dos senhores que não eram Costa, as árvores foram murchando, as folhas amarelecendo, as flores definhando e os frutos apodrecendo. Finalmente veio um Senhor que também se chamava Costa, mas que não era nem parente nem amigo daquele Senhor Costa que no início desta história era o dono da horta, e tão mal cuidou e tanto se desinteressou e tão pouco protegeu a horta que outrora fora do outro Senhor Costa, que ela embraveceu, encheu-se de ervas daninhas, de mondas, de silvados, de cana roca, de faias e de incensos e desfigurou-se de tal maneira que, passados muitos anos, quando o Senhor Costa regressou da sua prolongada estadia na América, podre de rico, já nem sequer reconheceu o local onde outrora se situava a sua horta, a tal horta que tinha sido sua, que cuidara com desvelo e dedicação, que estava sempre a abarrotar de árvores carregadinhas de frutos coloridos, maduros, apetitosos com os quais se regozijava, naqueles tempos e a fazerem crescer água na boca de quantos passavam.
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LEALDADE
"Estamos todos num mesmo barco, em mar tempestuoso, e devemos uns aos outros uma terrível lealdade. "
(G.K.Chesterton)
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CRISTÓVÃO MANDINGA
Na Fajã Grande, antigamente, utilizavam-se frases, expressões ou ditos, uns reveladores duma douta sabedoria popular, outros com intenção de fazer pouco, gozar ou menosprezar o trabalho, a capacidade ou valor dos mais fracos ou dos que se pretendia fragilizar. Uns e outros eram autênticos adágios, iguais a muitos outros vulgarizados não apenas nas ilhas açorianas como noutras regiões do país. Um dito ou adágio muito utilizado na Fajã, com significado depreciativo da força ou capacidade de alguém, era o “Cristóvão Mandinga” que rezava assim:
“Cristóvão Mandinga,
Com quatro não pode
E com cinco respinga.”
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VALÉRIO FLORENSE
Valério Florense ou Florence, como consta no “Dicionário de pseudónimos e iniciais de escritores portugueses” é o pseudónimo literário de um dos mais ilustres filhos da Fajã Grande, o padre José Luís de Fraga e que, ao lado de Pedro da Silveira, ocupa lugar de destaque, entre os mais importantes vultos da cultura açoriana, naturais da ilha das Flores.
Filho de “Ti’Antonho do Alagoeiro”, nasceu em 1901, numa casa da rua da Tronqueira, na década de cinquenta já transformada em palheiro de gado, mas passou a sua meninice e foi criado na casa do Alagoeiro, situada no lugar do mesmo nome, lá para além das últimas casas da Fontinha, rua que actualmente herdou o seu nome. A casa situava-se ao lado daquele descansadouro onde parei tantas vezes para tomar fôlego, aliviar-me dos molhos que trazia às costas e, sobretudo, beber a água fresquinha que saia duma bica encravada num muro, que corria, permanentemente, a manter cheio o poço onde as vacas bebiam. Dizem os que o conheceram e privaram com ele que “era um menino forte, inteligente e bonito. De boa estrutura orgânica, escapou com vida, enquanto os seus cinco irmãos mais velhos, como ele todos Josés, tinham descido a rua empedrada da Fontinha nos seus caixõezinhos de cedro, de branco alvaiados”. Abandonou a ilha para fazer a tropa e estudar e “anos mais tarde voltou, revestido da glória e de feitos intelectuais, para dizer a missa nova na velha igreja de São José; cheia à cunha, a freguesia em peso lhe foi beijar a mão”. Precursor dos padres operários dos anos 60, pois, “apesar de padre ia lavrar com os lavradores, caiar a Igreja com os caiadores, à pesca com os pescadores”. Para além de sacerdote humilde e exemplar, distinguiu-se como músico exímio, como orador eloquente e como poeta de sensibilidade requintada. Deixou um espólio notável, quer a nível musical quer literário, encontrando-se o mesmo, felizmente, em boas mãos, até que alguém com responsabilidades a nível da cultura açoriana o divulgue junto dos seus conterrâneos, prestando-lhe a homenagem que merece.
Tive o privilégio de privar com ele no último verão em que visitou a Fajã Grande. Apesar de vítima de Parkinson, revelava uma lucidez, uma sabedoria e uma cultura invejáveis aliadas a uma bondade, a uma ternura e a uma sensibilidade adoráveis. A cegueira de que também sofria levara o Bispo da Diocese a autorizar que celebrasse apenas as duas missas, naquele tempo ainda em latim, com textos mais pequenos e que ele sabia de cor: a missa votiva de Santa Maria in Sabato e a missa Quotidiana dos Defuntos. Naquela altura habituado eu a revirar, de trás para frente e da frente para trás, compêndios, manuais e outros calhamaços em latim, ofereci-me para ler, em vez dele, as partes variáveis da missa, da liturgia de cada dia, permitindo-lhe assim recordar e saborear a liturgia da palavra e a mensagem litúrgica de cada dia. Também adorava passear, sobretudo, pela tardinha. Pressentindo-o, dispus-me a acompanhá-lo. Percorremos e voltamos a percorrer o Areal, as Furnas, o Porto, o Delgado e a Bandeja e creio que se lhe tivesse proposto subirmos a Rocha ele teria aceitado de bom grado, talvez para me fazer a vontade. Foram longos e quotidianos passeios, durante os quais muito aprendi sobre história, sobre literatura, sobre cultura geral e, muito especialmente, sobre poesia.
Nascido na Fajã Grande, Lajes das Flores, a 6 de Outubro de.1902 e tendo falecido em Fall River, nos Estados Unidos da América, a 21 de Junho de 1968, José Luís de Fraga fez os estudos primários na Fajã Grande, depois de estudou no Liceu de Angra do Heroísmo e cumpriu o serviço militar obrigatório. Só então deu entrada no Seminário de Angra, completando o curso de Teologia e ordenando-se sacerdote, em 1927. Depois de ter ensinado naquele Seminário a disciplina de Música e exercer o cargo de prefeito, foi colocado nas paróquias de Santa Luzia, ilha Terceira, Castelo Branco, ilha do Faial, e Santa Cruz das Flores, esta em 1929. Por razões que provocaram a contestação dos paroquianos, em 1940, foi transferido para a paróquia da Ribeira Seca, ilha de S. Jorge. Onde se manteve até ao início da década de quarenta. Em 1943, foi colocado na vila do Nordeste, ilha de S. Miguel, sendo, em 1947, transferido para a paróquia de São Pedro, da cidade de Ponta Delgada e em 1957, para Vila Franca do Campo, onde exerceu as funções de ouvidor.
Quando, em 1968, visitava os Estados Unidos da América, morreu no seguimento de um acidente de viação.
Com o pseudónimo Valério Florense, deixou colaboração dispersa por jornais e revistas. No jornal As Flores, publicou, entre outros, os conjuntos de artigos Cartas de Longe e Impressões de uma Viajem a Roma. Deixou várias obras que interessam à música popular, fez recolha do folclore açoriano. Publicou vários livros de poesia, sobre a qual Ruy Galvão de Carvalho escreveu: « (...) é de feição geralmente tradicional, e os temas que trata inspiram-se em fontes populares, regionais e bíblicas. É, além disso, uma poesia descritiva e sugerida, evocativa e circunstancial, sem todavia deixar de ser pessoal e sincera, íntima e espontânea.»
NB - As citações não referenciadas são da sobrinha M. A. Fraga.
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BARBAS DE MOLHO
Na Fajã Grande, antigamente, poucos eram os homens que usavam barba grande. Pontificava tio Mateus Felizardo. Apesar das barbas, na verdade, serem pouco comuns, ali, como em muitas outras localidades portuguesas, usava-se a expressão por as barbas de molho para significar que a pessoa em questão devesse ter paciência, ficar alerta, ser prudente. Mas esta expressão, por outro lado, também podia ser utilizada para qualificar alguém que se encontrasse parado, sossegado, num estado de tranquilidade: "Tira as barbas de molho e vamos ao trabalho!"
A origem desta expressão parece remontar à Idade Média e até à Antiguidade, tempos em que a barba era símbolo de honra e poder. Nesses tempos remotos, quando a barba de um indivíduo era cortada por outro, isso representava uma grande humilhação. Essa ideia chegou aos dias de hoje na expressão "deixar as barbas de molho", que significa ficar de sobreaviso, prevenir-se. Como a barba era tão importante na altura, colocá-las de molho seria então uma forma de proteger a própria honra.
Outra expressão também relacionada com barbas era uma sob a forma de provérbio "quando vires as barbas do teu vizinho a arder, põe as suas de molho", significando que todos devemos aprender com as experiências dos outros.
Outra expressão também muito utilizada era a de chamar barbas à China a um indivíduo desprezível, abominável.
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FIM
A deserção é a recusa
inautêntica
da partilha.
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COMO SE ENGANAVAM GALINHAS E APANHAVAM POMBAS
Na Fajã Grande, antigamente, todas as casas tinham galinhas. Geralmente eram criadas num curral, junto à porta da cozinha e alimentadas com milho e com o farelo que sobrava do peneirar da farinha. Com ele, juntando-lhe água, fazia-se uma massa a que se adicionavam couves cortadas, cascas de batatas picadas ou outras sobras de comida, a fim de que o cardápio das ditas cujas ficasse mais suculento. Era também no curral que ficava o poleiro, ou seja, um casoto de madeira encravado na aba duma parede, ou uma espécie de furna debaixo de um pátio, com o respectivo linheiro, o que permitia recolher os ovos com muita facilidade. No entanto, quem tinha hortas, por entre as terras de mato, tapava-lhes bem as paredes, amarrava e cosia as asas às galinhas e soltava-as na horta, com a dupla vantagem de lhes retirar as ervas daninhas e de lhes ir lançando algum estrume.
Quando meu pai arrendou uma horta, na Cancelinha, foi decidido que para lá haviam de ir as nossas galinhas. Coube-me a mim, por ser o mais novo e ainda pouco afoito a trabalhos mais pesados, a tarefa de lá ir todos os dias, a fim de lhes reforçar o menu e recolher os ovos.
As atrevidas, porém, apanhando-se à solta decidiram que haviam de pôr os ovos, aqui e além, onde bem entendessem, muito escondidinhos e mudando de sítio em cada dia, o que me obrigava a uma tarefa árdua, incómoda, demorada e por vezes improfícua para lhes descobrir os esconderijos. Era costume, para evitar tal estouvado procedimento, deixar-lhes um ovo no linheiro inicial e assim, as parvas, cuidando cada uma que ele era seu, iam, à vez, lá desovar os restantes. Não me podendo dar ao luxo de utilizar semelhante estratégia, pois todos os ovos eram poucos para alimentar tantas bocas famintas lá em casa, decidi arquitectar uma nova artimanha que substituísse aquele estratagema.
Assim, resolvi ir a uma lixeira que havia nas Furnas, por cima das Mexideiras e junto ao Caneiro, para onde se atirava tudo o que eram velharias inúteis: camas, portas, caldeirões, roupas, ferros velhos, etc. Revirei, procurei, rebusquei e lá encontrei a metade da mão de uma porta, em loiça, muito branca e redondinha, em forma de meia-lua. Não podia ter sido mais eficiente a minha pesquisa! Lavei-a, limpei-a, meti-a no bolso e, no dia seguinte, levei-a para a Cancelinha, na esperança de que seria a última vez que procuraria ovos pelos mais esconsos recantos da horta. Dos vários linheiros que descobri, seleccionei o melhor, recolhi os ovos, ajeitei-o muito bem e coloquei-lhe a metade da mão da porta de tal maneira direitinha e com a parte bojuda virada para cima, de forma a simular, perfeitamente, um ovo.
E não é que a partir desse dia nunca mais tive que procurar ovos por outros sítios ou em novos linheiros.
Que parvas eram aquelas galinhas!...
Também, nas Flores, muitas casas, sobretudo as que tinham crianças, criavam pombas. Quem não as tinha caçava os pombos-bravos, de bela plumagem, totalmente cinzenta azulada, com o dorso e asas da mesma cor, sendo o pescoço, no entanto, de um tom quase esverdeado. Apesar de serem, habitualmente, frequentadores das buracas e concavidades dos outeiros e das rochas, quase ao lado das cagarras e dos coelhos, onde pernoitavam e nidificavam, pombos e pombas bravos desciam, de vez em quando, ao povoado, ou na procura de pitéu que por aqui ou por ali fosse deixado esquecido, ou para surripiar o milho que se punha a secar nos pátios traseiros das casas ou até para ir esgravatar na terra após a sementeira e retirar da terra um ou outro grão que ainda não começara a germinar. Era nessa altura que a ganapada, na qual eu me incluía, se dedicava, com perícia e engenho, à sua caça.
O estratagema era simples. Um cesto de vimes, sobre o qual se colocava uma pequena pedra, um “focho”, com aproximadamente um palmo de altura, um grande cordel, feito geralmente de fios de espadana atados uns aos outros nas extremidades e um bom punhado de milho. Colocava-se o cesto com o fundo voltado para cima, num pátio ou noutro lugar liso ou com uma superfície plana e, levantando-lhe a borda de um dos lados, colocava-se o pau a estacá-lo, de forma que ficasse meio levantado e com a altura suficiente para entrada de uma pomba. Depois espalhavam-se os grãos de milho em fila, desde fora até à área interior do cesto, estendíamos o mais disfarçadamente o cordel, porque as pombas eram umas grandes desconfiadas e escondíamo-nos bem longe dali, a segurar a outra extremidade do cordel, mas em lugar que nos fosse permitido ver o cesto e o milho. Não tardava muito e, tentada pelo milho, lá estava uma pomba, por vezes duas ou três. Iam comendo um grão após o outro até uma ficar totalmente debaixo do cesto. Nessa altura, num de repente, puxava-se o cordel, o “focho” caía assim como o cesto de vimes, ficando a pomba presa lá debaixo. Depois era só preciso arte e engenho para levantar levemente a beira do cesto e apanhá-la. Mas a tarefa não era fácil. É que as malditas e espertalhonas, muitas vezes fugiam, quer quando sentiam puxar o cordel quer quando tentávamos apanhá-las debaixo do cesto. Mas mesmo assim ficavam presas algumas. Uns utilizavam-nas como pitéu e diziam que depois de temperadas e fritas eram melhores do que coelho, outros como eu, faziam uma gaiola de madeira e ali as colocavam, dando-lhe milho e alguns mimos de maneira a que, aos poucos, se fossem domesticando, tornando mansinhas, podendo assim criá-las em cativeiro, a fim de não só recolher os seus ovos, mas também apreciar a sua nidificação e a criação dos filhotes.
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A VAQUINHA VITÓRIA
Quando eu era criança, era, sobretudo a minha avó materna, que me contava a maioria das estórias. Muitas foram as que ouvi. Lamentavelmente, de poucas me recordo, talvez porque, sabendo ela muitas, poucas vezes se repetia, o que obviamente, dificultava o armazenamento na minha memória pueril. ainda pouco treinada.
Havia, no entanto, uma tão pequenina, tão pequenina que nem chegava a ser estória e que me contava muitas vezes, sempre que lhe pedia e ela ou não dispunha de tempo ou não tinha disposição ou paciência para tal.
Rezava assim a tal estória:
“Era uma vez um rei e uma rainha,
Queriam fazer papinhas,
Mas não tinham farinha!
Mas tinham uma vaquinha,
Chamada Vitória.
Um dia, a vaquinha morreu
e acabou-se a história.”
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MATER TERRA
(Mater Terra)
depositei mais uma flor sobre a tua campa
e, apesar do negrume tumular que te envolvia
e do silêncio dolente em que te banhavas,
pareceu-me que sorriste.