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GAZELA

Sexta-feira, 29.06.18

Os suspiros matinais eram um estorvo, um empecilho, dir-se-ia uma espécie de sufoco atiçado ao vento, sem convicção, sem vivacidade e sem comprometimento. Uma espécie de martírio, mas um martírio gratificante, sensível e bem delineado. No horizonte perplexo e indefinido, apenas e somente, uma gazela, uma gazela sem asas, mas veloz como o vento e rápida como o pensamento. Corria deslumbrante e perturbadora, nas madrugadas ainda pouco clareadas, por vezes sem luz, muito antes de nascerem aqueles suspiros sufocantes, estilhaçados, a tingirem-se de pranto, a perfumarem-se de temeridade, imersos, definitivamente, numa estranha e perversa mortalha de perplexidade. Gazela das madrugadas, a deslizar por veredas inverosímeis, por ruas desertas, a açular-se em enigmas perfumados, sibilantes, loiros, a provocar encantos maviosos e a verter murmúrios silenciosos, disfarçadamente suplicantes. Mas o arfar das madrugadas era dolente, aflitivo, quase aniquilador.

Depois, a gazela das madrugadas escuras entrava na floresta, ora ocultando hesitações ora lançando-se em êxtases céleres, a sulcar as veredas sinuosas, onde vento soprava com uma intensidade intempestiva, desfazendo neblinas, solidificando sentimentos, imergindo-se em metamorfoses e suplícios, libertando anseios tempestivos. Cada vez mais veloz e voadora, a gazela! Gazela das árvores floridas, dos pântanos a abarrotar de folhas de nenúfar, dos caminhos ermos com as paredes enegrecidas pelos sonhos incoerentes das nuvens, correndo junto às margens de um rio de águas cinzentas.

Perdia-se na floresta, a gazela dos encantos repressivos, mesmo sabendo que o rio estava ali ao seu lado, que podia navegar nas suas águas, caminhar ao longo das suas margens, atravessar as suas pontes, talvez mesmo ouvir o cantar sibilante e dolente das árvores circundantes. Mas limitava-se apenas a atravessar a floresta, veloz como o vento e rápida como o pensamento, esta gazela com o destino preso por um sufocante raio de luz.

Gazela sem rio, sem floresta, sem árvores, sem ruas mas a abarrotar de desejos indefinidos, de aspirações misteriosas, de vontades inexpressáveis!

As madrugadas não eram contínuas, nem sequer sustentáveis mas tinham o sabor acre das noites claras, possuíam o perfume amarelado dos arraiais em festa e alvejavam-se em ondas sonoras de sentimentos adormecidos.

Gazela intrépida e voadora, gazela dos desertos e das cavernas, das florestas e dos bosques, dos rios e das madrugadas. Incoerente, altiva, corajosa, ousada e afoita! Gazela sem medos, sem receios, cuidando que o destino nunca havia de lhe cravar as garras implacáveis, funestas e aniquiladoras.

Mas um dia nefasto, incongruente e destruidor, chegou! Gazela ferida, presa, sem destino, atingida pela crueldade de um caçador, a cercear os inesgotáveis encantos das suas velozes corridas pelas madrugadas e a confundir e a aniquilar, para sempre, os inesgotáveis e inconsequentes suspiros matinais.

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publicado por picodavigia2 às 00:07

BRACÉU

Segunda-feira, 25.06.18

Que nascia muito bracéu no mato da Fajã, que a sua apanha era uma espécie de dia de festa e que era excelente para fazer a cama ao gado no Inverno a fim de se tornar, depois, em estrume fertilizante para os campos agrícolas eu não tinha dúvidas. Agora que o bracéu se chama Festusca jubata e que pertence à família dos Poaceae é que não fazia a mínima ideia, se não tivesse recorrido ao site da Universidade dos Açores, Base de Dados, Biodiversidade.

Ora o nosso Festusca jubata nascia e crescia no mato, logo ali por cima da Rocha, fazendo jus do seu nome, pois partilhava-o com o do próprio lugar onde florescia. Como as terras onde desabrochava eram grandes e ficavam longe das casas, a sua apanha, corte e acarretamento demorava um dia inteirinho. Lá se partia de madrugada, em ranchos, os homens ainda noite escura, carregados com foices, bordões, gavelas de espadana, ganchos de ferro e cordas, enquanto as mulheres, acompanhadas pelas crianças, seguiam já mais ao romper do dia, derreadas ao peso dos cestos a abarrotar de comida, transportados à cabeça sobre grossas rodilhas, arrastando os fedelhos pela mão.

A manhã era de ceifa contínua, árdua e cansativa que o Festusca jubata não era de brincadeira. Era rijo e escorregadio e as foices não eram lá grande coisa, por vezes, mal amoladas e mais adequadas para cortar manteiga do que bracéu. Depois era necessário fazer as paveias, amarrá-las em molhos com as folhas de espadana e acarretá-los para o cimo da rocha, para junto do arame, com uma pausa para o almoço, pelo meio.

Terminada a ceifa, após a amarração, os pesados molhos do Festusca jubata eram acarretados, colocados e empilhados no cimo da Rocha, junto ao arame. De imediato uns desciam a rocha em passos rápidos a fim de, colocando-se estrategicamente junto ao arame no cruzamento da Ribeira, retirassem os molhos atirados pelo arame, para que nenhum dificultasse o deslizar do que se lhe seguia. Mais tarde seriam colocados em carros de bois e transportados para as “casas velhas” ou de arrumos, onde eram guardados até serem utilizados no Inverno

O deslizar contínuo e ininterrupto de dezenas e dezenas de molhos de bracéu no arame proporcionava um espectáculo deveras inolvidável. Os molhos colocados lá no alto um a um, dançavam airosamente ao longo do arame, umas vezes atingindo enorme velocidade, outras deslizando vagarosamente e, por vezes até paralisando por completo a meio do trajecto. Tal percalço exija que fosse arremessado com força gigantesca um outro molho que com o seu impacto, batendo fortemente naquele que havia parado a meio do arame, o havia de voltar a por em movimento. Só que, por vezes a vontade de resolver o imbróglio era tanta e a força de arremesso tão exagerada que os molhos, ás vezes até em conjuntos de dois, três ou mais que ali se iam acumulando, paralisados, ao chocarem uns com os outros, provocavam uma espécie de repentina e maravilhosa chuva de folhinhas de bracéu que se iam diluindo e perdendo sob o verde dos socalcos e das ravinas e o negro pétreo dos andurriais.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

DESESPERADAMENTE À PROCURA DA LAVRADA

Quinta-feira, 21.06.18

O Manuel Branco morava numa casa bastante isolada, lá para os fundos da Tronqueira, quase no cimo da ladeira do Calhau Miúdo. Era um homem pobre, honrado e trabalhador mas muito ingénuo e simplista. Esta última qualidade permitia que a garotada da freguesia, com mais frequência do que a tolerada pela paciência humana, lhe pregasse algumas partiditas, umas inocentes e jocosas outras malévolas e arreliadoras. O Manuel, porém, paciente e com uma muito limitada capacidade de revolta e indignação, lá ia vendo, ouvindo, calando e suportando tudo.

Certa noite de que se haviam de lembrar os ganapelhos? O Manuel, mesmo ali em frente da casa onde morava, tinha o “ai Jesus” da sua árdua labuta quotidiana: um cerrado de milho do melhor que havia, bem crescido e verdinho, já espigadote, à espera do estio para que amadurecesse, fosse apanhado, “encambulhado” e pendurado no estaleiro, a fim de lhe garantir o sustento da família ao longo de todo ano. Ao lado da casa e ao fundo do pátio ficava o pequeno palheiro onde guardava a Lavrada, a única vaca que possuía, na qual havia pendurado ao pescoço uma campainha de som inconfundível aos ouvidos do dono, como era uso e costume na Fajã.

Alta noite, enquanto o Manuel e todos lá em casa dormiam regaladamente, vão os “monços” ao palheiro, tiram a campainha do pescoço da Lavrada e escondem-se entre o milho, fazendo propositadamente algum barulho e simulando um badalar da campainha, a imitar, na perfeição, as lentas passadas do animal.

Foi a mulher quem primeiro acordou assarapantada: 

- “Credo! Jasus! Virge Santísema! Home, acorda! Nan oives? A nossa Lavrada assoltou-se e está a dar cabo do nosse milhinhe tode”!

O Manuel deu um pulo e, mesmo em “ciroillhas”, com a Jesuína atrás, em “naitigão”, a insuflar-lhe coragem, assomou à porta e, ouvindo a campainha da vaca, cuidou que de facto ela se soltara do palheiro e andava por entre o milho. Muito aflito e atrapalhado, atravessou o pátio que separava a casa da terra, saltou o muro e começou a chamar pelo animal, na tentativa de o apanhar:

- “Lavrada! Lavrada!  Ou vaca, ou”!

Contendo as gargalhadas, continuaram os atrevidotes a simular com o toque da campainha que era o animal que por ali andava, fazendo estalar de vez em quando e propositadamente um ou outro pé de milho. O Manuel entrou desesperadamente na terra, correndo como um louco à procura da vaca, chamando por ela e incentivando-a a parar. Mas quanto mais corria e chamava, mais o som da campainha se afastava e fugia.

- “Ora essa”! – Resmungava a mulher – “Uma vaca assim tan mansa! Parece que tem o diabe no corpe”!

Procuraram toda à noite mas a vaca nunca apareceu. Só de madrugada quando regressavam a casa, quer porque já não ouvissem o som da campainha quer porque começassem a desconfiar de que ali havia marosca, foram ao palheiro. Encontraram a porta bem fechada com a taramela e a Lavrada amarrada e deitada no seu canto, muito calma e tranquila, a ruminar a sua ceia, como se nada tivesse acontecido, mas… sem a campainha ao pescoço. Só então deram conta do embuste.

E a campainha? Bem, essa só apareceu na altura da apanha do milho.

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publicado por picodavigia2 às 08:31

O JOÃO GRANDE E O JOÃO PEQUENO

Quarta-feira, 20.06.18

Numa pequena freguesia viviam dois compadres muito amigos. Como ambos se chamavam “João”, o povo para os distinguir chamava ao mais alto e esguio João Grande, enquanto alcunhava o outro, por ser mais baixo e roliço, de João Pequeno. Cada qual vivia sozinho e cada qual tinha apenas por companhia a sua velha avó. Uma outra grande diferença, porém, os distinguia: é que o João Grande era muito rico e poderoso, pois para além de possuir uma boa casa, muito dinheiro e muitas terras tinha também muitos animais e, sobretudo muitos cavalos, dos quais gostava muito. Eram a menina dos seus olhos. Ao contrário o João Pequeno era muito pobre e possuía apenas uma pequena courela junto à sua humilde casa, onde, com a ajuda de um único cavalo, lá ia cultivando apenas o necessário para o seu sustento e o da sua avó. Dinheiro, nem vê-lo. No entanto, como eram grandes amigos, sempre que o João Pequeno necessitava de qualquer coisa ia ter com o compadre João Grande que de imediato lhe disponibilizava alimentos, cavalos para o trabalho ou até dinheiro.

Certo dia, ao pretender lavrar o pequeno e único campo que possuía junto de casa e cuidando que o não conseguiria fazer apenas com o seu cavalo, foi pedir emprestados alguns cavalos ao compadre João Grande. Este sem demoras cedeu-lhe quatro dos melhores cavalos que possuía.

O João Pequeno, todo contente, juntou-os ao seu e atrelou-os todos ao arado. Toca a lavrar o campo muito bem lavrado que as semeaduras querem a terra revolvida e fofa. Como os animais puxassem o arado com alguma lentidão, o João Pequeno incentivava-os a andar mais depressa, chicoteando-os ao de leve e dizendo:

- P’rá frente meus cinco cavalos!

O compadre João Grande passou por ali, parou, ouviu e não gostou rigorosamente nada. Como o compadre insistisse, repreendeu-o:

- Ó compadre, não fale assim com os animais. É que, bem vistas as coisas, apenas um dos cinco cavalos é seu. Os outros quatro são meus.

Mas o João Pequeno não lhe dava ouvidos e repetia constantemente com maior intensidade de voz:

- P’rá frente meus cinco cavalos!

O João Grande avisou mais uma vez, uma outra e mais uma outra, mas nada. O compadre permanecia na sua e repetia insistentemente, em altos gritos:

- P’rá frente meus cinco cavalos! P’rá frente meus cinco cavalos!

O João Grande perdeu a paciência. Saltou a parede, entrou no campo, forçou o compadre a parar o seu trabalho e, olhando de frente com um misto de zanga e raiva, ameaçou:

- Ó compadre, não volte a falar assim com os animais. Ouviu? Ouviu? Se o compadre repete essa maneira de tratar os animais retiro-lhe os meus e não acaba de lavrar o seu campo, nem de fazer as sementeiras.

Mas não o João Pequeno fez ouvidos de mercador, isto é, não ouviu nem quis ouvir, e continuou na sua, repetindo com um tom de voz cada vez mais elevado:

- P’rá frente meus cinco cavalos!

Uma mecha em palha não faria maior incêndio. Compadre João Grande enfureceu-se por completo. Agarrou o compadre João Pequeno pelo pescoço e como era muito valente, levantou-o ao ar duas e três vezes, sentenciando em altos berros:

- Mais uma vez, compadre, mais uma única vez e mato o seu cavalo! Ouviu bem? Uma única vez! Ouviu? Se o compadre repete essa conversa mais uma vez, mais uma só vez, terá o seu cavalo morto.

Apesar da terrível ameaça o compadre João Pequeno não alterou a forma de se dirigir aos cavalos e repetiu com um tom de voz altíssimo:

- P’rá frente meus cinco cavalos!

Ainda não tinha pronunciado a última palavra e o João Grande já tirara do bolso uma enorme navalha que trazia sempre consigo. Enfiando-a à socapa no pescoço do cavalo do João Pequeno deitou-o por terra. O pobre animal estremeceu, estremeceu, esticou as quatro patas e ficou inerte no chão, esvaindo-se numa enorme poça de sangue O João Grande retirou-se levando consigo os quatro cavalos que havia emprestado ao compadre.

Só então o João Pequeno caiu em si. É que nunca pensara que o compadre fosse capaz de tamanha barbaridade.

- E agora? O que será de mim, sem cavalo e com a terra por semear? – Murmurava, o João Pequeno, para os seus botões.

Sentou-se no chão, inclinou a cabeça sobre o arado e pensou, cogitou, magicou, matutou… mas nada. Algum tempo depois, decidiu tirar a pele ao seu cavalo, cuidando que a poderia vender e ganhar assim algum dinheiro. Mesmo sendo pouco daria para o seu sustento e da sua avó, durante uns dias. E depois? Bem, depois havia de se amanhar, com a ajuda de Deus.

Esfolou cuidadosamente o cavalo, enterrou o corpo no campo, secou a pele e meteu-a num saco, pondo-se de imediato a caminho, na mira de a vender.

Andou, um dia, dois dias e nada. Ao anoitecer do terceiro dia já estava cheio de fome e de sono e sem dinheiro. Bateu à porta da primeira casa que viu. Uma bela mulher recebeu-o e logo se apaixonou por ele. O marido não estava em casa e a mulher para conquistar o visitante, sabendo que ele estava cheio de fome, matou um galo, depenou-o, temperou-o e meteu-o no forno a assar, acompanhado de uma bela travessa de batatas.

Inesperadamente e enquanto os dois aguardavam que o galo assasse para iniciar o bródio, chegou o marido. A mulher ficou muito aflita e não quis de forma nenhuma que o consorte se apercebesse de que tinha assado, propositadamente, um galo para aquele desconhecido intruso. Por isso mentiu-lhe, dizendo que o homem tinha acabado de chegar e que estava cheio de fome pelo que ia preparar uma refeição para os três. Sentaram-se à mesa a comer cada qual uma simples tigela de leite com pão de milho esmiolado, acompanhada de um pedaço de queijo fresco.

O João Pequeno, porém, nunca deixava longe de si o saco com a pele do cavalo, por isso, enquanto comia, colocou-o debaixo da mesa. De vez em quando suspendia a refeição, dava um pontapé no saco, ordenando de forma simuladamente provocadora:

- Cala-te!

Daí a pouco, dando novo pontapé no saco, repetia:

- Cala-te! Já ouvi. Cala-te!

Como repetisse a cena várias vezes, o dono da casa começou a intrigar-se e não se contendo, perguntou:

- O que tem o senhor aí debaixo da mesa?

- Nada, nada, absolutamente nada – esclarecia o João Pequeno, simulando grande atrapalhação.

Mas como continuasse a dar pontapés no saco e a dizer “cala-te”, o dono da casa voltou a indagar:

- Desculpe amigo! Alguma coisa estranha o senhor tem aí? Gostava de saber o que é que o amigo tem dentro desse saco e que está continuamente a mandar calar.

Que não era nada de especial, que não podia dizer, que era um segredo. Lá se foi desculpando o João Pequeno. Mas o dono da casa, cada vez mais apreensivo e curioso da casa, foi taxativo:

- O senhor está em minha casa, por isso exijo que me explique o que tem debaixo da mesa.

O João Pequeno, muito a medo, lá foi explicando, dando sempre mostras de uma cada vez maior atrapalhação:

- Bem se assim o exige… Mas eu não posso… Eu não devo… Mas… Bem… Como o senhor é o dono da casa onde tenho sido tão bem tratado, sempre lhe vou dizer…

- Ora diga, diga! – Solicitava o dono da casa, cada vez mais curioso.

- Eu tenho aqui um animal, um animal muito especial. Mas muito especial, mesmo muito especial – esclarecia timidamente o João Pequeno. - Um animal misterioso. É que adivinha todos os meus desejos e concretiza-os de imediato. Tudo o que eu desejo, discretamente, claro, ele arranja-me logo.

O dono da casa nem queria acreditar. “Um animal misterioso em minha casa!”

Muito admirado, olhava para baixo da mesa, olhava para o João Pequeno e voltava a olhar para baixo da mesa.

- Então e o que adivinhou ele agora que o senhor deseja? – perguntava cada vez mais intrigado.

- Como ele sabe que eu agora gostava era comer um galo assado em vez desta tigela de sopas, está a dizer-me para ir ao forno, pois tem lá dento um galo assado, prontinho a comer, com batatas e tudo.

- Não pode ser! – Exclamou o dono da casa.

- Lá que pode, pode. Vá o senhor ver.

Levantou-se o homem, destapou o forno e qual não foi o seu espanto ao ver lá dentro um galo assado, acompanhado com umas batatinhas muito louras e apetitosas. De olhos esbugalhados, pegou na travessa, tirou-a do forno e, incrédulo, colocou-a em cima da mesa. Uma delícia! Comeram, voltaram a comer e por fim o homem pediu com ar autoritário:

- Tem o amigo que me vender esse animal.

- O quê!? Era o que faltava! Isso é que nunca! – Retorquiu o João Pequeno.

O homem insistia, insistia e o João Pequeno fazia-se cada vez mais rogado:

- Era o que faltava! Vender um animal destes! Nem todo o dinheiro do mundo o pagaria!... Então ia eu lá vender um animal que adivinha os meus desejos e, mais do que isso, me disponibiliza as formas de os concretizar.

Porém como a insistência do homem fosse cada vez maior, o João Pequeno a pouco e pouco foi cedendo ao ponto de aceitar a proposta do homem:

- Pois muito bem! Já que insiste tanto… Mas terá que ser por muito, muito dinheiro. Um saco cheio de moedas não o pagaria. Mas como é para o senhor que me tratou tão bem…

Negócio fechado. O homem dava-lhe um saco cheio de moedas e o animal era dele.

- Mas atenção, muita atenção – esclarecia o João Pequeno. – Não se esqueça de que nunca poderá abrir o saco para ver o animal. Se o fizer ele morre imediatamente.

O homem bateu à porta de vizinhos, parentes e amigos a pedir dinheiro emprestado. Depressa arranjou o dinheiro necessário para encher o saco.

Bicho para lá, dinheiro para cá e o João Pequeno regressou a casa podre de rico, que é como quem diz, carregado de dinheiro. Tratou da avó que durante a sua ausência definhara a olhos vistos e resolveu ir a casa do compadre João Grande pedir-lhe uma rasoira para medir as moedas e assim saber quantos alqueires de dinheiro tinha.

O João Grande, que já mostrara grande arrependimento pela malvadeza que fizera ao compadre, prontificou-se de imediato para lhe emprestar não só a rasoira mas tudo aquilo que o compadre precisasse. Mas pensou com os seus botões: “ Que irá este unhas-de-fome medir com a rasoira? É que este miserável não tem terras para produzir cereais, nem quintas para cultivar frutos, numa palavra, não tem onde cair morto!” Por isso, pretendendo saber o que ele iria medir, untou o interior da rasoira com graxa de porco para que no regresso trouxesse algo agarrado que lhe permitisse saber o que o pobretanas do compadre ia medir.

Foi-se o João Pequeno e regressou no dia seguinte devolvendo a rasoira que, para espanto do João Grande, trazia uma moeda colada no fundo.

- Mau! Mau! Então compadre, sem nada de seu, sem cavalo, sem terra semeada e anda a medir dinheiro aos alqueires?

Depois, em tom ameaçador, ordenou com firmeza:

- Sempre me vais dizer onde arranjaste tanto dinheiro? Caso contrário, dou cabo de ti.

Que não, que isso é que nunca e que era um segredo que não podia revelar. Tanto insistiu João Grande e tanto negou João Pequeno que aquele enfurecendo-se agarrou-o pelo pescoço e ameaçou:

- Ou dizes ou morres.

O João Pequeno, revelando sempre uma simulada relutância, lá foi dizendo que era um segredo mas que se ele o deixasse em paz lhe contaria. O compadre suspendeu as hostilidades e ele de imediato confessou:

- Pois foi muito simples, compadre. Não se lembra de matar o meu cavalo? Esfolei-o antes de o enterrar e fui vender a pele.

- E quanto te deram por ela?

- Um saco de dinheiro. Um grande saco cheio de moedas! Era tanto, tanto que nem consegui contá-lo por isso lhe vim pedir emprestada a rasoira para o medir.

O João Grande nem esperou mais um minuto. Foi ao estábulo e duma assentada matou os seus vinte cavalos dizendo de si para si: “Ora, ora! Se com a pele de um encheste um saco, eu com a peles destes encho vinte, bem cheiinhos. Ai se encho!.”

De seguida esfolou os cavalos, enterrou-os e pôs as vinte peles num carro. Em seguida dirigiu-se para a cidade mais próxima, cujas ruas percorreu durante dias e dias, apregoando com voz muito alta:

- Quem compra peles de cavalos? Quem compra peles de cavalos?

Mas vendê-las é que não! Nem uma! Além disso, a algazarra que fazia era enorme e o cheiro das peles nauseabundo. Chegou a tal ponto que as pessoas da cidade se fartaram de o ouvir, ainda por cima acompanhado daquele cheiro horroroso. Queixaram-se dele à polícia que, de imediato o prendeu durante alguns dias, por andar a perturbar a ordem pública.

Uma vez libertado, o João Grande regressou a casa furioso jurando a pés juntos que se havia de vingar do compadre maldito que mais uma vez o tinha enganado e ainda por cima originado que tivesse sido preso.

Dirigiu-se a casa do João Pequeno, sem passar pela sua, com denodadas intenções de lhe dar uma tareia que lhe havia de servir de lição para o resto da vida. Como o João Pequeno não estivesse em casa e o João Grande não pudesse conter a fúria, deu a tareia prometida na avó do compadre. A pobre mulherzinha que já era velha e doente ficou em tal estado de debilidade que pouco depois faleceu.

Quando o João Pequeno voltou para a casa e viu a avó morta ficou sem saber o que fazer. Vingar-se no compadre não podia porque ele era muito mais forte.

Resolveu então sentar a avó muito bem sentada num carrinho de mão, pintou-lhe a cara com pó-de-arroz para que não parecesse morta e começou a andar pela rua. Passado algum tempo parou o carro em frente de um botequim e entrou para beber um copo de vinho. Pagou dois copos: bebeu um e pediu ao empregado a fineza de servir o outro à sua avó, velhinha e doente que não podia andar e que estava sentadinha num carro, ali mesmo fora da porta.

O empregado acedeu e aproximou-se da velha com o copo para que esta bebesse. Mas a velha nem sim nem sopas, não bebia nem dizia nada, pese embora o empregado insistisse entusiasticamente. Tanto insistiu e a velha tanto não aceitou que o homem perdeu a paciência dando-lhe dois valentes bofetões. A velha caiu do carro e estatelou-se no caminho, enquanto o João Pequeno de mãos na cabeça, gritava:

- Ai! Ai! Que grande desgraça! Você matou minha avó!

O homem bem lhe pedia que se calasse para não ser preso mas o João Pequeno cada vez gritava mais alto e mostrava maior aflição. Tanto gritou e tanto ameaçou de o denunciar à polícia que o homem lhe prometeu uma enorme quantidade de dinheiro se ele lhe perdoasse e não fizesse queixa do sucedido.

O João Pequeno fez-se muito rogado. Que não havia dinheiro que pagasse a sua avó. Que era a sua única companhia. Que a amava muito. Que isto e que aquilo. Mas como o homem lhe suplicasse insistentemente acabou por aceitar. Foi sepultar a avó e regressou a casa de novo carregado de dinheiro.

Como fizera da primeira vez, foi pedir a rasoira ao compadre João Grande. Este voltou a untá-la com graxa, a fim de descobrir o que o compadre ia medir novamente. Quando o João Pequeno foi devolver a rasoira, ficou colada uma moeda no fundo, a qual voltou a despertar a curiosidade e o espanto do João Grande.

- Então não se lembra de matar a minha avó? Pois bem! – Esclareceu o João Pequeno. - Vendi-a morta e deram-me um grande saco de dinheiro por ela.

- “Então e eu não tenho também uma avó? E se a matasse? Vendia-a e ficava rico como ele.”

Se bem o pensou melhor o fez. Dois tabefes na avó, abafaram-na imediatamente. Colocou-a num carro, dirigiu-se de novo à cidade e começou a gritar pelas ruas:

- Quem compra uma mulher morta? Quem compra uma mulher morta?

Nem um dia! Nem uma manhã! Mal tinha dado a primeira volta à cidade e a polícia a prendê-lo. Desta vez a prisão foi muito mais demorada.

- “Deixa estar que mas vais pagar bem pagas. Quando daqui sair dou cabo de ti.” pensava o João Grande na prisão.

Saiu da cadeia algum tempo depois dirigindo-se, furibundo, a casa do João Pequeno.

- Desta vez não me escapas! Nunca mais me vais enganar.

Agarrou-o, meteu-o num saco, amarrou o saco muito bem amarrado e partiu com a intenção de o atirar ao rio.

Porém, como era muito religioso, ao passar por uma igreja parou para rezar e pedir perdão a Deus pelo acto que ia cometer. Pousou o saco à porta da igreja e entrou para fazer as suas orações.

Sentindo-se sozinho o João Pequeno começou a gritar mas de maneira a que o compadre não o ouvisse, lá dentro:

- Eu não quero casar com a filha do rei! Eu não quero casar com a filha do rei!

E voltava a repetir:

- Eu não quero casar com a filha do rei!

Um pastor que por ali passava com um enorme rebanho de ovelhas ouviu-o, parou e perguntou:

- O que estás a dizer?

O João Pequeno explicou que estava dentro daquele saco porque queriam obrigá-lo a casar com a filha do rei, mas não ele queria nem podia porque já era casado.

Então o pastor propôs-lhe de imediato uma troca:

- Eu desamarro o saco, tu sais, eu entro para o teu lugar, voltas a amarrar o saco,  ficas com o meu rebanho e eu vou casar com a filha do rei em vez de ti.

Se bem o disse melhor o fez. O pastor soltou o saco, o João Pequeno saiu cá para fora, o pastor meteu-se dentro do saco e o João Pequeno amarrou-o, de forma que o compadre não notasse nenhuma diferença.

Quando terminou a sua oração, o João Grande voltou a por o saco às costas, caminhando em direcção ao rio. O pastor bem perguntava:

- Quando é que caso com a filha do rei?

- Não demora muito. Vais casar já! – Respondia o João Grande.

Ao chegar junto do rio, amarrou uma enorme pedra ao saco e zumba, lá foi pedra, saco e pastor, tudo para o fundo do rio.

Pelo caminho, de regresso a casa cruza-se com um enorme rebanho. Qual não foi o seu espanto ao verificar que o pastor que o conduzia era, sem tirar nem por, o compadre João Pequeno que acabara de atirar ao rio.

- Tu por aqui!? Com todas estas ovelhas!? Ainda há pouco te atirei ao rio…

- E atiraste muito bem – retorquiu o João Pequeno. – Foi um grande favor que me fizeste. Se não me tinhas atirado não teria agora todas estas ovelhas que apanhei lá bem no fundo do rio.

- E há mais ovelhas lá? – Perguntou avidamente o João Grande.

- Se há! São às centenas, aos milhares. Eu não trouxe mais porque não quis. Mas já me arrependi. Devia ter trazido muitas mais. Se me atirasses novamente era capaz de trazer outras tantas como estas.

- Essa sorte não tens tu – respondeu de imediato o João Grande. - Quem vai buscar todas as outras que lá estão, sou eu.

Voltou costas, correu para junto do rio enquanto o compadre gritava:

- Na parte mais funda, compadre! Na parte mais funda do rio é que há muitas.

O João Grande ávido de riqueza e de bens, ao chegar junto do rio, procurou a parte mais funda e de um pulo atirou-se e de lá nunca mais saiu, enquanto o João Pequeno viveu feliz por muitos e muitos anos, pastoreando as suas ovelhas.

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publicado por picodavigia2 às 09:04

NOITE DE TEMPORAL NO MAR ALTO

Terça-feira, 19.06.18

Certa vez em que viajava no Cedros, levantou-se um medonho temporal durante a viagem entre o Faial e as Flores. Logo ao sair da Horta os passageiros haviam sido avisados de que estava previsto mau tempo para a noite que se aproximava e, logo após ao sair da doca, o vento forte já começava a agravar o estado do mar, que piorava a cada momento, provocando um balancear contínuo e exagerado do pequeno navio. Ainda não tinha passado o morro de Castelo Branco e comecei a enjoar, a sentir tonturas, vómitos e enormes dificuldades em segurar-me em pé. O Cedros navegava cada vez mais açulado pelo forte vento norte e com um ranger assustador dilacerava ondas enormes e altivas, provocando grandes balanços e sucessivos solavancos, que assustavam sobretudo mulheres e crianças. Sentindo que ia vomitar e não tendo onde, desloquei-me para o salão da terceira classe na tentativa de descobrir lugar onde me recostasse e onde, à socapa, me aliviasse. O salão estava repleto de crianças a chorar, de mulheres a gritar e de homens a gemer. Quase todos vomitavam e muitos outros estavam prestes a fazê-lo. O salão exalava um cheiro insuportável e o ar lá dentro era pestilento a ponto de sufocar. Saí cá para fora, para respirar o ar puro e fresco, acompanhado dos salpicos do mar. Mas sentia-me em piores condições do que quando entrei. O mar piorava a cada momento o que agravava as condições de navegabilidade do navio que balouçava cada vez mais assustadoramente. O Faial havia desaparecido há muito no escuro da noite e no negrume do temporal. À minha volta a maior parte dos passageiros vomitava. Eu não pude evitá-lo. Uma vasca terrificante e nauseativa apoderou-se de mim e o meu corpo, trémulo e inerte, estatelou-se no convés duro e molhado. Ali fiquei por algum tempo. Salpicado com os respingos da água salgada que a proa do navio ao sulcar as ondas projectava no ar e que caíam em chuveiro sobre o convés e sobre mim, reanimei. Decidi aproximar-me mais da borda do navio e permanecer ali com o rosto exposto ao ar frio da noite e à água salgada. Assim sentia-me mais aliviado. Mas o meu corpo continuava inerte e sem forças. Um marinheiro viu-me e veio tirar-me dali, avisando que era perigoso, pois, na opinião dele, alguma vaga maior poderia molhar-me por completo ou até arrastar-me. Amparado pelo homem, sentei-me em cima de uns sacos molhados que por ali estavam mas onde continuava a ser bafejado pelo fresco da noite que me ia aliviando a náusea e a aflição. A noite continuou num suplício permanente, angustiante e desanimador.

Alta madrugada, adormeci. Quando acordei eram nove horas e o navio balouçava assustadoramente no alto mar, bem longe das Flores, à espera que tempo acalmasse para poder fazer serviço na ilha. Caso contrário, estávamos condenados a regressar ao Faial.

E já passava muito do meio-dia quando o barco, timidamente, se aproximou da ilha e a muito custo lá foi despejando passageiros e mercadorias para os frágeis batéis que o circundavam, os quais opondo-se a ondas altíssimas e assustadoras lá conseguiam transportar os passageiros para o cais do Boqueirão, de Santa Cruz.

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publicado por picodavigia2 às 08:08





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