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ELOGIO DA ADEGA

Segunda-feira, 09.07.18

No Pico e mais concretamente no lugar da Prainha, freguesia de São Caetano, a adega familiar assumiu, desde os tempos mais remotos, um papel importante e de destaque no quotidiano dos seus habitantes, nos seus costumes, tradições e até na sua própria economia. Embora vocacionada desde sempre como local de fabrico do vinho (ao menos naquelas que tinham no seu interior ou anexo um lagar) e, sobretudo, da sua guarda, a adega foi-se transformando, ao longo dos tempos, numa espécie de granja onde, juntamente com o vinho, o bagaço e a angelica e, misturados com barricas e garrafões, se guardavam murmúrios resplandecentes, devaneios indecifráveis e aromas dulcificados, ou num granel onde, aos odores opacos e perplexos do mosto a fermentar, se adicionavam e misturavam refluxos candentes, ressonâncias mágicas e ecos retumbantes, de memórias e tradições, ou seja, num local de sonhos idílicos, de fascinações extasiantes e de enlevos arrebatadores. Uma espécie de epicentro da sublimidade, do enlevo, das ausências impostas, das negações forçadas e de carências postuladas, tudo isto motivado por uma insularidade rural, assumida, rústica e mística. Por isso é que a adega, ao longo dos tempos, se foi transformando também em local de romarias permanentes e contínuas nas tardes de domingos e feriados, ou de visitas diárias, à noitinha, em dias de semana e de trabalho, umas e outras, prolongadas, estendidas e ramificadas, vezes sem conta, pela noite dentro, por vezes, até pela madrugada. Além disso, muitas vezes, romarias e visitas eram acompanhadas de opíparas refeições, transportadas em cabazes, à cabeça de mulheres robustas, moçoilas empavesadas, onde não faltavam os inhames, a linguiça, os torresmos, o peixe frito ou assado e o bolo do tijolo, enquanto muitas outras se reduziam a um simples mas delicioso e revigorante caldo de peixe, acompanhado com o vinho, bebido nas tradicionais tigelinhas de barro, extraído, directamente, das barricas, ou, outras vezes a estagiar e a criar lastro no canjirão. Muitas, porém, eram as idas à adega, apenas encharcadas de vinho, espevitadas com bagaço ou adocicadas com angelica, mas vazias de vitualhas. Mesmo assim não deixavam de ser alegres e folgazonas. Era a safra destemida e sublime do lazer, ora juntando familiares, ora reunindo amigos. Era o encontro e reencontro, a partilha e a entrega, a troca de afectos, sentimentos e, sobretudo, de palavras. Era sobretudo por altura de aniversários e das festas do Natal, da Passagem do Ano, da Páscoa, do São Martinho, dos Santos e outras que a adega assumia o seu estatuto de “catedral” do convívio, da confraternização, do lazer e da desmitificação, entregando-se a um devaneio por vezes tresloucado, eufórico e alucinado mas sempre generoso, concertante e fraterno.

Mas era sobretudo na época das vindimas e na altura da apanha dos figos que as adegas de São Caetano se enchiam de gente, de trabalho e de folguedos enquanto, nos caminhos circundantes e nas veredas intercalares circulavam pessoas numa labuta árdua e cansativa mas gratificante e desejada. Era por essas alturas que os ares se perfumavam com os odores adocicados do mosto e dos figos a fermentarem, enquanto aqui e além fumegavam, por entre os telhados, sabores magnificentes, gustações sumptuosas e paladares opulentos.

A adega quando assolada pela presença do dono, tinha as suas portas sempre abertas, sempre disponíveis aos que ali passavam para “entrarem e tomarem alguma coisa”. A recusa a tão persistente e institucionalizado convite era, geralmente, tomada como ofensa. Era imperioso entrar em todas e beber um pouquinho em cada uma.

Com o tempo, porém, a adega abdicou da sua pureza original, una, única, própria e inexaurível. Construídas, inicialmente de pedra rústica, com chão de rama de pinheiro, as adegas populares e tradicionais depressa se alteraram, substituindo a sua negrura basáltica pelo branco da alvenaria e o chão de terra atapetado de rama de pinheiro por azulejos e mosaicos. Revestiram as suas paredes de cimento branco, abdicaram da vela ou da lanterna em prol da electricidade, encharcaram-se de água canalizada e até deixaram que se destruíssem as “casinhas” existentes ao seu redor. Numa palavra metamorfosearam-se em vivendas e mansões.

Por isso, hoje, ali, no Caminho do Meio, tudo é diferente e nada é igual. Circula-se de automóvel, enchem-se as veredas de eras, cana roca e silvados, transformam-se costumes e locais e até se festeja o São Pedro, com direito a nicho com imagem. Mas uma coisa é certa: o objectivo primordial, primitivo, único, insubstituível da adega ainda se mantém, porquanto cada uma delas, hoje como ontem, se constitui num verdadeiro “santuário”, onde o vinho é deus e o bagaço e a angelica as primícias originais da sua omnipotente e todo-poderosa obra criadora.

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publicado por picodavigia2 às 15:58

A LENDA DA CRUZ DA CALDEIRA

Quarta-feira, 04.07.18

Muitas eram as “estórias” misteriosas, enigmáticas e assustadoras, supostamente verídicas e acontecidas aqui ou além, em tempos idos, por toda a ilha das Flores que se contavam aos serões em que as pessoas se juntavam nas casas umas das outras para conversar e jogar às cartas mas também e sobretudo para se ajudarem reciprocamente nas tarefas agrícolas e domésticas, como era o caso do “encambulhar” e descascar o milho, ou cardar e fiar a lã. Uma das mais repetidas e frequente era da “Cruz da Caldeira”

Rezava mais ou menos assim a dita cuja: Certa noite na Caldeira um grupo de pessoas, uns da Caldeira outros Fajazinha, faziam serão numa casa da Caldeira, descascando milho. Conversa daqui, conversa dacolá e o assunto à balha foi o do medo de andar pelos caminhos à meia-noite e sobretudo o de assobiar a essa hora, coisa que ninguém era capaz de fazer. Era crença comum entre o povo de que a meia-noite era a hora do diabo e quem assobiasse àquela hora corria sérios riscos de ser levado pelo “Cão Preto” para as profundezas do abismo.

Foi então que um homem, com ar de valentão e muito “anamudo” apostou com os outros que, à meia-noite em ponto, ia à Quebrada da Muda, junto à Ribeira de António Luís, dar três assobiadelas, precisamente quando batesse a meia-noite. Os outros que ele não ia, ele que ia. Aposta combinada e lá foi. Ficaram todos calados, cheios de medo e à espera dos assobios. À meia-noite em ponto ouviram o primeiro muito forte. Logo a seguir, ouviram o segundo muito fraco e já nem ouviram o terceiro. Ficaram todos apavorados. Alguns ainda pensaram em ir à ribeira mas não tiveram coragem. Ninguém dormiu naquela casa, durante o resto da noite, à espera do homem que nunca regressou. De madrugada foram à ribeira procurá-lo mas viram apenas restos de sangue, percebendo então que teria sido arrastado pelo Diabo para um enorme buraco que havia na ribeira. Procuraram-no por todo o lado, mas o homem nunca mais apareceu. Esse terá sido o motivo pelo qual foi construída uma cruz, a Cruz da Caldeira, que ainda hoje existe, precisamente no sítio onde foi encontrado o primeiro sangue, e que se situa no antigo caminho entre a Caldeira e a Fajãzinha, antes da descida da Rocha dos Bredos, sobre o vale da Fajãzinha.

 

Um outro conto do mesmo livro e que desperta a atenção é o último com o título de “Nota Única”, onde narra a “estória da Asiladinha da Assomada” e que dedica ao seu “amigo e irmão (no sacerdócio) Francisco Vieira Bizarra”, nessa altura pároco na Fajã Grande. Atendendo que Nunes da Rosa dedica cada um dos seus contos a uma personagem, como ao Visconde Borges da Silva, a Marcelino de Lima, a Cónego Amaral, etc, apenas ao Padre Bizarra o faz nestes termos, o que significa que terão convivido bastante e que Nunes da Rosa terá visitado a Fajã Grande com muita frequência.

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publicado por picodavigia2 às 00:24

OS ABAFADORES DOS BULES DO CAFÉ

Terça-feira, 03.07.18

Se éramos nós crianças que, noutros tempos, com a nossa imaginação e criatividade construíamos os nossos brinquedos, valha a verdade que, na Fajã Grande, também, pela mesma altura, eram os adultos, com não menos imaginação e outra tanta ou mais criatividade, que construíam grande parte dos objectos necessários ao seu trabalho e às actividades e lides que o seu quotidiano comportava. Entre os muitos e variados objectos de fabrico caseiro ou artesanal estavam os abafadores dos bules de café que existiam em todas os lares e que eram fabricados geralmente pela dona da casa, sendo que a maior parte revelava grande imaginação e assumida criatividade.

Como é por demais sabido, na Fajã Grande o café era, muito provavelmente, a bebida mais consumida. Bebia-se o apetitoso e aromático líquido, feito com uma mistura de favas, chicória e café puro, geralmente misturado com um pouquinho de leite. As favas eram cultivadas por cada um e depois de secas e torradas eram misturadas à chicória e aos grãos de café, comprado geralmente em menor quantidade do que a chicória porque esta era mais barata. Todos estes ingredientes eram misturados e moídos no moinho de café que existia em quase todas as casas, aparafusado numa das paredes da cozinha.

Bebia-se muito café ao longo do dia: ao levantar, pela madrugada, ao longo da manhã, ao jantar, de tarde e por vezes até à ceia ou à noite antes de ir para a cama. Muitas vezes, sobretudo quando se ceifava feitos, lavrava os campos ou sachava o milho, as crianças ou as mulheres iam aos campos levar café acompanhado de pão ou bolo com queijo aos homens que ali realizavam aquelas árduas e cansativas tarefas.

Assim e devido às dificuldades e demoras no acender do lume e ferver a água, muitas vezes com garranchos verdes e alagados, era impossível fazer café a cada hora e a cada momento. Por isso, tornava-se imperioso e necessário que em cada casa houvesse permanentemente café quentinho, mas sem ser feito na altura, o que apenas se conseguia com recurso aos “abafadores”, geralmente feitos pelas mulheres.

O abafador, que mantinha o café quente por muitas horas, era feito com dois pedaços velhos de fazenda da mais grossa possível, geralmente retalhos de casacos ou “camurças” já não usados e que eram cosidos de maneira a formar uma espécie de saco, sendo que a extremidade oposta à da abertura ou era oval ou cóncava, conferindo assim uma ar de maior graciosidade ao abafador que ficaria exposto diariamente em cima da mesa da cozinha ou da “amassaria”, com o objectivo não só de manter o café quente mas também de agradar aos olhares das visitas, sempre curiosas e sempre a meter o nariz em tudo. Depois de feito o simulado saco, por vezes até com bordados laterais, fazia-se um outro também de pano velho e preferencialmente de lã, que serviria de forro e ao qual se dava a forma do primeiro mas que era bastante menor, tendo mais ou menos o tamanho de um bule de café. De seguida eram metidos um no outro e colocava-se no espaço que restava entre ambos, devido à sua diferença de tamanho, uma enorme quantidade de chumaço feito de lã e trapos velhos de forma que o interior ficasse bem cheio como se fosse uma almofada de sofá. Cosidas a boca de um saco à do outro, o abafador ficava completo e pronto a ser colocado sobre o bule, cobrindo-o na totalidade e protegendo-o do frio. Os abafadores adquiriam formas diversas e diversificadas. Uns, os formados por sacos convexos, adquiriam a forma de um semicírculo, enquanto os outros, os de forma convexa, se assemelhavam a uma fralda de criança estendida na corda, a secar. Havia, no entanto, abafadores mais sofisticados e muito mais perfeitos sob o ponto de vista estético, não apenas pela melhor qualidade do tecido mas também pela excelência do chumaço e, sobretudo, pelo formato diferente que lhe davam, sendo que os havia até em forma de galo sentado, com bico, crista e tudo.

O uso dos abafadores diminuiu bastante, nos finais da década de cinquenta, com a chegada à Fajã das garrafas termos ou “garrafas de calor”, como se dizia, inventadas no longínquo ano de 1892 pelo escocês James Dewar.

Mas creio que actualmente os abafadores terão desaparecido por completo por culpa dos modernos, práticos e rápidos microondas.

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publicado por picodavigia2 às 09:33





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