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A MANHÃ DO DIA SEGUINTE

Domingo, 30.09.18

Todos os anos, no verão, chegavam à freguesia muitos visitantes. Uns vinham do continente, outros do Faial ou da Terceira, alguns de São Miguel e muitos, a maioria, da América. Quase todos eram antigos habitantes. Uns haviam partido há muitos anos, outros há pouco. Mas todos regressavam de visita, para matar saudades, para mostrar aos filhos ou netos as belezas da terra onde haviam nascido e, no caso dos americanos, geralmente para pagar uma promessa ao Senhor Espírito Santo.

Um verão houve, em que entre outros, chegou à freguesia um casal vindo de Lisboa. Visitavam a terra dos seus avós. Pela primeira vez. Hospedaram-se na casa de uns parentes e vinham acompanhados duma filha. A menina devia rondar os vinte anos. Chamava-se Elizabete, nome muito esquisito e estranho na freguesia. Elizabete era muito bonita. Rosto macio, alvo de neve a esboçar, permanentemente, um delicioso, meigo e ternurento sorriso. As faces eram rosadas e os olhos esverdeados. O cabelo muito sedoso e quase louro. Prendia-o na nuca com uma enorme prisão, acentuando-lhe um cariz juvenil, pleno de graciosidade. O seu corpo, o seu andar, todos os seus movimentos se envolviam, permanentemente, num manto de simplicidade, fluidez e elegância. Muito delicada e comunicativa, sorria a quantos com ela se cruzavam, mesmo que lhe fossem totalmente desconhecidos. Resplandecia alegria, irradiava elegância e beleza e falava com toda a gente. Sem vaidade, sem orgulho. A rapaziada da freguesia não se continha! Entrou num frenesim, não disfarçando olhares, desejos e vontades. Numa palavra, encantaram-se com a menina. No entanto quem mais se empolgou e fascinou com Elizabete foi o filho do João Cambado, o Bernardo.

Bernardo era um pobre diabo! Tinha tudo para ser desafortunado e infeliz. A natureza dotara-o de uma fealdade telúrica, duma hediondeza profunda. Um Quasimodo sem corcunda! Além disso, coroara-o uma calvície prematura e enraizara-se-lhe uma acentuada falta de visão, corrigida, parcialmente, com uns óculos de ares redondos e lentes grossíssimas que lhe tornavam os olhos minúsculos, quase invisíveis. Para atenuar as limitações visuais, colocava, frequentemente as mãos sujas e gretadas sobre os olhos e assim ficava, por momentos, a olhar fixo para o que quer que fosse, numa tentativa de descortinar melhor o que pretendia ver. A casa uma lástima e a família um desmazelo. O pai um pobretanas que não tinha onde cair morto. Não tinha terras e quase não trabalhava para fora, que ninguém o queria, nem a dias nem muito menos de empreitada. A mãe uma desleixada que nem da casa ou das roupas cuidava. Viviam numa miséria aberrante. Sustentava-os a caridade dos vizinhos e algum alqueire de milho que o rapaz conseguia ao dar dias para fora. Mais pela generosidade de quem o contratava do que pelo trabalho que produzia. De resto, pão de milho rijo que nem um corno, por vezes bolorento, migado num café de favas era cardápio diário em casa do Cambado. Pai e filho a pingar lama, mãe a cramar das aduelas e a casa que nem se poderia entrar. Um louvar aos céus!  

Certa tarde, porém, ao regressar a casa, Bernardo decidiu passar frente à casa onde moravam aqueles senhores do continente que tinham uma filha muito bonita. Vira-a, dias antes no arraial da Casa de Baixo e ficara fascinado. No momento em que passava, Elizabete surgiu à janela. Viu-o e sorriu. O mais belo sorriso que Bernardo, apesar da sua genética cegueira, alguma vez vira. Mais se fascinou e mais se empolgou pela rapariga. Não se conteve e foi desabafar com o Câncio. Estava apaixonado.

- Quem é a feliz contemplada? – Indagou o Câncio, com ar de gozo.

Ao princípio embatucou. Mas como o Câncio insistisse, muito envergonhado lá desembuchou. Ui! Que sortudo! E ela, e ela?

Mas o Câncio não era de se calar com o que quer que fosse, muito menos com tão deslumbrante segredo do Cambado. Um cesto de penas de galinha atiradas do cimo da Rocha, em dia de vento, não se espalhariam mais depressa. No dia seguinte toda a malta a meter-se com o palhoco do Bernardo.

Ele envergonhíssimodo. Vermelho que nem um pero. Uma chacota como nunca se vira.  

Mas nem por isso o Bernardo acobardou e, apesar, dos risos, dos gracejos e até dos insultos de alguns dos mais velhos, continuava a passar, sempre que podia, em frente à casa onde morava Elizabete. Contentar-se-ia em vê-la de longe, em saber que ela estaria perto de si. Por vezes, enganava-se. Confundia-a com outras mulheres, quando de mãos sobre os olhos, como se fossem palas a evitarem-lhe o sol, olhava apalermado para qualquer sítio onde cuidasse que ela estivesse.

Ela, no entanto, continuava a aparecer à janela, a andar por aqui e por ali. A lançar-lhe, na sua inocente simplicidade, sorrisos atrás de sorrisos. E ele, tentando alienar-se da chacota de que era vítima, começava a cogitar em qual seria a melhor forma de se aproximar dela, talvez de lhe entrar pela porta dentro, a fim de a ver melhor, de a observar de perto. Encheu-se de coragem. Um punhado de maçãs da horta do Rosa. Apanhar do caminho não é roubar. Além disso, não eram para ele. Eram para ela. Muito a medo, lá foi, com as maçãs. Ao lusco-fusco e pela porta da cozinha para que os ui monços não o vissem. Ninguém havia de fazer pouco dele. Bateu, esperou um pouco e ficou lívido. Era a mãe. A menina não estava. Numa segunda tentativa foi mais feliz. Levava-lhe uns cachitos de uva… Sabia que ela estava. Tentou entrar. Aproximou-se, mas a voz entupiu-se, o rosto avermelhou-se e corpo tremia-lhe. Ela muito aflita sem saber o que dizer ou o que fazer.

Nos dias seguintes amainou, pese embora soubesse que não conseguiria aproximar-se dela. Contentava-se em vê-la de longe, de saber onde ela estava. Depois, lá lhe foi batendo à porta, vezes sucessivas. Três cachos de uva, uma cestinha de batatas-doces e até dois ovos que a vizinha Glória oferecera à mãe. Não entrava. Tinha vergonha. Além do mais, ela nem o convidava para entrar. Sempre fora da porta, sempre sem grandes conversas, sempre com agraciamentos e um não se havia de ter incomodado. Por fim aquele sorriso que, desde a primeira vez que a vira, o cativara. Podia ser pobre, tosco, cegueta, mas tinha coração. Ai se tinha! Gostava dela! Amava-a de verdade. Uma paixão infinita e incontrolável como nunca tivera. Mas era uma existência negra a sua. Sabia que ela nunca havia de o amar e sabia que o verão estava a chegar ao fim, e ela, em breve, havia de regressar a Lisboa. Nunca mais a veria. Só lhe restava esta mágoa, este desgosto!

Quando na primeira noite depois de ela partir, ao deitar sobre aquele amontoada de casca de milho, coberto com uns cobertores avermelhados e muito sujos, os olhos toldaram-se por completa e grossas lágrimas perderam-se nos negrumes dos cobertores. Lá fora a noite escurecera por completo. Um nevoeiro denso, incomodativo que de tarde cobria apenas meia rocha, agora descia molhado sobre o povoado. Com ele viera um vento suave, quase impercetível. Fora da porta ouviam-se vozes. Mais distante o roncar emperrado do motor de um automóvel. Ao longe o silvo de um navio. Navegava à deriva. Sem mastros, sem velas, sem luzes e sem marinheiros. Transportava um único passageiro. Reconheceu-a. Era ela. Num ímpeto tresloucado lançou-se ao mar. Começou a esbracejar como se nadasse com quantas forças tinha, na mira de alcançar o navio, de a salvar. Impossível! Ondas altivas e alterosas impediam-no de nadar e uma bruma negra e densa não lhe permitia enxergar o que quer que fosse. Além de que a chuva, o vento e o frio, que se juntaram naquela hora, enregelavam-no por completo. Tremia dos pés à cabeça. Apesar de içado do meio de ondas alterosas tremelicava gemia, suspirava e aos poucos parecia que se perdia, por completo, no meio daquele enorme turbilhão. De repente, uma mulher de uma beleza rara e invulgar mas de mãos enormes, muito peludas e cheias de rugas impedia-o de se afogar. Aos poucos a escuridão desvanecia-se por completo. A chuva, também amainava. A mulher das mãos grandes e peludas partira. Bernardo acordou, sobressaltado. Era o início da manhã do dia seguinte.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O CILINDRO

Sábado, 29.09.18

Quando os empreiteiros que construíram o troço de estrada entre o Porto e a Ribeira Grande chegaram à Fajã, trouxeram apenas o material de apoio que a ilha não dispunha. O restante foi construído e fabricado por eles próprios, já depois de ali se terem fixado e iniciado as obras.

Foi o caso dos cilindros. Rasgado e alisado o trajecto por onde a estrada passaria era necessário colocar entre este e a camada de bagacina, uma outra de cascalho, obtido através de pedras partidas em pequenos pedaços. O cascalho, porém necessitava de ser bem prensado e comprimido a fim de que ficasse de tal maneira consolidado que a futura estrada não se desfizesse. Para tal eram necessários cilindros grandes, fortes e pesados.

O primeiro cilindro, de pedra e cimento. a ser construído, ali junto ao Matadouro, entre a Via d’Água e o Porto, era enorme e pesadíssimo. Só que o seu tamanho exagerado e o seu peso desmesurado, em vez de atingirem o desiderato para que havia sido construído, criaram um gravíssimo problema: é que o cilindro de tão pesado que era, nunca permitiu às limitadas forças motoras exentes na freguesia – uma camioneta e meia dúzia de juntas de bois atreladas umas atrás das outras – conseguissem movê-lo, um centímetro que fosse, do próprio lugar onde tinha sido construído. Perante tal e inultrapassável imbróglio, foi arquitectado um novo cilindro, mais pequeno e mais leve, enquanto aquele mamarracho ficou anos e anos ali parado, com a interessantíssima vantagem de apenas ter dado nome àquele local, que passou a chamar-se “o Cilindro”.

Há alguns dias telefonei a um amigo de infância e perguntei-lhe pelo cilindro, se ainda lá estava? Que não, que lhe tinham espetado umas velas de dinamite, desfazendo-o por completo e atirando os seus cacos para o mar, mesmo ali perto, na Baía d’Água! Estarreci de espanto e perguntei a mim mesmo: - “ Então não era de se guardar e conservar aquela relíquia e, talvez um dia quando se construísse ali uma rotunda, dado o local ficar num cruzamento de três caminhos (Porto, Furnas e Centro da Freguesia), se colocasse o dito cujo no meio da mesma a dar-lhe, para a posteridade, o nome de “Rotunda do Cilindro”?

Responda quem souber. Mas em minha opinião, o cilindro não merecia tão vil, abominável e energúmeno destino.

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publicado por picodavigia2 às 08:09

O SILÊNCIO DAS PEDRAS

Sexta-feira, 28.09.18

Aproximou-se da borda do velho batel e vomitou pela quinta vez. O Faial ainda ali, bem perto. As Flores, a milhas. Uma noite infinita à sua frente. Cambaleava, entontecido. Fez um esforço de recuperação e voltou à cadeira que, anteriormente, ocupara. Embora ardesse em enjoo, tentou acalmar os nervos e dormir. Só pela noite dentro o conseguiu. Quando acordou, o sol projetava-se em arco-íris sobre as Flores coberta, a norte, por uma chuva miudinha e persistente. Enfim! Depois duma intrigante viagem, entre o constante marulhar do oceano e a ronçaria do velho batel, chegava ao seu destino.

Oficial de pedreiro, oriundo de Vila Franca do Campo, esperava-o a gigantesca tarefa de erguer um templo em honra de São José, debaixo daquelas rochas, envoltas, permanentemente, em brumas e nevoeiros. Ali ficaria encurralado, invernos a fio, verões atrás de verões, impedido duma fuga até à ilha natal, simplesmente, a ver crescer, a passo de caracol, aquela obra monumental, à espera de que lhe chegasse o fim! Dessa, sim! Depois de pronta, dela havia de ufanar-se! Pela primeira vez, abdicara dos pequenos casebres de pedra negra, de Ponta Garça e da Ribeira das Tainhas, a fim de se dedicar a uma obra gigantesca, histórica. Nado e criado naquela que foi, durante o primeiro século de povoamento açoriano, a mais importante povoação da ilha de São Miguel, nela se fixando as principais instituições oficiais, como a Alfândega e a Ouvidoria, de onde o epíteto de "primeira capital micaelense", vagueava, sempre que lhe apetecia, à Lagoa, a Ponta Delgada, por vezes, até à vizinha ilha de Santa Maria. Mas ali, entre mar e rochas, estava numa espécie de jaula, preso como um condenado, sujeito ao isolamento, à solidão.

Não demoraram muito as agruras deste sufoco. Enganara-se. Por sorte ou por destino celeste, em frente ao enorme cerrado, onde se desenhavam os alicerces do novo templo, uma pequena casa, de pedra negra, ombreiras de tufo avermelhado, coberta de palha, mas de portas e janelas sempre abertas. Ela, a dona, a Júlia, sempre meiga, sempre sorridente, sempre conversadora, sempre disposta a vir trazer um velho jarro de barro cheio de água, fresquinha e apetitosa.

Júlia era o de que mais belo e atraente havia no povoado. Júlia era uma mulher ainda jovem, duma beleza rara aliada a uma bondade extraordinária e a uma generosidade inédita. Além disso era uma mãe extremosa, uma esposa dedicada, sempre pronta a ajudar o marido nas lides agrárias e nas sementeiras. Embora, aparentemente, imbuída de uma ar sério e de uma postura sóbria, Júlia era divertida, afável, enfim, um belo exemplo de virtudes e de dignidade. No entanto, o que mais, estranhamente, a caracterizava era o facto não apenas saber ler e escrever mas, sobretudo, ser possuidora duma cultura invulgar. Fora o vigário que, quando criança, a iniciara nas letras, despertando-lhe um interesse inusitado pela leitura. Quando jovem devorou, num ápice, quantos livros o vigário possuía na sua pequena biblioteca, desde os velhos manuais de teologia e das vidas de santos até aos mais interessantes clássicos da literatura mundial.

Foram os Miseráveis de Victor Hugo, a última novidade que o vigário adquirira, um excelente livro, daqueles que se leem duas ou mais vezes que moldou o coração de Júlia e a tornou extremamente sensível ao sofrimento dos outros. Era uma extensíssima narrativa, um romance interessantíssimo que Júlia devorou em menos de um mês e onde a ficção se envolvia com a história, com a filosofia, com a moral, com a religião. Narrava a vida de Jean Valjean e de variadíssimos personagens que com ele enriqueciam a narrativa, testemunhando a miséria e a pobreza da sociedade francesa da altura. Júlia leu-o três vezes. Leu-o e assimilou, na perfeição, a mensagem.

Enquanto isso, as paredes do novo templo iam-se erguendo lentamente. João Rodrigues, apesar de tolhido pelo cansaço, a abarrotar de calor e de sede, deslumbrava-se com a figura enigmática de Júlia que, apesar de, inequivocamente, o perturbar, aliviava-o mais do que a frescura da água do cântaro que ela trazia para lhe matar a sede. Um gesto inebriante de ternura, o dela. Um reconfortante auxílio para ele, que simplesmente ao vê-la estremecia e meneava como se fosse a chama duma vela acicatada pelo vento. Inicialmente, apreciava-a como mulher atraente, bela, generosa e solidária. Mais tarde, passou a vê-la como amiga solícita, íntima, sincera, desinteressada com quem partilhava tristezas, alegrias, solidão e conforto. Por fim um enorme tufão, vindo não sabia de onde, moldou-lhe a alma e atirou-o para uma paixão incontrolável, desmedida, infinita. Amava Júlia como nunca amara ninguém. E agora? Estava encurralado num beco do qual dificilmente sairia. E ela? Também o amava? Não sabia. Uma dúvida tremenda destruía-o, minava-o, assolava-o por completo. A porta sul do templo já se erguia destemida e arrogante, mas a obra emperrava num contínuo e desmesurado insucesso. Como o constante rugido do vento norte, em noites de invernia, amedrontava-o a enorme paixão que por ela sentia. Mais. Aniquilava-o, desfazia-o por completo. É verdade que as visitas e encontros se sucediam, mas eram rápidos e vagos, balanceados entre um sorvo de água, uma conversa incompleta, um olhar de compaixão, um desejo infinito de a possuir, de a amar. Mesmo quando ausente a sua imagem trespassava-o, turvando-lhe o olhar, entontecendo-lhe o espírito, apertando-lhe o coração.

Os dias passavam, ora amargos a quando da ausência dela, ora dulcificados com a sua presença. A fachada principal do templo já tomava forma e a torre sineira delineava-se, firme e altiva como que perfurando os ares, como que unindo a terra ao céu. Ele cada vez mais apaixonado, mais louco, mais desfeito não tanto pelo cansaço da obra mas, sobretudo, pela incerteza duma paixão, cuja correspondência era uma enorme indefinição. A sua alma sentia-se, em cada manhã, inundada de uma serenidade maravilhosa, harmonizando-se com cada gole de água fresca que ela lhe oferecia e que fruía com uma esperança inusitada. Abandonado à casualidade de frugais encontros saciava mais a agrura da paixão da alma do que a funesta sede do corpo. Era feliz, mergulhando apenas na esperança de mais um sorvo de água fresca que as visitas dela lhe proporcionavam. Se pudesse, ao menos, exalar, sequer, um pequeno afluxo de quanto lhe ia na alma, atingiria a plenitude. Mas pelo contrário, sempre que ela se aproximava com um ar de aparente indiferença, ele afrouxava, desfalecia, sucumbia perante a força do descalabro de mais uma visão.

Se algum dia ela não aparecia, invadia-o um silêncio profundo, uma mágoa lúgubre, um entorpecimento estranho. Nos dias em que ela sorridente e feliz, se aproximava de cântaro apoiado na cintura, João Rodrigues tentava em vão encontrar no instinto confuso dos seus sentimentos, na profundidade da sua paixão, a força necessária para abrir a sua alma e anunciar o seu sufoco. Subitamente, obstruía-se-lhe a voz, como se estivesse sob um pesado alçapão, uma laje basáltica, semelhantes às que agora alçava nas roldanas e muito a custo colocava nos degraus interiores da torre sineira.

Uma sascadela tremenda! Uma pedra enorme tricara-lhe o ombro, entrando-lhe na carne viva, provocando-lhe uma enorme ferida. Cerrou os dentes, e arqueou-se, num ímpeto., espargindo um grito de agonia. E foi a dor que lhe trouxe a coragem. Na manhã seguinte, quando Júlia, depois de muito hesitar, lhe bateu à porta do velho casebre, confessou, sem lhe dar tempo de retorquir ou sequer de se opor. Com quanto ímpeto pôde, lançou-se-lhe tudo quanto lhe ia na alma. Uma paixão do tamanho do mundo. Amava-a, com nunca amara ninguém. Pensava nela todo o dia, toda a hora, todo o momento e a sua imagem acompanhava-o durante a noite inteira. Quando a encontrava ele sentia-se na presença duma deusa. Feridas dolorosas lhe causavam a sua ausência. Eram farpas duras que lhe rasgavam o peito. Erguia-a, como soberana, no seu quotidiano. Impunha-se como senhora do seu destino. Adorava-a, como deusa, em cada momento. Soluços escarlates esmagavam-lhe o rosto. Ela, apática, indiferente, como se nada fosse.

Passada a turbulência da inédia confissão, João Rodrigue enxugou duas lágrimas que lhe corriam dos olhos e olhou-a. Então?! Como não recebesse qualquer resposta, recuou solitário à leviandade da sua ousadia. Mas era tarde. Ainda esperou, ansioso, uma derradeira resposta, uma reação final. Nada. Por fim, Júlia, com uma normalidade arrepiante, esclareceu. Sabia, desde há muito. Os seus gestos, as suas atitudes, os seus olhares, as suas palavras… Tudo o denunciava. Sabia muito bem que ele vivia sob um sufoco, enfeitiçado com a diabólica loucura duma paixão que nunca havia de ser correspondida, paixão que o cegava e lhe perturbava o entendimento, que o impedia de ter consciência dos seus gestos, das suas atitudes. A verdade, porém, é que ela não o amava, nem nunca haveria de o amar. Apreciava-o muito, tinha por ele uma enormíssima amizade. Nada mais.

João Rodrigues insistiu, continuou a despejar sobre ela quanto lhe ia na alma. As palavras, porém, fugiam-lhe. Hesitava e voltava a avançar de novo. O peito ardia-lhe, a cabeça já lhe andava à roda e parecia-lhe não sentir o próprio corpo. Envergonhado, desejava que aquele momento nunca tivesse existido. Mais duas lágrimas rolaram-lhe pelo rosto num sofrimento sem limites. Ela, insensível, fria, como se nada fosse. Condenava-o, recriminava-o, tentava afastá-lo.

Num ímpeto, João Rodrigues afastou-se. Ela fora muito clara: Não se importaria de continuar a visitá-lo, de acompanhá-lo, mas somente como amiga. Se pudesse até dava uma volta ao mundo na sua companhia, mas não o amava e, por certo, nunca havia de amá-lo. Como um náufrago no alto mar, João Rodrigues percebeu que a salvação só lhe viria do acaso. Afastou-se, desesperado, angustiado, a abarrotar de sofrimento e angústia. Apenas ouvia o silêncio sepulcral e aterrador das pedras que amontoadas em frente à fachada do templo aguardavam que as colocasse lá bem no alto, onde haviam de permanecer, silenciosas, para sempre.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O BIGA BIGA

Quinta-feira, 27.09.18

O Manuel Dionísio nasceu pobre e surdo-mudo. Como se isso não bastasse, pouco tempo depois, ficou órfão de pai e, mais tarde, de mãe. Ficou sozinho mas sobreviveu. Uma diminuta courela nas traseiras da casa onde morava, a dar um ou dois cestitos de batatas, meia dúzia de pés de couve e outros tantos de milho, a pequena e mal trabalhada quinta da Cabaceira a abastecê-lo de lenha, de maçãs e a permitir-lhe cultivar alguns pés de inhame e era tudo o que tinha. Num pequeno curral colado a uma das empenas da casa, que a outra era geminada com a do Catrina, ia criando uma ou duas galinhas. Era disto que o Manuel vivia!

Era meu vizinho, apenas com a casa do senhor Faroleiro a interpor-se entre a de meus pais e a dele. Conheci-o já de idade avançada. Passava as tardes à janela da sala que ficava voltada para o caminho, a dormitar calma e tranquilamente. Os rapazes bem lhe gritavam, mas acordá-lo, obviamente, é que não conseguiam.

Quer porque fosse pela idade de meu pai, quer porque a sua casa ficasse a dois passos da nossa, o Manuel fez do meu progenitor o seu maior amigo. Daí que ambos se entendessem perfeitamente. O Manuel também se afeiçoou a mim, embora nada entendesse do que ele me tentava dizer. Comunicava por gestos e apenas balbuciava uns sonantes “Biga-Biga”. Por isso ficou a chamar-se Manuel Biga-Biga ou simplesmente o Biga-Biga. Nunca ouvi ninguém tratá-lo por senhor…

Certa tarde em que estávamos em casa com a minha mãe bateram-nos à porta. Era o Biga-Biga e trazia dois ovos. Por gestos começou a explicar o porquê da sua visita e a razão por que trazia os ovos. Meu pai não estava em casa e minha mãe, inicialmente, não o entendeu. Só quando o Biga-Biga começou a movimentar o corpo para trás e para diante, como que a imitar um acasalamento, ela compreendeu ao que vinha - apenas queria trocar os dois ovos. É que tinha só uma galinha e ela estava choca. O Manuel queria criar pintos e, como sabia que minha mãe tinha galo, vinha pedir-lhe para trocar os ovos.

Minha mãe foi ao armário, guardou os dois ovos que ele trazia mas deu-lhe três.

Passado algum tempo o Manuel regressou a nossa casa. Trazia uma cestinha e dentro dela, três pintainhos. Descobriu-os e, por gestos, perguntou à minha qual deles queria.

Minha mãe não aceitou nenhum e o Biga-Biga voltou para casa, felicíssimo, com os seus três pintainhos.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

PASSO LENTO

Quarta-feira, 26.09.18

"É melhor um passo lento por caminho recto do que muita velocidade fora do caminho."

(São Leão Magno, teólogo e papa – sec. V)

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publicado por picodavigia2 às 16:23

UMA CEIA DE PAPAS

Segunda-feira, 24.09.18

O Grotas tinha sete filhas. Lindas quando crianças, depressa cresceram tornando-se ainda mais belas, o que desencadeava, diariamente, uma enxurrada de rapazes, a postarem-se em permanente corrupio, frente à sua casa.

Passado algum tempo, o necessário para que as moçoilas pudessem seleccionar os candidatos a futuros maridos, começou a faina dos enxovais e já se indicavam datas. Mesmo com sacrifício e esfoço, cada qual havia de escolher os seus padrinhos e ter, no dia escolhido, uma mesa lauta que em nada desdenhasse os maiores da freguesia. Muito preocupado com a felicidade das filhas, o Grotas analisou e voltou a analisar, minuciosamente, o currículo de cada um dos pretendentes.

Certa noite, antes de adormecer, comentou para a consorte:

- Gosto de todos, Jacinta, menos do filho do Estrinca. Aquilo não é boa cepa… Tem a quem sair…

A mulher bem o tentava demover da sua consumição. Que o rapaz parecia muito educado e trabalhador. Que os filhos não têm culpa do que fazem os pais e que a Cizaltina não era de se deixar enganar…

Mas convencer o Grotas é que não.

Quando as piquenas começaram a marcar datas, propôs-lhes, o pai, que se havia de fazer uma ceia, lá em casa. Que haviam, todos juntos, comer umas papas e que seria cada uma das filhas a convidar o respectivo namorado. Não podia haver desculpas. Todos tinham que comparecer.

As meninas ficaram muito contentes. Pela primeira vez teriam em sua casa os seus apaixonados, sentar-se-iam à mesa com eles, far-se-iam os pedidos e acertar-se-ia tudo para as bodas. No entanto e apoiadas pela mãe, não acharam nenhuma graça aquilo das papas. Não era comida que se apresentasse a ninguém de fora, muito menos aos seus futuros maridos. Uma ceia de papas era uma grandessíssima vergonha! Podia muito bem matar-se uma ou duas galinhas ou, pelo menos, cozer-se um caldeirão de couves com toucinho.

Mas o pai tinha-se decidido pelas papas e a sua vontade havia de ser cumprida.

Agendou-se a ceia para o sábado seguinte. À hora marcada todos chegaram enfarpelados nos seus fatos domingueiros.

Entraram, conversaram e aproximarem-se da mesa. Por determinação do pai, cada menina sentou-se ao lado do seu “mais-que-tudo”, enquanto ele se acomodava ao lado da sua Jacinta, cada vez mais envergonhada por apresentar, em momento tão solene, aquele miserável repasto.

Sentaram-se todos à mesa, tendo cada um à frente o seu prato fumegante e a transbordar, à espera de licença do dono da casa para iniciar o bródio. Eis senão quando, para espanto de todos, o Grotas levanta-se e com um sopro apaga a luz que frouxa e titubeante emanava de um candeeiro a petróleo, velho mas muito limpo e areado e com o vidro a brilhar como novo, gritando bem alto.

 - Agora, cada uns às suas.

Apesar de admirados com tal condescendência, todos se voltaram para as respectivas namoradas e aproveitaram aquele momento único, tão propício a uma intimidade a que não estavam habituados, para se abraçarem, para dizerem um segredo e alguns até para trocar o primeiro beijo. Todos… excepto um, o filho do Estrinca, que, abraçando-se ao prato das papas e agarrando-o com unhas e dentes, gritava bem alto:

 - Nas minhas ninguém toca! Nas minhas ninguém toca.

 

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publicado por picodavigia2 às 07:32

VINDIMAS NO DOURO

Domingo, 23.09.18

Em casa dos pais de Mariana, a vindima era feita no mês de Outubro. É verdade que não era uma folia tão animada e divertida como a desfolhada. As uvas não eram muitas mas o trabalho era árduo e pesado. O pai de Mariana passara meses e meses a podar os bacelos e a enxertar e a amarrar as videiras a estacas de pedra granítica e aos amieiros e carvalhos das beiradas que circundavam o campo onde o milho crescia a olhos vistos. Quando as vides já cobriam os bardos de um verde muito escuro e os cachos começavam a desabrochar, suspendendo-se graciosamente das latadas ou pendurando-se desordenadamente nas beiradas, o pai passava horas e horas de máquina a tiracolo a sulfatá-las uma a uma. Depois, já amadurecidas e muito apetitosas, as uvas eram colhidas e levadas em cestos para o lagar, onde eram esmagadas. Durante os dias seguintes exalava do mosto um cheiro perfumado, acre e doce que se propagava por toda a casa.

Para além destes dias verdadeiramente diferentes para Mariana, os restantes dias do ano eram de uma verdadeira monotonia. Levantava-se cedo e seguia para a escola, onde fazia ditados, resolvia problemas, estudava os rios e as serras, os reis e as batalhas, os vertebrados e invertebrados. Na hora de leitura a senhora professora juntava todas as meninas à volta da secretária, por trás da qual ficavam, ladeando um crucifixo pendurado na parede, as fotografias de Craveiro Lopes e Salazar, para lerem à vez e contarem histórias. Terminadas as aulas regressava a casa, ajudava os pais, tomava conta do Zezito e fazia as cópias e as contas que a Dona Ermelinda mandava. Apenas os domingos e os dias de festa em que os pais não trabalhavam no campo eram diferentes.

A festa que Mariana mais adorava era o Natal. Todos os anos faziam, na sala, um enorme presépio com as figurinhas de barro que a mãe trouxera das Caldas: o Menino Jesus, Maria, José, os três Reis Magos, os anjos, os pastorinhos e muitos aldeões que circulavam à volta da gruta, por caminhos cobertos com serrim de madeira e ladeados por casinhas também de barro e por leivas de musgo a imitar os campos onde pastavam as ovelhitas. Mas o que Mariana mais ansiava era a noite de Natal. Nessa noite a ceia era na sala e a mãe enchia a mesa de iguarias deliciosas que aprendera a fazer com a avó da Trofa: rabanadas, formigos, aletria e sopas secas que enchiam a casa de um agradável cheirinho a canela. Terminada a ceia partiam, às vezes com o Zezito já a dormir, para a missa do galo.

O pai ficava cá fora com os homens, enquanto ela e a mãe entravam na igreja, sentavam-se e esperavam em silêncio ou rezavam baixinho, até que o sacristão, viesse tocar uma campainha, anunciando que a missa ia começar. Os homens que aguardavam lá fora entravam para o coro e para os lugares do fundo, enchendo a igreja por completo. Toda a gente se levantava e fazia-se um enorme silêncio. O pároco saia da sacristia todo vestido de branco e, segurando na mão o cálice devidamente coberto com um véu esbranquiçado, dirigia-se para o altar-mor, fazia uma enorme genuflexão e bichanava as primeiras orações em latim, às quais apenas o sacristão respondia. O povo, de joelhos batia com a mão direita no peito e inclinava a cabeça. Pouco depois, o padre aproximava-se do centro do altar, voltava-se para o sacrário e erguendo os braços, entoava o “Glória”, ao mesmo tempo que o sacristão voltava a badalar prolongadamente a campainha enquanto os sinos repicavam e a igreja se enchia de luz, de cor e de alegria. Terminada a missa, entoavam-se cânticos de Natal e o pároco dirigia-se para o presépio que ficava do lado direito da capela-mor. Recebendo o turíbulo fumegante, balouçava-o diante das enormes figuras de Maria, José e do Menino, enchendo o templo de fumo e de cheiro a incenso. De seguida tomava o Menino nas mãos e colocando-se junto à grade que separava a capela-mor do cruzeiro, dava-o a beijar aos fiéis. Mariana, juntamente com as outras crianças, incorporava-se nos primeiros lugares da longa fila que se formava à espera de vez para beijar o Menino Jesus e para depositar, na cestinha que o sacristão mantinha na mão, os vinte centavos que a mãe lhe dera na véspera.

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publicado por picodavigia2 às 00:13

“CORIS JULIS” OU “O PEIXE QUE O GUILHERME ENGOLIU”

Quarta-feira, 19.09.18

O Guilherme era, incontestavelmente, um exímio pescador. Sem tirar nem por, um dos melhores da Fajã! Pescador de pedra, diga-se em abono da verdade. Caniços de todos os tamanhos, formas e feitios, engodo e iscas do bom e do melhor e até anzóis com comprimentos diversos mas adequados a cada tipo ou espécie de peixe a cuja pesca pretendia dedicar-se. A casa chegava de tudo o que havia no mar e que fosse possível apanhar em qualquer pesqueiro da Fajã, mesmo nos mais arrojados e perigosos: vejas, sargos, salemas, castanhetas, bodiões, peixe-reis, rateiros e até polvos e moreias. Chegara mesmo a apanhar meia dúzia de bicudas na Ponta do Cais, duas ou três enchovas na Baía d’Água e uma serra por fora da Poça do Cobre.

Pese embora o que trouxesse chegasse para as encomendas lá em casa e até, por vezes, para presentear vizinhos e parentes mais chegados, o Guilherme queixava-se, frequentemente, junto do seu progenitor, de que afinal trazia aquilo tudo mas até podia trazer muito mais, talvez mesmo o dobro se... E explicava a medo:

- É que uma grande parte do que isco e puxo para terra se perde! Volta para o mar…

- Como? Quando? – Perguntava o pai assarapantado.

- Ora quando? Na altura em que puxo o peixe para terra. Quando vou tirar os malditos do anzol e colocá-los numa pequena poça, ou em cima duma pedra os atrevidotes “zip”, dão um salto e “zás-trás”: atiram-se para o mar.

Certo dia o pai, farto de ouvir tantas lamúrias e queixumes, atirou-lhe de rompante:

- Fogem porque tu deixas, porque és um palerma, um parvo, um desajeitado. Um bom pescador, logo que apanha um peixe, mata-o imediatamente. Sabes como? Dando-lhe uma dentada na cabeça e pronto. Assim que apanhares um peixe dá-lhe uma valente dentada no cachaço e vais ver que nunca mais te foge nenhum.

Dito e feito. O Guilherme não se fez rogado. No dia seguinte lá se foi rápido e prazenteiro, de caniço em riste, aperaltado com isca e engodo em quantidade suficiente, plantar-se no melhor pesqueiro que havia, ali para os lados do Poceirão, junto ao Calhau da Barra. Engodo para água, caniço aparelhado, isco no anzol e vamos a isto, que hoje não lhe havia de zarpar para a água um que fosse dos que houvesse de puxar para terra.

Eis senão quando sente a primeira ferrada. Leve mas firme. Peixe pequeno. Melhor, para se iniciar na nova forma de amansar definitivamente os espertalhotes. Puxou, puxou e zás. Um peixe rei, lindo de morrer, com as cores do arco-íris, mas pequeno e perfeitamente adequado à sua bocarra. Melhor para exercitar os maxilares não podia ter vindo!

- Este não me escapa! – Pensou o Guilherme com os seus botões.

Se bem o pensou melhor o fez. Zumba! Dentada na cabeça do peixe. Só que fê-lo com tanta avidez e sofreguidão que o dito cujo já de si húmido, escorregadio e pegajoso deslizou-lhe de imediato pela boca dentro, passando-lhe, vivinho da silva, pelas goelas abaixo, indo parar-lhe ao estômago, onde encontraria o seu fim, sem, no entanto, antes, não dar lá dentro umas valentes cambalhotas e uns angustiantes repelões no “bucho” do Guilherme que muito o agoniaram, provocando-lhe náuseas e enjoos, forçando-o a suspender de imediato a pescaria, cuidando que morria ali mesmo. Aos gritos e aos arrotos lá conseguiu voltar para casa sofrendo as injúrias mais atrozes e descabidas do seu progenitor e os vitupérios mesquinhos e trocistas de quantos se cruzaram com ele pelo caminho.

E não é que a partir de então o peixe rei, na Fajã, mudou de nome, passando a chamar-se “O Peixe que o Guilherme engoliu” e, muito provavelmente, Lineu, se tivesse vivido uns anos mais tarde, em vez de o nomear de “Coris Julis” ter-lhe-ia chamado muito simplesmente “Engolatis Guilhermis”.

 

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publicado por picodavigia2 às 18:06

A GROTA DE TAÍCA

Segunda-feira, 17.09.18

Uma das mais pequeninas, insignificantes e desconhecidas grotas, de quantas caíam em catadupa pelos andurriais escabrosos da rocha, despejando as suas águas frescas e cristalinas sobre as relvas e campos circundantes àquele alcantil escarpado e abrupto, tingindo-os de verde, de galantaria e de abundância, era a grota de Taíca.

A origem deste topónimo, segundo a opinião mais comum e mais generalizada, deverá, naturalmente, procurar-se na sua nomenclatura primitiva, o que, provavelmente, muito terá a ver com o nome “Tia Anica”, personagem mítica e lendária que naquele recanto terá vivido ou, pelo menos, com ele terá estado intimamente relacionada, tal qual como uma outra Ti’Anica, a de Loulé. O povo, no entanto, com a sua original e espontânea capacidade de simplificar e abreviar os nomes, depressa transformou a grota de “Tia Anica” em grota de “Tanica”. Daí a grota de “Taíca”, foi um ápice. Uma evolução fonética popular e simples que não desdiz em nada a essência, não belisca a beleza, nem contraria as virtualidades da referida grota.

A grota de Taíca, apesar de pequena, encoberta e pouco conhecida, era de uma beleza rara, duma excelência assinalável e duma singularidade sem par. As suas águas eram límpidas e transparentes, o seu deslizar suave e ameno e o seu percurso sombrio e enigmático, porque envolto nas copas dos arvoredos e nos mistérios dos rochedos que a rodeavam. Ao longo do seu exíguo trajecto, havia lagos pequenos, mas claros e brilhantes, a reflectirem o espectro das encostas sobranceiras, o verde das folhas das árvores e, por vezes, a bifurcarem-se em minúsculos regatos, cujas águas se perdiam por entre veredas e atalhos. Nas suas margens floresciam arvoredos a abarrotar de copas e folhas, verdes, amarelas, lilases, carregados de murmúrios e de perfumes de outonos, que conferiam à sua água uma frescura leve e adocicada, uma transparência simples e acolhedora. Mas também havia rochedos negros, caiados de musgos, frios, húmidos e latejantes, a abarrotar de silêncios e mistérios.

A meio do seu percurso, porém, a grota de Taíca, alterava o seu deslizar, embrenhando-se entre penhascos, altivos e grotescos que confundiam as suas águas, alienavam a suavidade do seu percurso e lhe transmitiam um desassossego desconfortante e uma ingenuidade desabrida. Mas logo a seguir serenava e, voltava ao seu deslizar de sonho e de magia, serpenteando por entre as sombras das árvores e murmúrios do silêncio, até desfazer-se, junto à foz, em estranhas e múltiplas ramificações que irrigavam campos, alimentavam pequenos arroios, regavam florestas, acabando por perder-se, despejando as suas águas numa enorme ribeira de que a grota de Taíca era um dos mais importantes afluentes.

A grota de Taíca, um fascínio de singularidade a emergir da rocha, um pedaço de transcendências a reflectir o céu, um cordão cristalino e prateado a ornar a terra. A grota da Taíca, um raio aureolado, um fio ténue e cristalino, a irradiar um espontâneo deslizar de águas puras, frescas, inconfundíveis e singulares. A grota da Taíca, um fiozinho de água tímido, hesitante e inibido, a perder-se no ritmo apressado e tempestuoso dos rochedos e matagais, que agitados por ventos, tempestades e intempéries borboletavam ao seu redor, agitando as suas águas puras e cristalinas, desfazendo os seus murmúrios e os seus silêncios, numa persistente tentativa de aniquilar o doce azulado das suas águas e o silêncio sombrio das suas margens.

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publicado por picodavigia2 às 18:01

FAJÃ GRANDE – HISTORIAL

Sábado, 15.09.18

(TEXTO RETIRADO DO SITE DO MUNICÍPIO DAS LAJES DAS FLORES)

Fajã Grande, ocupando uma área de aproximadamente 12,55 quilómetros quadrados, é uma das freguesias mais povoadas do concelho de Lajes das Flores.

Localizada na costa oeste da Ilha, confronta com as freguesias de Ponta Delgada das Flores e Fajãzinha e representa o lugar mais ocidental de toda a Europa. Um pouco afastado da Ilha, encontra-se o ilhéu de Monchique, o último sinal físico que separa o Velho do Novo Mundo, assim descrito pelo Padre José António Camões, na sua obra Roteiro Exacto da Costa da Ilha : "Em distancia de uma legoa, pouco mais ou menos, a noroeste da ilha, está um alto ilheo de pedra chamado Monxique, que sendo bem alto ( nada menos de vinte braças de altura) há por vêzes mar tão bravo naquella Costa, que o cobre todo, saltando-lhe as ondas por cima".

Administrativamente, só na segunda metade do século XIX, a Fajã Grande obteve a sua autonomia política e religiosa. A freguesia de Nossa Senhora do Remédios de Fajãzinha, a que pertencia o lugar de Fajã Grande, havia sido instituída em 1676, englobando os lugares da Ponta, Fajã Grande, Caldeira e Mosteiro. Nesse ano, haviam sido desanexado os lugares da Ponta da Fajã, relativamente ao da Ponta Delgada, e do Mosteiro, relativamente ás Lajes. Ora, só passados duzentos anos, a provisão do Bispo de Angra, Frei Estevão, datada de 1861, institui a Paróquia de São José de Fajã Grande em conjunto com as povoações da Ponta e Cuada. O Padre Camões, relativamente a esta região, afirma o seguinte: "Continua baixio até uma pequena enseada a que chamam a baixa d'agoa. Continua baixio, baixio até chegar ao porto da Fajã Grande, que tem no meio um grande morro chamado o Calhau da Barra. Para dentro do dicto Calhau fica um grande poço de mar chamado o Poção, que dá refugio aos barcos que entrão com mar bravo".

Gaspar Frutuoso, por outro lado, oferece-nos uma descrição mais viva da região, na sua obra Saudades da Terra: "Dali a um quarto de légua está uma Fajã, chamada Grande, que dá pão e pastel, em terra rasa, com algumas engradas onde entram caravelas de até cinquenta moios de pão a tomar o pastel que nela se faz, onde também há marisco e pescado de toda a sorte, e no cabo dela está um areal, de meia légua de comprido, em que sempre, anda o mar muito bravo; e dali por diante, a outra meia légua, é tudo rocha talhada, onde se apanha muita urzela, e de muita penedia por baixo, em que se cria infinidade de marisco e grandes caranguejos e desta mesma maneira corre a rocha um tiro de bombarda até uma ponta, que sai ao mar um tiro de arcabuz, com um baixo de pedra, que tem lapas e búzios; e, logo adiante da ponta, se faz uma baía, onde com ventos levantes ancoram navios de toda a sorte e também naus da Índia. No meio deste ancoradouro cai da rocha no mar, a pique, uma grande ribeira".

Através desta colorida descrição, pode-se inferir que, na época a Fajã Grande era centro de grandes transações comerciais, chegando mesmo as caravelas da Índia a encontrar aqui um precioso desembarcadouro.

Por outro lado, o autor faz ainda uma clara referência á riqueza e variedade do pescado da região, ainda hoje preservado. Apesar de, actualmente, não registar tão grande azáfama a Fajã Grande continua a encantar quem a visita, pela amenidade do seu clima, pela transparência das suas águas ou pelas suas piscinas naturais, enfim, ela assume-se hoje como uma verdadeira estância de veraneio para todos os florentinos.

De todos os lugares que compõem esta pitoresca Freguesia, dois sobressaem pelas suas paisagens naturais:

 A Ponta da Fajã Grande é uma aldeia imaginária e de sonho, num mundo marcado pela solidão e pela falta de valores. Desde que serviu de fronteira entre as freguesias de Nossa Senhora do Remédios de Fajãzinha e de São Pedro da Ponta Delgada, o destino desta região ficou para sempre traçado.

Actualmente, com as suas cascatas de águas e escorrer pelas escarpas abaixo, a Ponta da Fajã Grande é um idílico lugar onde vivem menos de 20 almas. Com tradições profundamente rurais, aqui ainda se ouve o cantar dos pássaros, o murmurar das águas e o marulhar do mar, por vezes intempestivo.

A Quada, palavra que deriva de saracotear, ou seja, «andar de um lugar para o outro», foi uma povoação que, desde cedo, sentiu o fenómeno da desertificação. Este airoso terraço entre a Fajã Grande e a Fajãzinha, encontra-se assim associado, na mais pura tradição florentina do aldear, aos contrastes e dissabores que, com o tempo, foram surgindo na Fajã e que levaram algumas famílias a abandonarem a sua terra natal.

 

"A Fajã é uma vila,

 A Quada é um outeiro

 P'ra onde as aves do campo

 Vão fazer o seu linheiro.

 

As tecedeiras da Quada

 São todas muito apuradas,

 Tecem colchas cobertores,

 Cobertas e almofadas"

 

Hoje, quase todo o povoado foi recuperado para fins turísticos o que constitui sem dúvida um exemplo de Turismo Rural de sucesso. "Aldeia da Quada", assim baptizada pelo empresário Carlos Silva, seu proprietário e gerente é um sítio convidativo à Paz, e ao bucolismo que a Ilha inspira. Um contacto imprescindível com a Natureza que se recomenda.

Porque as pessoas são parte integrante da História de cada região, Fajã Grande orgulha-se de ter sido o berço de algumas personalidades que, no seu tempo e à sua maneira, contribuíram para o seu engrandecimento. De entre as várias individualidades florentinas, destacam-se o Padre José Luís de Fraga, pelo seus dons de orador, escritor e músico; e Pedro da Silveira, historiador e poeta, com vários trabalhos publicados.

 

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publicado por picodavigia2 às 09:21

TIA ERMELINDA E TIA MARIA INÁCIA

Quinta-feira, 13.09.18

Perto da minha casa, logo a seguir a um chafariz que por ali havia, viviam duas irmãs, já de avançada idade: a tia Ermelinda e a tia Maria Inácia.

A casa onde moravam era pequenina e pobre. Quantas e quantas vezes lá entrei para visitar aquelas duas queridas velhinhas! Subia-se a meia dúzia de degraus que davam para um pátio, em frente à porta da sala, ornamentado de sécias brancas e rosadas, de cubres amarelados, de fetos e muitas outras plantas e entrava-se, de imediato, na sala. Era a maior dependência da casa, a qual dava directamente para as duas outras: um quarto de cama que em vez de porta tinha apenas um cortinado velho e acetinado e para a cozinha que ficava nas traseiras do prédio. Na sala havia uma enorme cómoda com um oratório e muitas fotografias antigas, umas encaixilhadas em passe-partouts, outras soltas e encostadas a estes, algumas cadeiras e uma caixa de madeira. Numa das janelas havia uma enorme cadeira de vimes, forrada com colchas tecidas em teares manuais e almofadas feitas por mãos hábeis, onde, habitualmente, a tia Ermelinda permanecia sentada. A cozinha era velha esconsa e negra. O chão era de solo (barro ou terra) e não tinha forro. Tinha apenas uma mesa, duas cadeiras, um armário onde guardavam a louça e um lar cheio de tisna e de escuridão, com dois ou três caldeirões, uma sertã e uma grelha onde tia Maria Inácia cozinhava as suas parcas refeições.

Tia Ermelinda era muito doente e já não saía de casa. Estava permanentemente sentada à janela da empena da sala. De manhã rezava, costurava e lia. De tarde ensinava catequese e conversava com quem a visitava. Tia Maria Inácia, apesar de velhinha e doente, era “o homem da casa”. Era ela que ia à lenha à Cabaceira, que a rachava, fendia ou picava com o machado e a guardava debaixo do lar. Era ela que ia buscar erva-santa para as galinhas. Era ela que cozinhava, lavava e limpava a casa. Era ela que fazia tudo.

Quantas vezes minha mãe me mandou ir lá e levar um pouquinho de leite ou um quarto de bolo do tijolo, fresquinho e a fumegar! Quantas vezes minha mãe me autorizou a ir com a tia Maria Inácia à Cabaceira para a ajudar a trazer uns garranchos de lenha! Quantas vezes de tarde ia sentar-me ao lado de tia Ermelinda a vê-la e a ouvi-la a ensinar catequese a outras crianças ou simplesmente a conversar com ela! É que em questões de catequese eu tinha que sobrasse em casa da minha avó, na Fontinha.

Mas o que nunca pude esquecer foi a ternura, o carinho e a amizade que aquelas duas doces e meigas velhinhas me dedicavam!

Por isso é que eu tanto gostava de escapulir para casa delas!

 

 

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publicado por picodavigia2 às 00:19

A GRUTA

Quarta-feira, 12.09.18

Quem subir as escaleiras da vereda que liga o porto da Prainha ao Caminho de Cima, deparar-se-á, à esquerda e encastoada na rocha magmática, uma bela e extraordinária gruta, rodeada, exteriormente, por um átrio. A gruta, altiva e sumptuosa, resultou de caprichos primordiais da natureza. O átrio, de postura elegante e encantadora, foi construído por mãos humanas talvez numa interessante e inédita tentativa, de preitear uma imaginária lenda de que não há memória, nem a história da gruta engloba, mas deveria englobar. Mas as lendas, quando as não há, inventam-se, pois nada de excepcional e extraordinário existe no Mundo, que não tenha na sua origem ou existência, uma explicação lendária.

Conta, então a lenda, e se não contou deveria ter contado, que há muitos e muitos anos, vivia na localidade da Prainha, nos primórdios da sua existência, uma rapariga chamada Natalina. Natalina era alegre, forte, folgazona, robusta e saudável. Mas, de repente e sem nenhuma explicação aparente, começou a definhar e a enfraquecer a olhos vistos, alimentando-se mal, perdendo as cores e desfalecendo frequentemente. Parecia que a morte se aproximava. Cuidava-se até que fosse mal olhado. A mãe bem a tentava salvar, dando-lhe chás variados e mezinhas diversas. Mas a moça nada. Piorava de dia para dia, contabescia a cada momento.

A mãe desabafava as suas mágoas junto das suas amigas que, procurando consolá-la, tentando diminuir-lhe as consumições e aliviar-lhe o desassossego, concluíam:

- Não é nada, mulher... Isso são coisas da idade. Ela não está com quinze anos? Então, é isso, mulher!

Mas a rapariga é que não melhorava, antes piorava a olhos vistos. Chamaram-se curandeiros, visitaram-na as bruxas e até o senhor padre foi mandado vir a casa para a assacramentar, mas nada disto veio aliviar o sofrimento de Natalina, nem sequer cercear a crescente consumição de sua mãe. O caso parecia não ter solução e aguardava-se um desfecho fatal.

Ora lá no alto da localidade, já quase nos andurriais da montanha, numa canada erma e sinuosa, vivia um fradinho, estimado e respeitado por todos e reconhecido pela sua generosidade, sabedoria e santidade. Acreditava-se que até milagres fazia, o bondoso e velho ermitão.

Chamado o frade, este olhou a menina com blandícia e pediu aos presentes que se retirassem, ficando a sós com ela, durante largos momentos. Depois retirou-se, silencioso e pensativo, mas não dormiu durante toda a noite.

A visita do frade, a casa da mãe de Natalina, no entanto, correu célere pela redondeza, reunindo, no dia seguinte, uma pequena multidão de curiosos que vinham daqui e de além, até junto à casa de Natalina, na expectativa de presenciar mais um milagre do taumaturgo fradinho. Mais se animaram todos, quando, pela hora do meio-dia viram o frade aproximar-se da casa e, juntamente com Natalina, rumar para as encostas sobranceiras à localidade, na direcção da gruta. Caminhavam trôpegos, arfando cansado, mas com ânimo e confiança escalaram a encosta pedregosa até atingirem a gruta, encravada num íngreme penedo, recoberto de verdura luxuriante, mas rodeada do átrio de entrada. A multidão, hesitante e estupefacta, seguia-os. Ali chegando, o monge ergueu os braços num largo e lento gesto de sinal da cruz e, ao murmúrio de piedosa prece, espargiu para o interior da gruta a água lustral que trouxera consigo numa pequena cabaça, presa a tiracolo por um cordão de “filaça”.

Naquele instante um enorme e violento tremor fez estremecer e abalar a terra, repercutindo-se por toda a ilha, deixando a multidão atónita, aflita, estupefacta e aos gritos. O mar, rugindo em doidas convulsões, projectou-se, violentíssimo, contra a impassibilidade das rochas, para retroceder de seguida, abrindo-se ao meio, dando passagem a um terrível e apocalíptico monstro que, saindo da gruta aos tropeções e em enorme velocidade, rolou pela encosta, caiu por entre as ondas abertas, imergindo e perdendo-se para sempre nas profundezas do oceano.

Narra ainda a lenda que Natalina, de imediato, retomou as suas cores, a sua beleza, a sua robustez e, sobretudo, a sua alegria de viver e que o fradinho, dias depois, morreu com fama de santo. Há quem diga que se alguém se postar à porta da gruta e espreitar um pouco para o seu interior poderá ainda ver, a caírem do tecto, por entre as ranhuras ressequidas da lava basáltica, várias gotículas de água, que os cientistas chamam estalactites, mas que os mais crentes cuidam ser vestígios das gotas de água lustral que o bom do fradinho atirou para o interior da gruta, exorcizando o demónio, oculto sob a forma de monstro e que, miraculosamente, ali permanecem através dos tempos.

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publicado por picodavigia2 às 09:35

AMIGOS

Terça-feira, 11.09.18

“Para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade.”

Confúcio

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publicado por picodavigia2 às 09:32

O FUROR DA LAVA PICOENSE

Segunda-feira, 10.09.18

O Pico é um gigantesco montão de lava. Mas lava viva, outrora vermelha, incandescente, fumegante e destruidora, mais tarde negra, inturgescida, basáltica e besuntada de enxofre e agora aureolada de verde, benéfica, produtiva e perfumada com salpicos de maresia, mas viva, muito viva. Esta lava do Pico tem uma espécie de furor negro, fecundo e vigoroso, a expelir-se em laivos de vinhedos, campos de milho, pastagens verdejantes e encostas a abarrotar de florestas de faia, de incenso e de árvores de fruto. Mas a lava do Pico tem, sobretudo, um furor histórico, escrito e gravado nos regos traçados pelos alviões no solo vulcânico, nas rilheiras dos carros de bois, no mourejar permanente dos remos sobre a braveza do oceano, no arrochado incorruptível dos maroiços e dos currais das vinhas, nos pedregulhos rolantes das canadas, nos gritos das marés incertas, no estalejar do vento nas encostas e andurriais. A lava do Pico como que espelha e reflecte a vida, os costumes, os trabalhos, as tradições, os bailados e a música das suas gentes.

O furor desta lava, destemida e altaneira, dá, ao Pico, uma vivência efusiva e efervescente, transforma-o num gigante de ousadia e audácia, substancia-o num amontoado de tradições e costumes, aureola-o de esperança e confere-lhe uma crença telúrica, inconfundível. O furor desta lava é suco generoso, é chão de ousadia, é arroteamento de emoções. A lava é uma espécie de bálsamo tonificante e fertilizador, que transforma o sofrimento em promessa, a angústia em esperança, a destruição em recompensa, o deserto em abundância, a pequenez em grandiosidade, o nada em tudo. A lava do Pico é uma espécie de rio de espuma incandescente, a deslizar por entre pedaços de chão rachado, a fertilizar os vales, a enrijecer os montes, a calcificar os pântanos e as lagoas, a alimentar os vinhedos e as florestas, a perder-se, como que envergonhada e tímida, no meio de um oceano de desejos indefinidos, transformando-se em gigantescas marés de graça, de solenidade e de ternura. A lava do Pico tem um furor que não é capaz de se conter. A lava do Pico jacta-se, expele-se, espalha-se e projecta-se em labaredas de cores, de sons, de esperança, de alegria e de amizade.    

Realizando um périplo pelo Norte do País, assentando arraiais na Região do Vale do Sousa, mais concretamente na freguesia de Meinedo, concelho de Lousada, como convidado do Rancho Folclórico das Lavradeiras do Vale do Sousa, de Romariz, o Rancho Folclórico de São Caetano do Pico, não só trouxe consigo, como também expeliu e esparramou, nas noites escaldantes durienses, o furor lávico da sua música, do seu bailar e das suas coreografias - estonteante perfume da história, da cultura, das tradições, dos costumes e dos cantares duma ilha, que teima em se espelhar na grandiosidade do seu passado e de se ostentar nas vivências do seu presente.

O grupo constituído por mais de quarenta elementos, actuou em três festivais. Primeiro, na própria freguesia de Meinedo, uma das 25 do concelho de Lousada, ombreando com ranchos folclóricos de renome nacional, como o Rancho Folclórico Tá-Mar da Nazaré, o Rancho Folclórico os Camponeses da Beira-Rio, da Murtosa-Aveiro e com o rancho anfitrião. Um espectáculo de grande qualidade, balizado num espaço histórico, numa das freguesias mais populosas do concelho de Lousada, com cerca 4 000 habitantes, o equivalente ao concelho da Madalena, tendo como ex-libris a igreja românica de Santa Maria Maior, cuja fundação remonta ao século XIII. Sabe-se que nos primórdios do cristianismo na Península, Meinedo, então designada por “Magneto”, terá sido, segundo toda a probabilidade, a primeira sede da Diocese do Porto.

A segunda participação do Rancho Folclórico de São Caetano, teve lugar na não menos histórica freguesia de Cárquere, concelho de Resende, junto ao Mosteiro que na Idade Média foi, depois de Santiago de Compostela, um dos maiores centros de peregrinação da Península Ibérica, construído por Egas Moniz e sobre cujo altar – ainda hoje ali existente – se terá verificado a cura milagrosa do menino que viria a ser o primeiro rei de Portugal – Afonso Henriques.

Finalmente, num terceiro espectáculo, o Rancho da mais jovem freguesia do concelho da Madalena, actuou em plena Vila de Lousada, perante numeroso público, no largo do Senhor dos Aflitos, por coincidência, frente à estátua de um dos mais ilustres lousadenses - Dom António Augusto de Castro Meireles, 34º bispo de Angra (1924-28) e, depois, bispo do Porto.

Foram noites fantásticas, de cor, de sons, de movimento e alegria, onde o Rancho Folclórico de São Caetano espalhou toda a sua classe, dignidade, singeleza e performance, deixando aos presentes uma deslumbrante e transcendente imagem, não apenas da freguesia de São Caetano, mas também da ilha do Pico, transformando-se, assim e de que maneira, num magnífico embaixador da sua cultura, dos seus costumes, dos seus valores, dos seus potenciais turísticos e, como não podia deixar de ser, dos seus bailados e da sua música, numa palavra espalhando, aqui, pelas terras durienses o verdadeiro e inconfundível “furor da lava picoense”.

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publicado por picodavigia2 às 09:28

A FESTA DA SENHORA DA SAÚDE

Domingo, 09.09.18

Nos anos 50, a festa da Senhora da Saúde, que desde há décadas se realizava e continua a realizar na Fajã Grande, era incontestavelmente, na altura, uma das maiores e das mais concorridas de toda a ilha das Flores.

Celebrada no dia 8 de Setembro (mais tarde passou para o domingo mais próximo deste dia) a ela vinham romeiros de toda a ilha, sobretudo da Fajãzinha, do Mosteiro, do Lajedo, de Ponta Delgada, dos Cedros, das Lajes e da Lomba. Alguns, sobretudo os de mais longe, vinham com um ou dois dias de antecedência, regressando muitos deles à sua freguesia apenas na oitava da festa, pernoitando e alimentando-se em casa dos seus “conhecidos” da Fajã, durante vários dias. Também do Corvo, quase todos os anos, chegava uma lancha carregadinha de forasteiros que também se acomodavam em casa dos seus conhecidos da Fajã. Até à inauguração da Filarmónica “Senhora da Saúde”, no início da década de cinquenta, vinha geralmente uma banda de fora, da Fajãzinha, da Lomba ou do Corvo, as quais geralmente traziam muitos romeiros. Foi precisamente no ano em que a filarmónica contratada, a da Lomba, não compareceu que surgiu a ideia, mais tarde concretizada, de se criar uma banda de música na Fajã.

No que dizia respeito à parte litúrgica, a festa começava com um tríduo preparatório, pregado geralmente por um padre de outra freguesia ou por um professor do Seminário de Angra, natural das Flores, dado que nessa altura proliferavam pela ilha e que ainda se encontravam em férias, sendo o mais habitual o Dr Caetano Tomás, do Lajedo. Na véspera, de tarde, eram as confissões, geralmente com 4 padres de fora, espalhados pelos confessionários laterais ou pelos ralos da grade da capela-mor. No dia da festa celebravam-se três missas: a da manhã, bastante cedo, destinada às cozinheiras e pessoas que não pudessem ir a outra, mais tarde; a da comunhão, celebrada às nove, com sermão e destinada sobretudo às crianças da catequese e da Cruzada Eucarística e a outros comungantes e às onze, missa solene, cantada, de três padres e com sermão. Nesta quase ninguém comungava, dado que, na altura para o fazer era preciso guardar jejum desde a meia-noite.

Da parte da tarde, interrompendo o arraial, havia a procissão. À frente a cruz paroquial ladeada por duas lanternas, umas e outra levadas por homens trajando opas vermelhas. Depois os anjinhos de asas brancas e cestas de flores e as crianças da Cruzada Eucarística, cobertas com a cruz de Malta, desenhada a vermelho, em faixas brancas, atravessadas sobre o peito. Logo atrás os andores de Santa Teresinha, São José e da Senhora da Saúde, transportados por homens, vestidos de opas os da frente vermelhas e os últimos brancas. Depois os homens de opas vermelhas, carregando lanternas, pendões e o pálio, sob o qual, geralmente, seguia o Ouvidor das Lajes envergando capa de asperges branca e véu de ombros da mesma cor, a segurar o Santo Lenho, ladeado por dois padres vestidos com dalmáticas também brancas mas, como a capa debruadas a amarelo. À frente do pálio seguia o clero excedente que geralmente era pouco e algum seminarista em férias na ilha, envergando sotainas negras e sobrepelizes brancas. Logo atrás a Filarmónica. A procissão percorria a rua Direita, para cima até à Praça e para Baixo até à Rua Nova e as janelas, varandas e pátios das casas por onde passava estavam enfeitadas com colchas de cores variadas, que davam à rua Direita um colorido desusado. A rua estava ornamentada com bandeirinhas multicolores presas nos cantos e janelas das casas e o chão era atapetado com verduras e flores. Uma vez regressada à igreja, a procissão terminava com um sermão. Os três sermões do dia da festa eram geralmente pregados por pregadores diferentes e todos eles, assim como os do tríduo e a missa cantada eram promessas de fajagrandenses residentes na Califórnia e que antecipadamente faziam as suas reservas. Um sermão custava cento e vinte escudos, a missa cantada cem e a missa rezada vinte. As Trindades eram dobradas e não havia início de celebração ou levantar a Deus que não tivesse foguetes e repique bem redobrado dos sinos. Durante a procissão os sinos também repicavam e os foguetes ecoando nas rochas das Águas e da Figueira.

Paralelamente havia uma parte profana ou cívica que começava no sábado e continuava no domingo e que consistia fundamentalmente num enorme arraial, com música, foguetes, quermesse e os jogos do Albino: o do boneco, em que um boneco de madeira suspenso na cintura por um eixo, rodopiava sobre um caixilho também de madeira, apoiado no chão com algumas pedras. O jogo consistia em atirar, de uma distância previamente delimitada, cinco bolas ao boneco, por um escudo. Quem acertasse no dito cujo e conseguisse que ele desse uma volta completa sobre si próprio receberia um prémio: um chocolate, uma laranjada, uma cerveja ou um pirolito de bola. Outro jogo era o da pesca à cerveja: dispostas seis garrafas de cerveja, outros tantos jogadores munidos de um caniço, com um fio e uma argola em vez do anzol teriam que enfiar esta o mais rapidamente possível no gargalo da cerveja que estava na sua frente. O prémio era a própria cerveja para o primeiro que atingisse o objectivo do jogo.

À noite o arraial era iluminado com várias lanternas petromax. Só depois da ida do Padre Pimentel à Califórnia, com o dinheiro que ele por lá arrecadou se comprou um motor que, sob os cuidados de José Furtado, iluminava não apenas a igreja mas também o adro e a parte central da Rua Direita com séries de lâmpadas multicolores também vindas da América. Enquanto José Furtado não chegava ou quando o motor falhava o arraial, para gáudio de muitos, fazia-se às escuras.

 

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publicado por picodavigia2 às 15:37

O LUGAR DA RIBEIRAS DAS CASAS

Sexta-feira, 07.09.18

Um dos mais emblemáticos lugares de quantos existiam na Fajã Grande era o da Ribeira das Casas, situado logo no início do caminho que dava para a Ponta e que era atravessado por uma Ribeira com o mesmo nome. Confrontava a sul com o Calhau Miúdo, o Mimoio e as Águas, a leste com o Pulo e a Rocha e a norte com as Covas e o Vale do Linho, enquanto, a oeste, ficava separado do mar pelo Rolo. Era uma zona fundamentalmente de relvas, muitas das quais, transformadas em lagoas, mas também existiam, por ali, algumas terras de cultivo. Este lugar, talvez por ser atravessado por uma ribeira e, consequentemente, ser abundante em água, era a zona da Fajã em que havia mais e melhores lagoas as quais possuíam nascentes de água de óptima qualidade. Meu pai tinha uma lagoa mesmo ao lado da ribeira e junto a uma outra pertencente ao Fernando de Tio Manuel Rosa, a qual tinha a melhor nascente das redondezas. Muitos transeuntes que por ali passavam, quer os que iam ou vinham da Ponta, quer os que trabalhavam os campos aquém e além, ou os que transportavam por aqueles caminhos molhos de erva, de incensos ou de lenha, paravam ali, num largo que havia mesmo ao lado da ribeira, na margem esquerda, no cruzamento do caminho com uma canada que dava para o Mimoio e para a Ribeira, a fim, não só de descansarem mas também de se refrescarem com aquela saborosíssima água. Mas era sobretudo durante a altura de “tirar o sargaço”, no Rolo, ou no tempo de o acarretar para os campos que a água da lagoa do Fernando, transportada em gigantescas folhas de inhame, abastecia quantos se dedicavam àquela faina. Possuíam também lagoas na Ribeira das Casas o Alfredo Lourenço, o David, o Gil, Ti Manuel Luís e o Manuel Dawling, entre outros. Por sua vez as relvas existentes naquele lugar pertenciam ao Mancebo e ao Gil, enquanto os proprietários das terras de cultivo eram Ti José Cardoso, o João Barbeiro, o Gil, o José Ti’Anina, o Manuel Dawling e a Maria José Fragueiro, sendo a sua propriedade trabalhada pelo António Teodósio.

Era também no lugar da Ribeira das Casas que ficavam todos os moinhos da Fajã. Na margem direita havia três: dois pertencentes a Ti Manuel Luís e um ao Manuel Dawling, enquanto que na margem esquerda havia um só moinho, o do Engenho, que teve vários proprietários, acabando, mais tarde, por ser abandonado.

Quanto à Ribeira das Casas, nascia no Mato, para os lados dos Cabeços e do Miradouro, entre o Queiroal e a Burrinha, por onde deslizava, ladeada por tapumes de hortênsias e bardos de queirós. À entrada para o Queiroal, o seu leito era profundamente alterado, tornando-se irregular, abrupto e desnivelado, devido, sobretudo, a um enorme, fundo e enigmático buraco, designado por “Caldeirão da Ribeira das Casas” dentro do qual a água caía em cascata e que, em tempos de chuvas e tempestades, até ovelhas arrastava por ali abaixo. Depois a Ribeira deslizava até à zona do Bracéu, recebia como afluentes algumas grotas e despejava-se abruptamente pelas encostas da Rocha das Covas, caindo em cascata no mítico Poço do Bacalhau. De seguida atravessava o vale formado pelas Covas e pelas Águas, recebia o seu maior afluente, a Ribeira dos Paus Brancos e corria lentamente até ao mar, alimentando moinhos e distribuindo água pelas lagoas limítrofes. Entre a entrada para os moinhos de Ti Manuel Luís, na margem direita, e o largo que dava para o Mimoio, na esquerda, havia uma estreita e frágil ponte de madeira, destinada apenas à travessia das pessoas. Por baixo da ponte havia umas pedras enormes e ásperas que ora serviam de passadeiras ora de lavadouros para muitas mulheres que ali iam lavar a roupa e que, por vezes punham a coarar nas relvas ali ao lado. Os animais e os carros de bois ou corsões transpunham-na atravessando a água.

Ainda hoje se não sabe se foi a Ribeira que deu nome ao lugar ou o inverso. No entanto, acerca da origem deste interessante topónimo ouvi várias vezes, quando era criança, a pessoas de mais idade, que o referido lugar e a ribeira receberam o nome de “das casas” porque ali se teriam fixado os primeiros povoadores e ali teriam construído as suas primitivas habitações. Mas devido a uma enorme ribanceira caída da Rocha todas as casas ficaram soterradas, sendo a população forçada a deslocar-se para o local onde hoje se situa a Fajã Grande. E a verdade é que os vestígios de uma enorme ribanceira lá estão, na margem direita, ao lado do Poço do Bacalhau, no sítio denominado por Covas. Se debaixo da mesma se encontra soterrado um antigo povoado só escavações realizadas naquele local o poderiam demonstrar, o que provavelmente nunca acontecerá

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publicado por picodavigia2 às 00:05

OS FISCAIS DOS ISQUEIROS

Terça-feira, 04.09.18

Os fiscais dos isqueiros eram, na Fajã Grande e provavelmente em muitas outras localidades das Flores, talvez mesmo dos Açores, depois do diabo e dos navios russos, um dos principais e mais indesejados arquétipos do medo. É que assim como os navios russos, que o mafarrico pelos vistos nunca chegou a aparecer a quem quer que fosse, os fiscais dos isqueiros apareciam de repente, sem ninguém contar com eles, quanto menos se esperava, disfarçados, à paisana e sem se identificarem. Um dedo a raspar na roda de fuzil do isqueiro e, mesmo que este ou por falta de gasolina ou por excesso de vento, não acendesse ou nem sequer faiscasse, era multa certa e sabida. Pagava-se, não se bufava e ficava-se sem o dito cujo.

É que em Portugal, nos anos cinquenta e nas décadas anteriores, durante o governo ditatorial salazarista, havia uma lei segundo a qual o porte e uso do isqueiro, com o objectivo de acender o cigarro, exigiam uma licença que custava na altura, se bem me lembro, à volta de dez escudos. Muito dinheiro naquela época! Além disso um gasto injustificável e incompreensível, quando afinal o dinheiro rareava para os bens estritamente necessários. Mas a lei era de tal maneira exigente que a licença, para além de ser tirada e devidamente paga, era como a carta de condução, isto é, devia estar na posse do utilizador do isqueiro sempre e em qualquer lugar em que este se encontrasse ou estivesse a fumar, quer fosse fora da porta de casa, sentado à Praça, no Mato ou a até a dançar a chamarrita em cima do Monchique. Os fiscais, por sua vez, eram tão pérfidos, ferozes e safardanas que, para além de actuarem pela calada, como as raposas quando assaltam os galinheiros, tinham a distinta lata de chegar a pedir lume a uns e a outros, para mais facilmente apanharem quem quer que fosse, com a boca na botija. As multas, por sua vez eram pesadíssimas, chegando a rondar os cinquenta escudos, o que significava rigorosamente quase três alqueires de milho ou outros tantos dias de trabalho.

Nunca se percebeu bem a razão e o fundamento desta inaudita lei, e, sobretudo, da forma pérfida e acutilante como se exigia o seu cumprimento e castigava os prevaricadores. Além disso, a multa era duplicada se o prevaricador fosse funcionário público.

Na altura cuidava-se, que o seu objectivo de tal lei era proteger a Fosforeira Nacional, produtora das célebres caixinhas de “amorfos”, com as quinas portuguesas ou com meninos de várias raças desenhados no seu frontispício. É que o dinheiro das licenças e 70% do das multas revertia a favor daquela empresa que detinha o monopólio da produção das caixas de fósforos, na Fajã Grande designadas, na altura, por “caixas de mechas”. Os restantes 30% revertiam a favor dos próprios fiscais e dos seus informadores, porque os havia também. Uma espécie de “bufos”, camuflados, semelhantes aos da PIDE. Assim se podia compreender a forma intrigante, opressiva, tirânica e gananciosa de actuar dos fiscais sobre os fumadores dos célebres rolos de “1943” de cor azul e dos “Santa Justa” de cor acastanhada, quando puxavam do isqueiro para os acender.

Na Fajã, no entanto, as receitas para a Fosforeira Nacional não eram muitas, nem os lucros dos fiscais volumosos. É que sendo um lugar pequeno e isolado, a chegada daqueles intrusos meliantes era quase sempre detectada por alguém, mormente após a primeira actuação e, a partir daí o grito de - “Estão aí os fiscais!” - espalhava-se como em eco, com uma celeridade impressionante, a tempo dos futuros prevaricadores se prevenirem, geralmente escondendo a “arma do crime” em lugar secreto e bem seguro, como um buraco da parede, numa cova depois de embrulhado numa folha de inhame e que, após a debandada dos “abutres”, seria de novo retomada para se acenderem os cigarros, sem multas, com o devido sossego e à vontade.

Curiosamente os antigos isqueiros feitos de pedra e sem gasolina, na altura já pouco usados, não eram multados.

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publicado por picodavigia2 às 00:30

SAN FRANCISCO

Segunda-feira, 03.09.18

I

 

Júlia voltara-se e rebolara-se na cama vezes sem conta. Inicialmente parecia um sonho, depois um imaginar sonolento de algo muito ténue e longínquo e, logo a seguir, um barulho estranho e esquisito a despertá-la definitivamente e a trespassar-lhe o peito, como se fosse um raio. Por fim, já completamente acordada, uma certeza absoluta e irrevogável: eram tiros. Nem sequer esperou para ouvir uma segunda vez ou para se certificar melhor. Levantou-se de rompante, abriu a porta da sala, de maneira a que os pais e os irmãos não dessem pela abalada e deu consigo quase tresloucada, no meio da rua, imersa numa madrugada desentendível e apavorante, sem saber bem o que fazer ou para onde ir.

Era Maio, estava muito frio mas a noite clara. Júlia cobriu os ombros quase nus com o xaile de lã que agarrara à pressa, antes de sair, e rumou, incerta, Fontinha a cima. Os sons martelados e secos de armas, prolongando-se por aqui e por além, cada vez pareciam mais nítidos, mais reais, mais aterradores, estampando-se em eco nas rochas das Covas e das Águas, deixando no ar um rasto de pólvora fumegante,

Ao chegar ao cimo da Fontinha, Júlia, cada vez mais convicta de que o barulho dos tiros vinha do mar, desatou numa correria louca pela canada que dava para o Mimoio. No início, porém, a vereda muito sinuosa, alcantilada de pedregulhos e ladeada com paredes altíssimas a vedar pequenos cerrados de milho e estreitas belgas a abarrotar de batata-doce e de favas já floridas, não deixava ver o mar mas permitia que o martelar contínuo dos tiros se encafuasse naqueles meandros, tornando-os mais reais, mais atribuladores, mais temíveis, mais angustiantes. Agora, se dúvida alguma ainda existisse, desfazia-se por completo no constante ribombar das carabinas e dos fuzis. A sua única preocupação era a de saber se o seu António estaria envolvido naquele aberrante, desmedido e despropositado tiroteio, a quebrar o silêncio íntegro, global, puro e profundo da noite que a penumbra enigmática da rocha lançava sobre a enorme fajã e sobre a baía circundante.

Desde há muito que Júlia e António se amavam como ninguém, se desejavam reciprocamente com ardor, arquitetando construir com harmonia e sublimidade, um lar de felicidade, de bem-estar, de alegria e de amor. Júlia sabia muito bem da oposição cerrada que os seus progenitores lhe haviam de fazer quando se apercebessem do seu relacionamento com o filho do Chibante. Mais se oporiam talvez até a impediriam quando soubessem que ali havia muito amor, que havia uma grande paixão e que conjugavam planos de construírem, em conjunto, o futuro. Fora por isso que ele tomara aquela abruta e radical decisão, por saber que era pobre, muito pobre e que os pais dela haviam sempre de cuidar e de sentir que ele nunca havia de sair da miséria, de um pé rapado, de um badameco de meia tigela e que por isso mesmo nunca haviam de autorizar aquele casamento. Tudo isso levara a que ele, o seu António, decidisse partir, em busca da aventura, do sucesso, do dinheiro necessário para um dia, ao regressar das Américas, lhes aniquilar e desfazer por completo arrelias, consumições e de lhes atirar à cara aleivosias. Mas Júlia nunca concordara com aquela partida para tão longe, para a Califórnia, naquelas condições – fugindo, às escondidas, no escuro da noite, envolvendo-se com os aguadeiros de um bergantim, como se fosse um criminoso. Depois era o perigo mais real do que possível de uma fuga clandestina e que, afinal, agora estava ali bem estampada naquele fatídico e malfadado tiroteio.

Ao chegar ao sítio da canada que encimava a Tronqueira desfizeram-se as dúvidas por completo. Dali ela via tudo e o cenário era bem real: a uma pequena distância da Baixa Rasa, um enorme bergantim, todo branco, com três altíssimos mastros e velas triangulares, aguardava uma pequena chata que momentos antes saíra do Rolo, junto à Ribeira das Casas, carregando homens e barris de água. A lutar contra os socalcos das ondas provocados pelo contínuo ricocheto dos projéteis na água, numa frustrada fuga, a chata era contínua e permanentemente alvejada por tiros emanados pela guarda costeira do Forte do Estaleiro cruzados alternadamente com outros vindos do Castelo da Ponta e que se cruzavam no ar com as respostas vindas da embarcação. Alguns homens já se haviam atirado à água e, ora mergulhando, ora vindo á tona para respirar, lá se iam esquivando ao desfechar incerto mas contínuo das balas dos azougados artilheiros. Sabia-se que em tais situações a ordem era atirar a matar.

Júlia, numa aflição inexaurível e num sofrimento terrífico, assistia a tudo lá de longe, agora do alto do Mimoio, no sombrio da noite, clarificado momentaneamente pelo fulminar contínuo da pólvora, sem poder fazer nada ou coisa nenhuma. Assistia impotente e dorida, àquele terrífico e dramático espetáculo. Apenas uma certeza: o seu António estava ali mas o Senhor Espirito Santo, para quem se voltava com promessas e orações, havia de o salvar.

…E de repente, no meio daquela aflição desmedida e daquela agonia inexaurível uma pequenina e ténue réstia de esperança trespassou-lhe o peito, dulcificando-lhe, momentaneamente, a dor e espevitando-lhe, como em sonho, a alegria: um vulto negro aproximava-se do bergantim e, agarrando-se às grossas escadas de corda que lhe atiravam para o mar, num ápice saltava a amuara da embarcação, onde se refugiava definitivamente. Em seguida, saltaram os outros. De imediato o bergantim voltava-se e zarpava para Oeste. O seu António estava salvo, a caminho da Califórnia!

 

 

II

 

 

Tia Júlia chegou a casa muito tarde, já noite escura. Vinha da novena das almas. Não que a cerimónia litúrgica, realizada na igreja paroquial, demorasse muito, mas por começar, como era hábito, a horas bem tardias. Sim, porque às nove da noite, ali na Fajã Grande, em pleno mês de Novembro, há muito que era escuro, que o Sol desaparecera lá para bem longe, para o fim do mundo, para o infinito, onde tudo era um mistério escuro e desconhecido. Tia Júlia apenas sabia que era naquela direção em que o Sol se punha, que ficava a Califórnia… A Califórnia dos seus sonhos, dos seus segredos, das suas mágoas, das suas tristezas, do seu sofrimento, da sua miséria, da sua solidão e, sobretudo, daquele enigmático luto que desde há mais de sessenta anos carregava sobre si.

Entrou pela porta da cozinha, que a da sala já não abria nem fechava. Emperrara por completo, a maldita, desde aquele dia em que, muito aflita, a fora destrancar para receber a visita do Senhor Espírito Santo, obrigando a Coroa a entrar pela porta da cozinha. Um pecado de que implorava perdão todos os dias e que a havia de amarfanhá-la para sempre.

De cansada por subir aquele martírio que era a Fontinha, sentou-se num banco, junto à velha e desconjuntada mesa da cozinha, apoiando aí os dois braços devidamente cruzados e sobre eles o rosto quase tapado com um lenço em forma de bioco, a cair-lhe sobre os olhos. Para quê acender a candeia se o sono era tanto e já nada havia para fazer?

… Num de repente, sentiu-se a olhar para longe, para muito longe, para onde o Sol caminhava todos os dias, onde havia uma cidade… Era uma cidade enorme, com prédios altíssimos, ruas muito estreitas e apertadas a abarrotar de pessoas, a empurrarem-se umas às outras. Um vento fortíssimo soprava com rugidos roufenhos, ensurdecedores. Gotas gigantes caíam sobre os edifícios e muitos deles explodiam e desmoronavam-se. A cidade cobria-se de nuvens negras de pó e cinza e o céu transformava-se num tenebroso manto escuro, ora a clarear-se, repentinamente, com o faiscar impertinente dos relâmpagos ora a toldar-se, cada vez mais, com o ribombar aterrador dos trovões. A chuva caía forte, diluviana e destruidora. A enorme cidade, agora parecia quase deserta: as pessoas haviam-se escondido e abrigado em todos os resguardos mais recônditos, com medo da chuva, da explosão dos prédios e do desabar das nuvens. Um vento muito frio percorria tudo, entrava nas casas, levava as roupas penduradas nas varandas, formava rolos de espuma, sobre os quais voavam pássaros estranhos e agoirentos. A chuva caía em gotas gigantes, sobre a forma de pesados pedregulhos, destruindo os poucos prédios que haviam sobrado, transformando-os numa poeira que se espalhava pelas ruas, transformando-as em reluzentes riachos, sem árvores nas margens. Já ninguém existia na cidade. Todos os prédios haviam sido destruídos e as ruas desfeitas. Não ficara pedra sobre pedra. Apenas um enorme tapete preto, debruado a amarelo, com quatro gigantescos castiçais com velas a arder nas quatro extremidades. No meio, sobre o tapete um catafalco e sobre este um gigantesco caixão, todo forrado de negro, com um pequeno cruxifixo em cima e uma faixa branca no lado com meia dúzia de palavras, com as letras tão trémulas, tão desfeitas e tão amareladas que nem se entendiam. Ao longe, um leve dobrar de sinos… Três fortes pancadas soaram na porta. Era a Olinda, a filha da comadre Inácia. Desde há muito que lhe prometera fazer umas cortinas para a janela da sala. Seriam de renda, com desenhos de flores e de frutos, com letras e palavras evocando a felicidade, a sorte e a fortuna. A tia Júlia havia de as colocar na janela da sala no dia em que o Senhor Espírito Santo voltasse a sua casa…

Ao meio da tarde a vizinha Jacinta, que na noite anterior lhe fizera companhia desde a igreja até à porta de casa, perante o estranho e misterioso silêncio que emanava do pobre e humilde casebre, bateu-lhe à porta. Como ninguém respondesse, decidiu-se por abri-la. Tia Júlia debruçada sobre a mesa da cozinha estava morta.

Quando mais tarde a despiam para lhe colocar o corpo inerte entre os velhos e rotos lençóis que a haviam de embrulhar na sua caminhada para o cemitério, encontraram num dos bolsos do velho avental que sempre trazia vestido, muito amachucado, muito amarelado, muito amarrotado, muito regado com lágrimas de dor, muito embalado em suor de sofrimento e angústia, aquilo que parecia ser um envelope vindo da América há muitos anos. Dentro estavam duas cartas: a primeira e única que o seu António lhe escrevera e uma outra que a Tia Júlia nunca percebera e rezava assim:

“San Francisco 14 November, 1906

Mss Júlia Silva

We are sorry to report that António Chibante was found dead among the countless victims of the great earthquake that occurred on April 18, in this city of San Francisco. We further inform that since he had no insurance there will be no right to any compensation.”

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publicado por picodavigia2 às 00:09

ALCANENA - HISTÓRIA

Sábado, 01.09.18

A origem da vila de Alcanena remonta, segundo alguns historiadores, à ocupação árabe da Península, da qual herdou, para além da toponímia, a fixação e o desenvolvimento dos trabalhos de curtimento de peles. Da influência árabe na região ter-lhe-á ficado, como atrás foi referido, a toponímia: as duas principais versões propõem-nos “alcalina”, “cabaça seca” e “al-kinan”, “lugar sombreado”. Contudo, e durante séculos, a história de Alcanena e sua região dilui-se na história mais geral do concelho de Torres Novas, do qual se desligou administrativamente no início do século.

A vila terá sido tomada pelos portugueses no reinado de D. Sancho I, que teve grande importância no seu povoamento. No decurso da história, Alcanena sofreu com as lutas com Castela e, mais tarde, com as invasões francesas e com as lutas liberais entre D. Pedro e D. Miguel.

Terra liberal por excelência, Alcanena vibrou com a implantação da República, a que está indissoluvelmente ligada. “Para o País a República, para Alcanena o Concelho” foi o mote para unir os alcanenenses nesses tempos. Em 8 de Maio de 1914, pela lei Número 2 156, era criado o Concelho de Alcanena, integrando as freguesias de Alcanena, Bugalhos, Minde e Monsanto, até aí pertencentes ao concelho de Torres Novas, e Louriceira e Malhou, então do concelho de Santarém. O mesmo diploma elevaria Alcanena à categoria de vila.

Mas se a autonomia, por lei, chegou apenas em 1914, não há dúvida de que Alcanena, desde cedo, se começou a evidenciar pelas características das suas atividades económicas, com especial destaque para a indústria de curtumes.

A fixação da povoação é nitidamente medieval e a fundação da Confraria de Alcanena, em 1353, atesta que, a meio do século XIV, emergiam já sinais reveladores do sentimento comunitário dos moradores. No cadastro da população do reino, realizado em 1527, Alcanena, Peral e Gouxaria contavam 40 vizinhos, pelo que a população das três localidades deveria andar muito perto das duzentas pessoas, no início do século XVI. Em 1758 contava já com 267 fogos e 1067 habitantes, como freguesia do concelho de Torres Novas.

Em 1764, com Monsanto, integra a 7ª Companhia da Capitania-Mor das Ordenanças daquele concelho, agrupando 13 esquadras repartidas por Monsanto, Alcanena, Covão de Feto, Gouxaria, Moitas Venda, Casais Robustos e Raposeira.

Em 27 de Outubro de 1782, em sessão da Câmara de Torres Novas, é deferido um pedido do povo de Alcanena que pretende realizar a Feira Franca de S. Pedro, anual, a 29 de Junho. Em 1788, aquela autarquia discute a realização de um Mercado Semanal em Alcanena, às quartas-feiras, autorizado pouco depois.

Estas duas imposições do povo de Alcanena fazem-nos pensar que a região detinha já uma vida económica muito própria e florescente, ao que não será estranho, pensamos, o surto que se terá verificado nas atividades de curtumes.

É desta época, concretamente de 1792, o brasão encontrado num edifício fabril da vila, associado a uma inscrição que diz tratar-se de uma fábrica de sola com privilégio do governo pombalino. Este desenvolvimento vai refletir-se no número de fogos recenseados no ano de 1867: 472, quase duplicando os que a freguesia tinha 100 anos antes. Alcanena continua a crescer e a centralizar.

Em Julho de 1887, a Câmara Municipal de Torres Novas aprova a realização de um mercado semanal em Casais Galegos (hoje Vila Moreira) para, em 21 de Maio de 1896, dar parecer favorável à criação de uma Feira anual mista em Alcanena, no dia de S. João.
Mas, se o dinamismo económico era uma realidade, também o era o fervilhar de ideias de autonomia administrativa, estreitamente ligados a uma forte implantação do republicanismo.

Situado na região do Ribatejo, o concelho de Alcanena conta, atualmente, com cerca de 15 mil habitantes, distribuídos por sete freguesias (União de Freguesias de Alcanena e Vila Moreira, Bugalhos, União de Freguesias de Malhou, Louriceira e Espinheiro, Minde, Moitas Venda, Monsanto e Serra de Santo António) e uma área de 127,8 Km2.

O concelho apresenta-se hoje como um território caracterizado pela atividade industrial de curtumes, que é a sua principal base económica, logo seguida da indústria têxtil que, com raízes históricas na freguesia de Minde, assume igualmente

um importante papel na economia local e regional.

In Site da CMA

 

um importante papel na economia local e regional.

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