PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
OS FISCAIS DOS ISQUEIROS
Os fiscais dos isqueiros eram, na Fajã Grande e provavelmente em muitas outras localidades das Flores, talvez mesmo dos Açores, depois do diabo e dos navios russos, um dos principais e mais indesejados arquétipos do medo. É que assim como os navios russos, que o mafarrico pelos vistos nunca chegou a aparecer a quem quer que fosse, os fiscais dos isqueiros apareciam de repente, sem ninguém contar com eles, quanto menos se esperava, disfarçados, à paisana e sem se identificarem. Um dedo a raspar na roda de fuzil do isqueiro e, mesmo que este ou por falta de gasolina ou por excesso de vento, não acendesse ou nem sequer faiscasse, era multa certa e sabida. Pagava-se, não se bufava e ficava-se sem o dito cujo.
É que em Portugal, nos anos cinquenta e nas décadas anteriores, durante o governo ditatorial salazarista, havia uma lei segundo a qual o porte e uso do isqueiro, com o objectivo de acender o cigarro, exigiam uma licença que custava na altura, se bem me lembro, à volta de dez escudos. Muito dinheiro naquela época! Além disso um gasto injustificável e incompreensível, quando afinal o dinheiro rareava para os bens estritamente necessários. Mas a lei era de tal maneira exigente que a licença, para além de ser tirada e devidamente paga, era como a carta de condução, isto é, devia estar na posse do utilizador do isqueiro sempre e em qualquer lugar em que este se encontrasse ou estivesse a fumar, quer fosse fora da porta de casa, sentado à Praça, no Mato ou a até a dançar a chamarrita em cima do Monchique. Os fiscais, por sua vez, eram tão pérfidos, ferozes e safardanas que, para além de actuarem pela calada, como as raposas quando assaltam os galinheiros, tinham a distinta lata de chegar a pedir lume a uns e a outros, para mais facilmente apanharem quem quer que fosse, com a boca na botija. As multas, por sua vez eram pesadíssimas, chegando a rondar os cinquenta escudos, o que significava rigorosamente quase três alqueires de milho ou outros tantos dias de trabalho.
Nunca se percebeu bem a razão e o fundamento desta inaudita lei, e, sobretudo, da forma pérfida e acutilante como se exigia o seu cumprimento e castigava os prevaricadores. Além disso, a multa era duplicada se o prevaricador fosse funcionário público.
Na altura cuidava-se, que o seu objectivo de tal lei era proteger a Fosforeira Nacional, produtora das célebres caixinhas de “amorfos”, com as quinas portuguesas ou com meninos de várias raças desenhados no seu frontispício. É que o dinheiro das licenças e 70% do das multas revertia a favor daquela empresa que detinha o monopólio da produção das caixas de fósforos, na Fajã Grande designadas, na altura, por “caixas de mechas”. Os restantes 30% revertiam a favor dos próprios fiscais e dos seus informadores, porque os havia também. Uma espécie de “bufos”, camuflados, semelhantes aos da PIDE. Assim se podia compreender a forma intrigante, opressiva, tirânica e gananciosa de actuar dos fiscais sobre os fumadores dos célebres rolos de “1943” de cor azul e dos “Santa Justa” de cor acastanhada, quando puxavam do isqueiro para os acender.
Na Fajã, no entanto, as receitas para a Fosforeira Nacional não eram muitas, nem os lucros dos fiscais volumosos. É que sendo um lugar pequeno e isolado, a chegada daqueles intrusos meliantes era quase sempre detectada por alguém, mormente após a primeira actuação e, a partir daí o grito de - “Estão aí os fiscais!” - espalhava-se como em eco, com uma celeridade impressionante, a tempo dos futuros prevaricadores se prevenirem, geralmente escondendo a “arma do crime” em lugar secreto e bem seguro, como um buraco da parede, numa cova depois de embrulhado numa folha de inhame e que, após a debandada dos “abutres”, seria de novo retomada para se acenderem os cigarros, sem multas, com o devido sossego e à vontade.
Curiosamente os antigos isqueiros feitos de pedra e sem gasolina, na altura já pouco usados, não eram multados.