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A ENCOMENDA

Sexta-feira, 12.10.18

O aviso amarelo chegou cinco dias após o Carvalho ter demandado a ilha e foi recebido, lá em casa, com enorme alarido e desmesurado alvoroço. Vinha aí uma encomenda da América! Ai vinha, vinha!...

Na manhã seguinte meu pai, aviso no bolso, bordão atravessado sobre os ombros, froca a tiracolo, com um parco farnel numa das mangas, partiu, muito cedo, para as Lajes. Tão cedo que ninguém lá em casa deu por isso, a não ser a minha mãe que se levantou para ir à cozinha aquecer um caneco de alumínio, bem cheio de café, sobre o fogão da luz, que ainda era noite escura. Bem precisava o meu progenitor de forças para fazer tão longa caminhada!

Na véspera, meu pai deixara uma boa parte do dia planeado e todas as tarefas muito bem aclaradas: - O António e eu íamos buscar a Benfeita e os bezerros à Pedra d’Água, enquanto o José limpava o palheiro. Minha mãe tirava o leite à vaca e a Maria ia levá-lo à máquina. Terminada a escola iam todos sachar o milho da Bandeja, que ele quando chegasse haveria de lá ir ter para nos ajudar.

Todas as tarefas, com exceção do milho da Bandeja, foram eximiamente executadas com entusiasmo e competência, mas nenhum deixou de pensar na encomenda, durante todo o dia, por um único momento que fosse. Na verdade sachar o milho da Bandeja era o que mais nos incomodava. Não fosse meu pai chegar a casa com a encomenda e nós não estarmos presentes para a abrir. Por isso, despachamo-nos do milho da Bandeja atabalhoadamente e, cedo, viemos esperar meu pai, sentadinhos na soleta da porta da sala. Uma encomenda da América era de se lhe tirar o chapéu. Não se podia perder por nada deste mundo o momento da abertura. Cada um já se imaginava com um vestido ou uma camisa nova, uns alvarozes, uma froca, umas calças de angrim, um beltro, um caneta de luzinha, lápis de cera e, quem sabe, talvez um brinquedo e muitos candis. Bem desejávamos ir esperar meu pai ao Cimo da Assomada, à Eira da Cuada ou, se pudéssemos, à Ribeira Grande mas… a minha mãe não deixou.

Finalmente, quase ao fim da tarde, meu pai chegou e trazia às costas uma enorme saca branca, com o seu nome escrito a letras azuis, muito grandes, com muitos selos, etiquetas verdes, carimbos pretos e roxos e com a direcção muito certinha. Era remetida de Turlock, Califórnia pelo tio Francisco. Meu pai mal a acabara de colocar no meio da sala e nós atirámo-nos a ela que nem Santiago aos mouros, perante os protestos da minha progenitora que com a tesoura da costura tentava, com dificuldade, abrir o saco sem o danificar, pois daria muito jeito e serviria perfeitamente para levar a moenda ao moinho de tio Manuel Luís. É que o saco que ela usava para levar o milho e trazer a farinha depois de moída, já tinha mais remendos do que lona original. De seguida, com cuidado e perante a nossa exasperada agitação, minha mãe foi tirando as peças de roupa, uma por uma. No fundo do saco, dois pares de sapatos, muito velhos e gastos mas que serviriam ao meu pai, para usar aos domingos. Dentro destes, umas canetas que já nem escreviam, vários lápis usados, borrachas e outras bugigangas. Minha mãe, sempre perante a nossa inquietação, lá foi estendendo tudo pelo chão. Só depois de tudo retirado do saco e de o revirar pelo avesso, não tivesse algum dola lá dentro, deu ordens para que cada ume maneira agarrasse no que quisesse, no que lhe apetecesse ou simplesmente no que os outros deixassem. A sala exalava agora aquele cheirinho tão típico da roupa americana. Parecia que dentro da saca se havia derramado um frasco de perfume. Nós embrenhados não apenas na escolha e na prova mas sobretudo na pesquisa. É que nos bolsos dos casacos e das calças, ou embrulhados em lenços mas muito bem escondidinhos, vinham, por vezes, “candis”, “pinotes”, rebuçados, chocolates, canivetes, sabonetes e frascos de perfume, alguns até vazios. Desta vez, para desânimo nosso, tudo vazio. Apenas roupa, mais roupa, dois pares de sapatos muito usados, um beltro de fivela amarela e pedaços de pano muito coloridos. Mas cheirava tudo tão bem!

Uma vez tudo virado e revirado, vasculhado e apalpado, chegou a hora de dividir o tesouro. Primeiro minha mãe selecionou e guardou as roupas que serviam, com mais ou menos rigor, em cada um e poucas eram. A partir daí a ordem era cada qual ficar com o que quisesse e lhe apetecesse. Mas a minha mãe havia de supervisionar tudo. Foi um ver se te avias: pega, puxa, larga, tira, deixa, mostra e toma. Foi tal escolher e, de seguida, fazer a prova. Sobre as ordens e orientação da minha progenitora, cada qual ficou com o que melhor lhe serviu, embora desajeitadamente, muito desajeitadamente.

Depois de tudo acertado e dividido e da minha mãe guardar o que julgara melhor e de se retirar para a cozinha, decidimos que cada um havia de vestir o que lhe ficasse melhor e iriamos à Fontinha, mostrar à avó e às tias aquelas maravilhas da alta-costura americana. O José vestiu um saiote, que lhe arrastava pelos pés, a Maria um vestido muito largo e comprido, apertado à cintura com um cinto preto, o António umas calças verdes tão largas que tinha que as segurar constantemente com ambas as mãos e eu com um vestido de menina e uma camisa de seda cor-de-rosa por cima. Lá fomos todos vaidosos e contentes com tão adequadas e estéticas vestimentas, todos muito felizes, juntinhos e de mãos dadas. Ao rodar à Praça havíamos de encontrar o Maurício que ao ver aquele quadro estapafúrdio desata numa enorme gargalha e a fazer pouco de nós.

A Maria não esteve com meias medidas e, aproximando-se dele, apontou-lhe o dedo e atirou-lhe à cara:

- Estas a rir porque estás roído de inveja!

E seguimos o nosso caminho, muito felizes, porque uma encomenda vinda da América não se tinha todos os dias.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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