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SE NÃO FOSSE O BRASILEIRO

Sábado, 20.10.18

As primeiras aulas de cada ano lectivo destinavam-se, geralmente, ao conhecimento recíproco dos alunos e do professor, o qual, no fim do tempo indicado no horário e no espaço que lhe era reservado, gatafunhava no livro do ponto: “Apresentação professor/aluno”. No entanto, alguns professores, sobretudo os que consideravam aquela tarefa precursora de um eficiente relacionamento pedagógico que decerto havia de reflectir-se positivamente na aprendizagem dos alunos durante os três longos períodos lectivos, dedicavam-lhe mais uma aula, registando, desta feita no livro de ponto: “Apresentação aluno/professor”. Outros, com a denodada intenção de fazer “render o peixe”, chegavam a prolongar a referida tarefa por uma terceira aula. Neste caso, porque o número de alunos por turma era bastante elevado, muito simplesmente escreviam no dito livro:”Continuação da aula anterior”.

No ano do meu quadragésimo quinto aniversário, numa dessas aulas - confesso que geralmente dedicava àquela tarefa apenas  uma aula - ao apresentar-me, esqueci-me de referir um dado que os alunos consideravam importante – a idade. Não me perdoaram o olvido. Foi um garoto de olhos vivos e ar de espertalhote, sentado na fila da frente, que me exprobrou de imediato:

- E a idade?! Esqueceu-se da idade. Que idade é que o “Setô” tem?

Lamentei o meu imperdoável esquecimento. Depois, como que a querer recompensá-lo pela sua atenção e perspicácia, desafiei-o:

- Olha lá! Que idade é que achas que eu tenho?

O Rui, era assim que se chamava o arguto, olhou para mim de alto abaixo, avaliou-me com denodado rigor e atirou sem hesitação:

- Quarenta! Aposto que “Setô” só tem quarenta anos.

Fiquei lisonjeado mas, com a maior das inocências, retorqui:

- Mais!... Tenho mais…

Eis senão quando, lá do fundo da sala, um sonso mas bargante mocetão levantou-se e, de rompante, antes que alguém alvitrasse alguma alternativa mais plausível, gritou exasperadamente:

- Cinquenta! Cinquenta!

Fiquei perplexo. Eram cinco a mais. Mas já que me dava cinquenta, decidi continuar, com um misto de expectativa e jocosidade, aquela espécie de leilão pedagógico que ali se iniciava, a fim de tentar descobrir até onde a minha aparência anatómica me poderia levar, perante o inocente mas sincero julgamento dos meus jovens interlocutores. Por isso, em ar de desafio, de maneira que sentissem que eu estava a falar a sério e não descortinassem a minha perplexidade, insisti:

- Mais… Mais…

Uma miúda, tímida, hesitante e como que a arrepender-se a meio da conversa, lá disse:

- Cinquenta e… três?

Logo uma outra, sentada ao seu lado, muito lesta a corrigi-la:

 - Cinquenta e cinco.

Como eu continuasse a insistir no “mais e mais” de forma aparentemente convicta, a fasquia foi subindo assustadoramente. Ultrapassou os sessenta, sessenta e cinco, sessenta e seis, sessenta e oito e fixou-se, provisoriamente, nos setenta.

Confesso que me arrepiei dos pés à cabeça, ao mesmo tempo que me arrependia de ter provocado semelhante imbróglio, do qual eu era obviamente o culpado número um. Temia, seriamente, que aquilo não parasse por ali…

Foi então que um brasileiro, o único que havia na sala, levantou o braço e pediu autorização para falar. Como lhe acenasse afirmativamente, ele, com um misto de seriedade, de convicção e de certeza, pôs, finalmente, a devida água na fervura, esclarecendo definitivamente a amargosa e desconfortante trapalhada em que eu, minutos antes, me havia metido:

- Puxa, professor! Não pode ser! Você está a mangar co’a gente. Então meu avô tem sessenta e cinco e você parece muito mais novo do que ele.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:06





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