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O CASTIGO DOS SOBERBOS

Sexta-feira, 23.11.18

“Os mais soberbos na prosperidade são os mais débeis na adversidade.”

 

Fénelon (Teólogo, poeta e escritor francês)

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O CAIS DAS LAJES

Quinta-feira, 22.11.18

A ilha das Flores era a única ilha dos Açores em que o velhinho Carvalho Araújo, que as visitava mensalmente, atracava em duas localidades: em Santa Cruz , durante a manhã e nas Lajes, ao longo da tarde e até à noite.

Os habitantes da Fajã Grande que nele viajavam, como grande parte dos de toda ilha, normalmente desembarcavam em Santa Cruz. É verdade que a deslocação para a Fajã era um pouco mais longa, mas, em compensação era possível fazer o trajecto até aos Terreiros de carro. Além disso desembarcando da parte da manhã, os passageiros chegavam sempre mais cedo a casa. Pelo contrário, o embarque era quase sempre feito pelas Lajes, permitindo assim sair-se de casa no próprio dia, percorrendo o longo e sinuoso caminho, entre a Fajã e as Lajes, durante a madrugada e manhã.

Por isso no cais da Lajes, em dia de chegada do Carvalho, reinava uma confusão tremenda e uma barafunda descomunal. Homens, mulheres, crianças, malas, baús, grades, bidões, caixotes, barris, sacos de serapilheira, bois, vacas e até alguns cavalos amontoavam-se em desusada caldeação. Aguardava-se a chegada de mais uma das duas pequenas barcaças que iam e vinham, alternadamente, entre o cais e o enorme paquete ancorado a umas duas ou três milhas de terra. Eram lanchas pequenas, vagarosas e frágeis que iam e vinham à vez, chegando carregadíssimas, a abarrotar de pessoas e bagagens. Encostavam-se às escadas de acesso ao porto e dois marinheiros, de calças arregaçadas pelo joelhos e descalços, uma à proa e outra à ré, atiravam as cordas que traziam amarradas nas bordas da embarcação para cima do cais a fim de que as alças das pontas fossem presas nos moitões de ferro cravados no cais, permitindo aos passageiros saltar para terra com maior segurança. Só depois lhes era retirada a bagagem, que, a conta gotas, ia sendo atirada pelos marinheiros para cima do cais onde estavam os bagageiros que a apanhavam com mestria e a seguravam com perícia de forma a que nenhuma mala ou caixote caísse no chão ou escapulisse para o fundo mar. Assim que as lanchas ficavam livres das pessoas e das malas que traziam de bordo, seguia-se uma lufa-lufa medonha, por parte dos que estavam em terra e pretendiam embarcar. Acompanhados da respectiva bagagem, todos queriam ser os primeiros a entrar e a ocupar os melhores assentos nos pequenos batéis, enquanto as malas iam sendo arrumadas à proa e à ré das embarcações.

Mais fora, mas antes do molhe, dois botes maiores do que as lanchas e com motores mais potentes, carregados com sacos de farinha, de açúcar, de adubo, de cimento, caixotes de sabão e de bebidas, bidões de cal ou de petróleo, grades com garrafas de cerveja e de pirolitos e muita outra carga, também se iam, à vez, encostando ao cais. Em terra, um pequeno e desengonçado guindaste levantava, muito lentamente, toda aquela carga e colocava-a, desordenadamente, em cima do cais. Depois alguns homens entretinham-se a arrumá-la e ordená-la de acordo com os comerciantes da vila a quem se destinava e dos quais se destacavam: o Germano e a Firma.

 

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publicado por picodavigia2 às 00:05

ONÉSIMO ALMEIDA E O SÉCULO DOS PRODÍGIOS

Quarta-feira, 21.11.18

Numa altura em que a palavra “Descobrimentos’” dá origem a algumas discussões acesas, e que, para alguns, será politicamente incorreto usar, Onésimo Teotónio Almeida, em conversa com o PÚBLICO, disse que “descobrir não significa criar, inventar. Quando a Polícia descobre o criminoso, não o inventa. Os portugueses descobriram ilhas que não tinham ninguém nem estavam sequer mapeadas. Descobriram o caminho marítimo para a Índia, ninguém diz que os portugueses descobriram a Índia. Do resto são ‘Descobrimentos’ do ponto de vista europeu. Haja um pouco de senso. O papel do historiador não é condenar a História, é narrar os factos, e explicar. Na narrativa, lidamos com factos e com argumentos, não cabe absolver nem condenar a História.” Alguns dos ensaios inclusos em O Século dos Prodígios serviram como tentativa de corrigir a historiografia anglo-americana que teima em ignorar o que se passou em Portugal nesse período, sobretudo entre o final do primeiro quartel do século XV e os finais do segundo quartel do século XVI, com a chegada ao Japão. “Do ponto de vista propriamente de interesse para a ciência, teríamos de terminar [este período referido] um quartel mais cedo, com a viagem de Fernão de Magalhães”, escreve Onésimo na introdução ao livro. De facto, há poucas obras disponíveis de historiografia traduzidas para inglês. “Algumas foram traduzidas e publicadas, mas em edições muito antigas, e não foram reeditadas. Por tradição, os ingleses e também os americanos não conhecem outras línguas”, diz Onésimo Teotónio Almeida. “Nós não temos feito o bastante para tornar esse material, que existe, disponível em inglês.” E refere alguém que escreveu, num outro contexto, que “os portugueses não souberam contar a sua história”. Ainda sobre este assunto da falta de informação sobre este período da História, e como podem ser tecidas narrativas diferentes dos factos, conta como entre os americanos, também entre os franceses, “e no outro dia também na Suíça, corre a ideia ‘estúpida’”, posta a circular por um escritor americano de livros de ficção, de que Colombo foi ter com D. João II, oferecendo os seus préstimos, e lhe diz que a Terra é redonda, ao que o rei português responde ser plana. “Não foi nada disso”, diz Onésimo. “Os portugueses já sabiam que a Terra era redonda — qualquer indivíduo culto português, na altura, sabia que era redonda. O debate que acontecia era sobre o tamanho da Terra e sobre como era o hemisfério sul.” Por detrás destes ensaios, desta empolgante história de descobertas, está “o fascínio com o novo”, neste século de prodígios. Mas que prodígios foram estes? Para o professor da Brown, o prodígio, ou o conjunto de prodígios, foi tudo o que levou à descoberta do caminho marítimo para a Índia. Foi ter-se encontrado resposta à pergunta “como é que se vai por esse mar abaixo?”, foi fazer a cartografia do Atlântico do Equador para baixo, o mapeamento do céu, “porque foi preciso encontrar novas estrelas para se orientarem, a Estrela Polar desaparece abaixo da linha do Equador. Foi tudo feito com uma tenacidade absolutamente anormal para a época. O fascínio do novo aconteceu aqui.” Era pouquíssima a informação disponível na Europa sobre aquilo que os portugueses precisavam de saber, havia a dos gregos antigos, obviamente, imprecisa e enganosa. As informações sobre o que se encontraria da linha do Equador para baixo eram nulas e pejadas de mitos. Como seria da “parte de baixo” da Terra? “Talvez as gentes andem de pernas para o ar”, constava. E o mar Atlântico ligaria ao Índico? Não seria este um lago enorme sustido de um dos lados pela tal terra incognita do mapa ptolemaico? A tudo isto os portugueses tiveram que dar resposta para conseguirem descobrir o caminho marítimo para a Índia. A partir de determinada altura, “há um desinvestimento em procurar para sul a passagem para o Índico, e começa a aumentar o investimento em procurar, a partir dos Açores, um caminho por noroeste, porque vai ser mais barato, isto sempre dentro do paradigma de que a Terra é redonda”, nota Onésimo Teotónio Almeida. O que se torna inovador — um dos prodígios que titulam o livro — na chegada à Índia foi a maneira como tal aconteceu, dada a reduzidíssima informação existente. “Foi inovador do ponto de vista científico e tecnológico”, diz Onésimo. “Pela primeira vez, ciência e tecnologia andaram juntas. Mesmo mais tarde, no século XVII, em Inglaterra, quem fazia ciência não estava preocupado com a aplicação tecnológica do conhecimento que adquiria. A ciência em Portugal era então orientada para a resolução de problemas práticos. Como é que se vai para ali, e com que barcos, e quando se chegar ao Equador como é que vai ser? Eles sabiam que a Terra era redonda, mas pensavam ‘depois de se passar o Equador vamos cair onde?’, pois não havia a menor ideia da gravidade. Eles vão aos poucos, um barco vai até um cabo na costa de África, e volta para trás e informa os restantes.” A Lisboa daquele tempo fervilhava de gente vinda de todo o lado, isto é sabido dos livros de História. Há então uma nova mentalidade, os reis e alguns nobres interessam-se pelo saber, são curiosos. Procuram entre os estrangeiros aqueles que sabem, os assuntos são conversados e discutidos. As notícias do que acontecia em Lisboa passam as fronteiras do reino. “Lisboa era então uma espécie de pólo magnético que começava a atrair a gente com saber que vivia por essa Europa. A partir de certa altura, quem na Europa queria saber coisas vinha para Lisboa. O Garcia de Orta diz que em Lisboa se sabia mais num dia do que em Roma em cem anos. A Lisboa tudo chegava” diz Onésimo. “Os reis portugueses mandavam gente para a Europa para descobrirem quem sabia mais e depois traziam-nos. Isto é uma atitude completamente moderna. É quase como o exemplo de Palo Alto, na Califórnia, nos dias de hoje — atraem os jovens que sabem, pagam bem, e as pessoas vão para lá.” A nova mentalidade empírica entre a gente culta de Lisboa tem também implicações “tecnológicas”. A experiência, ou melhor, os seus resultados começam a ser tratados de maneira científica, e isso é atestado pelas espetaculares narrativas de Duarte Pacheco Pereira e de D. João de Castro, nos seus diálogos com os marinheiros. Tudo isto foi possível porque havia um grupo de gente muito culta que gostava de pensar, e outros que sabiam construir barcos e navegar, e havia dinheiro. “Não havia uma escola de Sagres, mas havia um escol de gente com muita curiosidade”, refere Onésimo Teotónio Almeida. “Começa a surgir um novo critério do que é que constitui a verdade. Há gente muito inteligente, muito culta, como o D. João de Castro, que põe os marinheiros a fazerem coisas [experiências] e a mandá-los tomarem nota de tudo — ‘vai experimentar, não dá certo, agora corrige’. Há problemas que surgem e que ele próprio resolve, mas há outros que não consegue e então pede ajuda ao Pedro Nunes, um matemático, um pensador, um teórico. O Pedro Nunes nunca viajou — era reconhecido como o maior matemático do século XVI.

NB - Texto retirado do Jornal Público on line

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publicado por picodavigia2 às 08:36

O MURMÚRIO DOS BÚZIOS

Terça-feira, 20.11.18

Ele vivia junto ao mar, numa casa simples, pequenina ornada com flores de algas e perfumada com os afagos oscilantes das marés. Mas se quisermos ser mais precisos, afinal, não era ele que morava junto ao mar. Era o mar que morava junto dele, que cercava o seu quotidiano duma maresia persistente, decalcada em ondas baloiçantes, a perderem-se num vaivém irrequieto, umas vezes embravecido outras ternurento, mas sempre a trazer-lhe uma salubridade adocicada, uma brisa inebriante, um resfolgo de liberdade.

Desde pequenino que a avó lhe segredava: o mar, para além de maior e de mais inquietante, também é mais rico do que a terra. Mas não eram os tesouros dos navios encalhados, nem o ouro das caravelas perdidas, nem os cofres dos piratas naufragados, nem sequer o pescado fluente, quotidiano, despejado sobre o cais, a ressuscitar o reboliço da lota. Por nada disso ansiava. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Lembrava-se muito bem de ter lido no livro da quarta classe um poema que dizia: Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal. Era esse mar salgado, ali presente, paternal e amigo, que lhe atirava respingos de salmoura, o cobria de espuma e o transformava num escudo translúcido que o protegia de nevoeiros e caligens. Belo poema, uma espécie de cântico dos cânticos, um elogia da maresia, talvez o hino daquele torrão azulado, enorme, que, por vezes e em sonhos, lhe parecia tornar o nundo infinito. Mas do mar não queria nem o infinito, nem o azul, nem sequer as lágrimas dos seus heróis, transformadas em cristais de sal. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. Terminava assim aquele poema. Não sabia o nome do poeta que o escrevera, mas seria, decerto, um poeta grande, autor de muitos outros poemas, porque este era, deveras, belo, mesmo sublime. E um poeta nunca faz só um poema ao mar. E sobre o mar não faz versos apenas um poeta. Talvez até muitos outros poetas tivessem trovado sobre o mar. Quando morrer quero levar comigo um pedacinho do mar, para recuperar o tempo que vivi sem ele. Mas também do mar não queria os poemas, embora se deleitasse a apreciar alguns deles. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Até nas madrugadas sombrias e enevoadas escapulia para junto do mar. Era um tormento, uma angústia, uma consumição, ver aquele enorme lençol de água, sem Sol, sem uma réstia de luminosidade que, ao menos, tivesse ficado esquecida do dia anterior, a aureolar-se para aos poucos se ir transformando num clarão, que trouxesse um respirar mais folgado às rochas, aos baixios, aos escolhos e até ao sargaço que, arrancado das profundezas pela força das correntes, flutuava suavemente sobre as águas. Mas não queria as rochas mesmo que o Sol as clarificasse em cada manhã, nem queria baixios, nem escolhos, nem sequer o sargaço, mesmo já postado em terra e a secar, no estio. Do mar, ele queria apenas os búzios.

Depois eram as ondas, umas vezes pequeninas, lisas, sonolentas, outras enormes, gigantescas, altivas, bravias, mas sempre a irem e a virem, num vaivém ritmado, umas vezes mais suave e embelecido outras, agreste, toldado e raivoso, a saltarem por entre os esconderijos das enseadas, repletos de sombras e de mistérios ou a enrolarem-se nos pedestais das baixas e dos ilhéus, cravejados de lapas e assolados por caranguejos. Mas do mar também não queria as ondas, por mais mansas e quietas que fossem, nem a arrogância ingénua dos ilhéus ou negrume basáltico dos baixios. Do mar ele queria, apenas, os búzios.

Estranha obsessão, esta, a dele, de nada mais querer do mar, para além dos búzios. E sabem porque do mar ele, apenas, queria os búzios? Simplesmente para os colocar junto ao ouvido e ali ficar, uma eternidade que fosse, a ouvir o suave sussurrar do oceano. É que dentro dos meandros cavernosos e enroscados das suas conhas, o mar nunca é revolto, não há tempestades nem bravezas e as ondas, ali, ouvem-se sempre, suaves e doces, como se fosse em eco, por que balançam sempre, num vaivém ternurento e meigo, semelhante, talvez mesmo igual, àquele com que as mães embalam os seus filhos.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

O IMPÉRIO DOS TRICICLOS

Domingo, 18.11.18

A abertura da estrada entre o Porto da Fajã e a Ribeira Grande, no lugar do Pessegueiro, veio alterar radicalmente os meios de transporte de produtos agrícolas fajãgrandenses. Até então e quando os produtos das terras não eram acarretados às costas, o corsão de madeira, puxado por bovinos e a arrastar sobre as pedras da calçada, era o tipo de transporte mais utilizado na Fajã Grande. Os carros de bois eram raros e os existentes pouco utilizados. Daí o frequente e contínuo recurso ao típico e tradicional corsão de bois. Mas na nova estrada, com piso de bagacina e, mais tarde, alcatroado, foi obviamente proibido o uso daquele veículo rastejante. É que, deslocando-se por arrasto, o corsão destruiria por completo o liso e fofo tapete da nova e moderna via de comunicação. Daí que toda a zona limítrofe da nova estrada, desde o Vale da Vaca ao Vale Fundo, ao Delgado, Cabaceira, Moledo Grosso, Lombega, Cancelinha, e até à Cuada ficasse impedida dos seus produtos serem acarretados em corsões.

Bem verdade é que a necessidade aguça o engenho! Foi precisamente nesta altura e por esta razão que surgiram, na Fajã, os célebres triciclos que dominaram e se impuseram no transporte dos produtos agrícolas da zona e lugares acima referidos. Muito provavelmente inspirados nos pequenos brinquedos das crianças com o mesmo nome, começaram a construir-se triciclos gigantes, do formato quase semelhante ao dos carros de bois, embora de tamanho bastante menor. Só que as rodas em vez do arco de ferro que as envolvia eram mais pequenas, mais leves e eram forradas e protegidas por uma tira de borracha ao seu redor, a fim de as proteger do desgaste, de tornar o seu deslizar mais suave e o seu peso menor. O cabeçalho era mais grosso do que o dos carros de bois e sobre ele existia um assento de forma triangular, para o condutor. Na extremidade do mesmo em vez do buraco da chavelha e da canga havia um orifício onde se enfiava e no qual rodava o guiador, e que se articulava a roda da frente. Os triciclos eram munidos de travões nas rodas de trás.

O primeiro triciclo que houve na Fajã foi construído pelo José Furtado ao qual se seguiram muitos e muitos outros. Por vezes era impressionante o número de triciclos que deslizava pela Assomada abaixo, carregados com lenha, fetos e cana roca, incensos para o gado e até milho e batatas. No entanto os triciclos tinham um senão: é que só deslizavam “de volta a baixo”, enquanto na subida tinham que ser empurrados pelo próprio dono, o que, por vezes, tornava o seu uso mais difícil, incómodo e pouco abonatório. Havia, no entanto, quem na subida os atrelasse a um burro, resolvendo assim o problema. Direito a baixo, porém, eram um regalo. Desciam velozes, bem carregadinhos lá vinham os próprios donos todos prazenteiros a conduzí-los. Alguns até timham uma corneta a servir de buzina, não fosse algum transeunte ser atropelado.

Paralelamente aos triciclos começaram também a surgir os "carros de mão",  estes sim, uma espécie de miniatura dos carros de bois, mas empurrados e puxados pelo próprio dono. Nestas espécies de miniaturas dos carros de bois o cabeçalho não tinha, obviamente, o buraco da chavelha mas sim, de um lado e outro, um pequeno pau encravado a que se agarravam as mãos de quem os puxava ou conduzia.

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publicado por picodavigia2 às 00:00

TIA LUCINDA

Sábado, 17.11.18
Logo no princípio da Assomada, a seguir à Praça, em frente à minha casa, do outro lado da rua, morava uma velhinha, a Tia Lucinda. De tantos anos que já tinha, da muita doença que a apoquentava e de tanto que se havia cansado da vida, a Tia Lucinda já não ia trabalhar para os campos, nem levar a moenda ao moinho, nem lavar roupa à ribeira, nem sequer apanhar garranchos de lenha, na ladeira que ficava atrás da sua casa, a fim de com eles acender o lume para aquecer o café ou ferver o leite, nem ia às compras às lojas, nem sequer à missa aos domingos, apesar de nem as lojas nem a igreja ficarem muito longe da sua casa. Numa palavra, a minha vizinha Lucinda, ou a viúva de Ti Manuel Rosa, como também lhe chamavam, já não saía de casa a não ser para assomar ao portão do seu pátio, a fim de dar dois dedos de conversa a quem passava pelo caminho ou para chamar minha mãe e pedir-lhe que me deixasse ir comprar-lhe um litro de petróleo, um quarto de barra de sabão, meio quilo de café ou qualquer outra coisa que lhe fizesse falta. Claro que recebia de imediato o beneplácito da minha progenitora e lá ia eu todo vaidoso e contente, a correr, agarrando com quantas forças tinha, para as não perder, as moedas de um escudo ou de cinquenta centavos que a minha vizinha me havia colocado na mão, recomendando-me que tivesse cuidado para não me escapulirem. O que seria de mim se tal acontecesse!... Ia num pé e vinha no outro. É que para além daquele pequeno mandalete não me desagradar absolutamente nada, sabia que no fim seria sempre recompensado pela generosidade da minha vizinha. Mesmo que não trouxesse troco resultante do pagamento da compra de que fora incumbido, ao voltar e ao entrar na casa da Tia Lucinda para lhe entregar as compras, ela suspendia o que estava a fazer e ia buscar uma moedinha de dez centavos que parecia ter sempre guardada de propósito para me dar como recompensa. Se por acaso alguma vez, o que raramente acontecia, não encontrasse a moedinha, não me deixava sair de mãos a abanar. Dava-me uma fatia de pão de trigo barradinha com doce de pêssego, o que também não me desagradava.

A Tia Lucinda, no entanto, trabalhava muito dentro de casa. É que vivia com dois filhos, ambos solteiros, que se dedicavam ao cultivo dos campos e à criação vacas e era ela que cozinhava, lavava a roupa, limpava a casa, cozia o bolo e o pão, tratava das galinhas e do porco e fazia muitos outros trabalhos caseiros, apesar de bastante doente, muito velhinha e excessivamente enfraquecida e de “já não poder fazer nada”, como ela própria reconhecia.

- Quantos anos tem, Tia Lucinda?

- Ui! Muntos, muntos! Já lhes perdi a conta!...

Tia Lucinda, talvez porque não soubesse, nunca me dizia quantos anos tinha, nem há quantos se casara.

Mas o mais interessante é que apesar de nem o marido, (Manuel Furtado Luís Júnior) nem sequer o pai do marido (Manuel Furtado Luís) terem nos seus nomes o apelido de “Rosa”, mas apenas e tão somente porque o avô do marido, nascido há mais de cento e cinquenta anos, se chamava José Furtado Rosa, a minha vizinha Lucinda era tratada por quase toda a gente da Fajã pela “viúva de Ti Manuel Rosa” e os seus filhos o Fernando e o Luís de Ti Manuel Rosa.

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publicado por picodavigia2 às 00:51

A SENHORA D’ALVA

Sexta-feira, 16.11.18

Todas as manhãs a “Senhora d’Alva” aproava ao velho cais, um tapete agreste, rústico e crispado, feito de cimento amassado com areia e misturado com pedregulhos, atirados e colados sobre as pedras negras e virgens do baixio, bem visíveis nos buracos que se haviam aberto com o passar dos anos, com o cirandar das pessoas e com o rolar de pipas e mercadorias. Depois o mar, ali ao lado, com o constante marulhar das suas ondas, umas vezes revolto, agressivo e destruidor, outras meigo e pacato, mas sempre a agastar, sempre a desfazer, sempre a destruir, numa erosão contínua, permanente e afanosa. 

Alheia às asperezas e desgastes do cais, a “Senhora d’Alva” cruzava o oceano, sulcando as suas águas, umas vezes bravas e altivas, outras mansas e suaves, mas sempre tingidas de um azulado enternecedor, a embalá-la com um misto de afeição e suavidade. Carregava sobre si homens, mulheres, velhos e crianças, uns emaranhados nas tarefas do seu labutar quotidiano, outros encastoados nos caprichos de devaneios e lazeres, mas todos a alcandorarem-se num enlevo maravilhoso, num encanto sublime, num êxtase transcendente. A “Senhora d’Alva”, ao rasgar as águas azuladas do oceano, carregava consigo, à mistura com o feitiço das madrugadas, a magia sublime de um navegar mavioso, deslumbrante e enternecedor. 

Depois e já encostada ao cais, prendia-se a ele como se não tivesse medo. Os velhos e enferrujados moitões, ali plantados há séculos, abraçavam-se a ela, seguravam-na nos seus grossos cabos, roçando-os nos beirais agrestes e nas escadas desgastadas, num vaivém embalador, contínuo e mavioso. Homens, mulheres, velhos, jovens, crianças e até alguns doentes, viajando em macas ou em cadeiras de rodas, evaporavam-se pelo portaló fora, como se o entardecer do mundo inteiro os estivesse a perseguir. Depois era um evadir-se de malas, caixotes, sacos, encomendas e mercadoria diversa. Uma miscelânea de recursos! Uma enchente perplexa que urgia esvaziar. A “Senhora d’Alva”, só, vácua, triste e plangente, emitia sons de sirene, magoados, esbaforidos, que se prolongavam como que em eco e se perdiam sobre o cais, mas logo, sedenta, querençosa e desdenhada, abria-se a abrigar, em nova enchente, os que até então, ali se a haviam postado, à espera de um novo lamento de partida.

E lá ia, noutro recortar de águas, noutro embalar de sonhos, noutra aurora de encantos, noutro desgaste de trabalhos e canseiras. E o mar sempre ali, a seu lado, a bafejá-la com o seu sopro, a acariciá-la com a simulada agressividade das suas ondas e, sobretudo, a encorajá-la com a extravagante força de segurar e prender o seu destino, muitas vezes, cerceado pelas nuvens ou desfeito pelo vento.

Um dia, porém, os homens decidiram que o destino da “Senhora d’Alva” havia de se alterar. Agora atirada, dias e dias a fio, para terras distantes, para mares longínquos, esquecia o velho cais, só o demandando, quando a abarrotar de pescado, sob as ordens de uns marinheiros desconhecidos e estranhos, de calças de cotim arregaçadas pelo joelho, chapéus de palha a contrariar o vento, Urgia aliviar-se e, por isso mesmo, agarrava-se a um cais deserto e abandonado, sem homens, sem mulheres, sem velhos e, sobretudo, sem crianças. Era apenas um patamar seco e árido, sem vida, sem emoção e sem deslumbramento.

Não durou muito este martírio doloroso, apesar de decalcado de esperança inútil. A “Senhora d’Alva”, hoje, jaz em terra, distante do cais, do seu fadário quotidiano, separada daquele mar de ondas bravias mas azuladas, de espuma enfadonha mas adocicada que durante anos a fio lhe traçou as rotas e lhe norteou um destino gratificante, complacente, mavioso e sublime.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

A PEQUENA VENDEDORA DE FÓSFOROS

Quinta-feira, 15.11.18

(UM CONTO DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN)

 

Fazia um frio terrível; caía a neve e estava quase escuro; a noite descia: a última noite do ano. Em meio ao frio e à escuridão uma pobre menininha, de pés no chão e cabeça descoberta, caminhava pelas ruas.

Quando saiu de casa trazia chinelos; mas de nada adiantavam, eram chinelos tão grandes para seus pequenos pzinhos, eram os antigos chinelos de sua mãe.

A menininha os perdera quando escorregara na estrada, onde duas carruagens passaram terrivelmente depressa, sacolejando.

Um dos chinelos não mais foi encontrado, e um menino se apoderara do outro e fugira correndo.

Depois disso a menininha caminhou de pés nus – já vermelhos e roxos de frio.

Dentro de um velho avental carregava alguns fósforos, e um feixinho deles na mão.

Ninguém lhe comprara nenhum naquele dia, e ela não ganhara sequer um níquel.

Tremendo de frio e fome, lá ia quase de rastos a pobre menina, verdadeira imagem da miséria!

Os flocos de neve lhe cobriam os longos cabelos, que lhe caíam sobre o pescoço em lindos cachos; mas agora ela não pensava nisso.

Luzes brilhavam em todas as janelas, e enchia o ar um delicioso cheiro de ganso assado, pois era véspera de Ano-Novo.

Sim: nisso ela pensava!

Numa esquina formada por duas casas, uma das quais avançava mais que a outra, a menininha ficou sentada; levantara os pés, mas sentia um frio ainda maior.

Não ousava voltar para casa sem vender sequer um fósforo e, portanto sem levar um único tostão.

O pai naturalmente a espancaria e, além disso, em casa fazia frio, pois nada tinham como abrigo, exceto um telhado onde o vento assobiava através das frinchas maiores, tapadas com palha e trapos.

Suas mãozinhas estavam duras de frio.

Ah! bem que um fósforo lhe faria bem, se ela pudesse tirar só um do embrulho, riscá-lo na parede e aquecer as mãos à sua luz!

Tirou um: trec! O fósforo lançou faíscas, acendeu-se.

Era uma cálida chama luminosa; parecia uma vela pequenina quando ela o abrigou na mão em concha…

Que luz maravilhosa!

Com aquela chama acesa a menininha imaginava que estava sentada diante de um grande fogão polido, com lustrosa base de cobre, assim como a coifa.

Como o fogo ardia! Como era confortável!

Mas a pequenina chama se apagou, o fogão desapareceu, e ficaram-lhe na mão apenas os restos do fósforo queimado.

Riscou um segundo fósforo.

Ele ardeu, e quando a sua luz caiu em cheio na parede ela se tornou transparente como um véu de gaze, e a menininha pôde enxergar a sala do outro lado. Na mesa se estendia uma toalha branca como a neve e sobre ela havia um brilhante serviço de jantar. O ganso assado fumegava maravilhosamente, recheado de maçãs e ameixas pretas. Ainda mais maravilhoso era ver o ganso saltar da travessa e sair bamboleando em sua direção, com a faca e o garfo espetados no peito!

Então o fósforo se apagou, deixando à sua frente apenas a parede áspera, úmida e fria.

Acendeu outro fósforo, e se viu sentada debaixo de uma linda árvore de Natal. Era maior e mais enfeitada do que a árvore que tinha visto pela porta de vidro do rico negociante.

Milhares de velas ardiam nos verdes ramos, e cartões coloridos, iguais aos que se vêem nas papelarias, estavam voltados para ela. A menininha espichou a mão para os cartões, mas nisso o fósforo apagou-se. As luzes do Natal subiam mais altas. Ela as via como se fossem estrelas no céu: uma delas caiu, formando um longo rastilho de fogo.

“Alguém está morrendo”, pensou a menininha, pois sua vovozinha, a única pessoa que amara e que agora estava morta, lhe dissera que quando uma estrela cala, uma alma subia para Deus.

Ela riscou outro fósforo na parede; ele se acendeu e, à sua luz, a avozinha da menina apareceu clara e luminosa, muito linda e terna.

 - Vovó! – exclamou a criança.

 - Oh! leva-me contigo!

Sei que desaparecerás quando o fósforo se apagar!

Dissipar-te-ás, como as cálidas chamas do fogo, a comida fumegante e a grande e maravilhosa árvore de Natal!

E rapidamente acendeu todo o feixe de fósforos, pois queria reter diante da vista sua querida vovó. E os fósforos brilhavam com tanto fulgor que iluminavam mais que a luz do dia. Sua avó nunca lhe parecera grande e tão bela. Tornou a menininha nos braços, e ambas voaram em luminosidade e alegria acima da terra, subindo cada vez mais alto para onde não havia frio nem fome nem preocupações – subindo para Deus.

Mas na esquina das duas casas, encostada na parede, ficou sentada a pobre menininha de rosadas faces e boca sorridente, que a morte enregelara na derradeira noite do ano velho.

O sol do novo ano se levantou sobre um pequeno cadáver.

A criança lá ficou, paralisada, um feixe inteiro de fósforos queimados. – Queria aquecer-se – diziam os passantes.

Porém, ninguém imaginava como era belo o que estavam vendo, nem a glória para onde ela se fora com a avó e a felicidade que sentia no dia do Ano­ Novo.”

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publicado por picodavigia2 às 00:05

SINOPSE DE “O SÉCULO DOS PRODÍGIOS” DE ONÉSIMO ALMEIDA

Quarta-feira, 14.11.18

O Século dos Prodígios: a ciência no Portugal da Expansão.

Neste livro, Onésimo Teotónio Almeida presta especial atenção aos séculos XV e XVI, afastando-se de qualquer perspetiva nacionalista, na qual alguns historiadores portugueses incorrem, ora pecando por excesso, ao exagerarem as nossas pretensões em matéria de ciência, ora por defeito ao ignorarem o papel que de facto tivemos. Ao mesmo tempo, tenta corrigir a historiografia anglo-americana que não prestou a devida atenção ao ocorrido em Portugal nesse período. Com efeito, durante o final da Idade Média foram surgindo em Portugal sinais de um inovador interesse pela natureza e pelo conhecimento empírico dela, assim liderando um dos grandes momentos de viragem na História da Ciência. Este livro é uma revisitação dos anos de ouro da história portuguesa: O Século dos Prodígios é a revelação de como no nosso país, durante o chamado período da Expansão, surgiu e cresceu um núcleo duro de pensamento e trabalho científico verdadeiramente pioneiro, sem o qual as viagens desses séculos teriam sido impossíveis.

In Internet

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publicado por picodavigia2 às 00:50

DEA IGNOTA

Terça-feira, 13.11.18

Menina de tranças, de bonecas e de sonhos!

Sonhava, como sonham todas as crianças,

Com aquilo que havia de ser um dia.

Cedo os seus sonhos se realizaram,

Transformando-se, num equilíbrio de apetências,

Em realizações de desejos e vontades.

 

Senhora, de sonhos domados,

Peregrina de estigmas, acompanhante de angústias e sofrimentos.

De noite, de dia, em turnos, ou no silêncio das madrugadas,

Na abnegação duma entrega persistente,

Transformavas o trabalho em amor, reconstruías destinos desfeitos.

 

Em pose de donzela serena,

Irradiavas alegria, bem-estar, felicidade.

E na cumplicidade de um envolvimento compassivo,

Cativavas, com o doce perfume das tuas palavras,

Atraías, com a suave doçura das tuas atitudes

 

Aureolada de um eterno bem-querer,

Não esbanjavas a ternura dos teus abraços,

Nem aprisionavas a suavidade dos teus sorrisos.

Porque eram as dádivas sublimes e perenes

Com que envolvias e acariciavas quantos te rodeavam.

 

Nem o desconforto dos dias mais enevoados,

Nem o negrume das noites mais turbulentas

Ou sequer as horas de serviço mais urgente,

Te traziam mágoa, dor, sofrimento,

Ou destruíam uma nesga da tua indomável persistência.

 

Circulavas, caminhavas, rodopiavas

Por corredores, salas e enfermarias.

Ortopedia, Otorrino, Anestesia - um desfilar de melodias!

Ornavas-te de delicadeza, revestias-te de bondade,

Impunhas-te por uma nobre e singela competência.

 

Baluarte de bondade e paciência.

Anestesia – Circulante – Instrumentista.

Cativavas os adultos e gravavas no coração de cada criança,

Com o encantamento do teu cativante olhar,

A sublime leveza das madrugadas sem dor.

 

Nunca esqueceremos os afetos com que nos fortalecias!

E se, algum dia, vacilarmos frente à adversidade,

Se desesperarmos perante os amargos da vida

Ou se cambalearmos perante o desencanto, o insucesso, o infortúnio,

O testemunho da tua amizade e a força da tua dedicação,

Serão o baluarte das nossas vitórias, o remanso da nossa persistência.

 

Nova caminhada te espera!

Continua a desenhar o teu sorriso no coração dos que te rodeiam

A oferecer o teu carinho aos mais carenciados.

A partilhar a tua coragem com os que não sabem lutar.

Estaremos contigo, no abraço que riscamos sobre as nossas existências

E que o espaço e o tempo nunca apagarão.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

PRÉMIO PARA ONÉSIMO ALMEIDA

Segunda-feira, 12.11.18

O Século dos Prodígios vence Prémio História da Presença de Portugal no Mundo

Um ensaio de Onésimo Teotónio Almeida, que se debruça sobre o carácter pioneiro da ciência portuguesa no período dos Descobrimentos, recebe prémio da Fundação Calouste Gulbenkian

O Século dos Prodígios, ensaio de Onésimo Teotónio Almeida, que se debruça sobre o carácter pioneiro da ciência portuguesa no período dos Descobrimentos, venceu o Prémio História da Presença de Portugal no Mundo, foi esta quinta-feira anunciado.

"O livro O Século dos Prodígios - A Ciência no Portugal da Expansão, de Onésimo Teotónio Almeida, foi anunciado, pela presidente da Academia Portuguesa de História (APH), Manuela Mendonça, como vencedor do Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo", revelou a Quetzal, chancela que editou o livro.

O livro será lançado nesta sexta-feira e a cerimónia de entrega do prémio ocorrerá a 5 de Dezembro, nas instalações da APH, em Lisboa.

Trata-se de um prémio instituído pela APH e patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que visa galardoar obras históricas de reconhecido mérito.

LUSA 9 de Novembro de 2018, 15:26/ Jornal Público

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publicado por picodavigia2 às 10:06

O “TRANCÃO”

Sábado, 10.11.18

Integrar o elenco das companhas dos botes da baleia na Fajã Grande não era tarefa fácil, nem qualquer um conseguia tal desiderato. Era necessário possuir a arte, a perícia e o engenho de andar no mar, era imperioso ter força e desimpedimento para remar, exigia-se cédula ou carta de marítimo que não era passada a qualquer um – só depois de prestadas as devidas provas - e, além disso, os candidatos eram muitos e as vagas poucas, uma vez que os lugares de marinheiro dos dois únicos botes e da lancha ancorados na Fajã estavam, sistematicamente, preenchidos, época após época. Mas integrar o elenco baleeiro fajãgrandense com a arrojada, dificultosa e destemida função de trancador, era ainda muito mais difícil, para não dizer quase impossível. Para a maioria dos candidatos que a ela aspiravam, não passava de um sonho efémero ou de um desejo esvanecido. É que o Francisco Inácio e o Urbano estavam ali para durar! Não havia concorrente que os destituísse.

O trancador de baleias, que em pé, à proa do bote, à espera de atirar certo e seguro o arpão ao primeiro cetáceo que lhe aparecesse pela frente, tinha que ser forte, destemido, ágil e dotado de excelente pontaria. Acertar à primeira na baleia e acompanhá-la na corrida desenfreada, louca e acelerada que a dita cuja encetava, logo após ser arpoada, era tarefa arrojadíssima, extremamente arriscada e muito perigosa. Apesar de tudo, muitos rapazes sonhavam com ela, pretendendo assim imitar e seguir as pisadas dos dois melhores trancadores de sempre da Fajã Grande: o Francisco Inácio e o Urbano Fagundes.

Alto, esguio mas bastante desajeitado José, como muitos outros da sua idade, sonhou com a pesca à baleia. E sonhou não apenas ser baleeiro. Sonhou mais, muito mais. Sonhou ser trancador. Era safar-se de andar dia e noite agarrado à enxada e ao sacho, libertar-se de percorrer caminhos e veredas atrás das vacas, acarretar molhos e cestos às costas, tirar esterco e despejar a poça, numa palavra era abandonar o árduo e quotidiano trabalho agrícola, quase de escravo, para se dedicar a uma profissão digna, nobre e grandiosa – trancador de baleias.

Consciente das suas limitações, mas convicto das suas possibilidades, José entendeu que era preciso treinar. “Treinar muito” – ouvira ele vezes sem conta. Pois então! Se treinasse, se treinasse muito… seria contratado. Talvez o Francisco Inácio com uma boa junta de bois a dar dias para fora, mais hoje, mais amanhã, abandonasse aquela nobre e arriscadíssima tarefa. Seria ele, José, a suceder-lhe… “É preciso treinar, treinar muito” - pensou com os seus botões. Se bem o pensou melhor o fez. E a primeira oportunidade proporcionou-se. Foi ali perto, mesmo à beira do caminho, quando as abóboras do cerrado das Furnas amadureceram e enquanto aguardavam que as trouxessem para casa, para alimentar os porcos e para o gado… que José decidiu começar os treinos. Muniu-se de um bom pau com um ferro amarrado na ponta a simular o arpão… e vai disto! Começa a desancar, a atirar, a arpoar, a torto e a direito, nas abóboras, acertando numas e falhando noutras, mas desfazendo-as quase por completo!

Nada ganhou com isso pois nunca deu em trancador.

Porém, como na Fajã Grande todos “se pelavam” por arranjar novos apelidos a uns e outros, o José não arpoou em vão nas abóboras e ganhou um apelido, ficando, a partir de então, conhecido por toda a gente e em toda a parte por  “José Trancão” ou simplesmente “O Trancão”.

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publicado por picodavigia2 às 00:02

MEU BISAVÔ E A MINA DE OURO DE SOIBAR NO CONDADO DE SISKIYOU, NO NORTE DA CALIFÓRNIA

Quinta-feira, 08.11.18

José de seu nome nasceu no longínquo ano de 1855, na Fajã Grande das Flores. Embora tivesse dois dos apelidos mais frequentes na freguesia - Fagundes e Silveira – herdados dos primeiros povoadores da ilha das Flores, foi sempre conhecido por José Bartolomeu, epíteto herdado de seu pai, ou seja de meu trisavô, Bartolomeu Lourenço Fagundes nascido em 1825, e que o povo, com a sua hábil capacidade linguística de facilitar a pronúncia das palavras, traduziu simplesmente por “Batelameiro”. Ainda criança, José começou a ceifar erva e acarretar molhos de lenha, a cavar a terra e a trepar a rocha, a lavrar os campos e a tirar o estrume do palheiro, a saltar paredes e maroiços no tratamento do gado e no amanho das terras. Trabalhava de sol a sol, à chuva, ao vento, durante as tempestades e nevoeiros, com o frio do norte a tolher-lhe os ossos, as brisas matinais a perfurarem-lhe o rosto, o cabo da enxada a desfazer-lhe as mãos e as pedras pontiagudas das canadas e caminhos a esmurrarem-lhe os pés descalços. Cedo porém se tornou objector de consciência às limitadas condições de vida que a freguesia e a ilha lhe proporcionavam e embarcou, às escondidas, fugindo aos tiros da guarda costeira, na Rocha dos Fanais, a bordo duma escuma indo parar à Costa Leste dos Estados Unidos. Mas não era ali o seu destino. O “El dorado” ficava longe, muito longe, do outro lado do Mundo, quase tão distante dali como distante estava ele da ilha onde nascera. E aventurou-se novamente. Atravessou a América de lés-a-lés, de comboio, descansou alguns dias no Colorado e foi parar à Serra Nevada. Aí pastoreou ovelhas, guardou ranchos, ganhou dólares, guardou-as quase todas que os gastos eram poucos e comprou terras. Passados alguns anos vendeu o que tinha comprado, juntou as águias até então guardadas e voltou à terra natal. Apaixonou-se e casou em 1880 com Maria da Conceição, a minha bisavó. Desse casamento resultaram cinco filhos: Maria 1883, José, o meu avô materno, 1886 e Ana em 1887. Novamente intrigado e descontente com a vida precária da ilha e sonhando com algo de melhor para os filhos, resolve regressar à Califórnia, desta feita, levando a mulher grávida de algumas semanas e os filhos ainda pequeninos. Mas a Serra Nevada não era destino aconselhável a quem emigrava com a família, sobretudo com uma mulher prenhe e com crianças de tenra idade. Por isso José tomou novo rumo e foi parar ao Norte da Califórnia, mais concretamente ao novo e promissor condado de Siskiyou que, apesar de ser um dos maiores em superfície era, nessa altura, um dos condados do estado da Califórnia mais pequeno em população. Fundado em 1858, o condado de Siskiyou já na altura fazia jus de grande prosperidade. Tinha fronteira a norte com o estado do Oregan, a leste com o Condado de Del Norte, a Sul com o Trinity e o Shasta e a Oeste com o Modos. Aí nascem mais dois filhos: Francisco, em 1892 e Maria do Céu 1895. José volta a comprar terras e gado. Floresce o negócio, granjeia prestígio e em 20 de Julho de 1892 torna-se cidadão Americano por decisão da “Superior Court” da cidade de Yreka, capital do Condado de Siskiyou. A doença da esposa, porém, obriga José a regressar aos Açores e às Flores, voltando a vender as terras a quem, para desgraça sua, nunca lhas pagou. Minha bisavó faleceu pouco depois do seu regresso à Fajã Grande e, no ano seguinte, José refaz a sua vida, voltando a casar-se, desta feita com Maria Rosa. Não demorou muito este casamento, falecendo a 2ª consorte do meu bisavô em 1904, juntamente com uma criança recém-nascida. Triste e desconsolado José volta a Siskiyou onde havia deixado casa, alguns bens e uma outra terra que não vendera. Aguardava-o ainda o sonho de recuperar o dinheiro perdido na venda das primeiras terras e que nunca lhe tinha sido pago. Esse sonho não se realizou porque como não possuía provas de venda, o verdadeiro devedor negou que tal facto jamais tivesse acontecido. Era a palavra de um contra a do outro e José ficou sem dinheiro e sem as terras. Apesar de tudo e porque era forte, resignado, de fibra rija e sem medo do trabalho, refez a sua vida e com o seu labutar digno e honrado pode recuperar, em parte, o que havia perdido com a vigarice e a desonestidade de outros. Voltou a comprar terras. Os filhos mais velhos, no entanto partiram para outras zonas da Califórnia. José voltou a ficar só, triste e desconsolado, decidindo voltar definitivamente para as Flores e para Fajã Grande, onde viveu sozinho durante alguns anos, dedicando-se novamente ao trabalho agrícola, até que em 1907, com 52 anos de idade casou, pela 3º vez, com Mariana Luísa da qual ainda teve mais três filhas, falecendo no ano de 1923.

Mas a “estória” de José não fica por aqui. Antes de partir para os Açores, sabendo que já não regressaria mais a Siskiyou, vendeu tudo o que ali possuía e também o que nem cuidava possuír. É que, como mais tarde se veio a saber, entre as terras vendidas pelo meu bisavô, havia uma, próximo de Soibar, no condado de Siskiyou, que tinha nada mais, nada menos, do que uma mina de ouro, que mais tarde, muito contribuiu, para o desenvolvimento daquele pequeno condado do Norte da Califórnia.

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publicado por picodavigia2 às 00:03

VIAJANDO NO CARVALHO ARAÚJO

Quarta-feira, 07.11.18

Era geralmente ao anoitecer que o Carvalho levantava ferro da baía das Lajes com destino ao Faial, onde chegava na manhã do dia seguinte. Uma noite inteirinha a marulhar o casco enegrecido contra as ondas, na escuridão e no silêncio do oceano, entrecortado apenas pelo tépido roncar das suas velhas mas portentosas máquinas. Os passageiros, ao lusco-fusco, logo que embarcavam debruçavam-se em chusma, à amarra do convés e entretinham-se a ver as manobras que os guindastes e roldanas da proa executavam a fim de levantarem do fundo do mar a pesada âncora que o prendera em frente às Lajes, durante várias horas. Alguns marinheiros levantavam a escada e fechavam o portaló, trancando-o com duas grossas cavilhas de ferro. O navio, sentindo-se liberto da pesada poita, guinava à retaguarda, apitava por três vezes, orientava-se rumo à saída da baia e zarpava em marcha lenta, em direcção ao Faial, deixando atrás de si, juntamente com o roncar estridente dos motores, uma enorme esteira de espuma esbranquiçada.

Alguns passageiros, sobretudo os que viajavam sem beliche, passavam a noite em vai e vens apreensivos e temerários entre a primeira e a segunda classe, ora subindo escadas ou penetrando em corredores ora entrando nas salas que ainda permaneciam abertas, procurando lugar apetecível para pernoitar. Outros mas afoitos e destemidos subiam ao convés da primeira na luta por descortinarem uma espreguiçadeira desocupada. Os que o não conseguiam voltavam à amarra para ver mais uma vez a ilha, agora já muito longe e de tal maneira confundida com o negrume da noite que quase não se via, apesar de estar perfeitamente assinalada pelos dois enormes e potentes faróis: a Sul o das Lajes e a Norte o do Albarnaz.

O Carvalho navegava durante toda a noite ronceiro e vagaroso mas sem parar balançando-se sobre as ondas, umas vezes altivas e temerosas outras calmas e tranquilas, enquanto ao longe muito tenuemente brilhavam, até desaparecerem por completo, os dois faróis das Flores. Dizia-se que havia um sítio a meio do canal entre as Flores e o Faial donde, em noites muito limpas e bem escuras, se viam ao mesmo tempo os faróis de ambas as ilhas.

Com o despontar da madrugada começavam a vagar cadeiras no convés da primeira. Era ali e pelos corredores ou até sobre o convés, ao lado do porão que se acomodavam os passageiros sem beliche, alheando-se, assim, dos solavancos rítmicos, acompanhados pelo som roufenho das máquinas do velho paquete. Os faróis das Flores desapareciam por completo, com o aproximar-se do Faial. Alta madrugada a maioria dos passageiros quer os sem beliche, quer muitos outros, aguardavam expectantes a aproximação da ilha, na esperança de conseguir vislumbrar, de longe, o vulcão dos Capelinhos.

Quem por ali passou a bordo do Carvalho, entre Setembro de 1957 e Outubro de 1958 afirmava que se via perfeitamente uma enorme e altiva coluna de fogo, a sair do mar. Tudo começara em Setembro 1957. Entre os dias dezasseis e vinte sete de Setembro registara-se uma grave crise sísmica no Faial e no Pico e que culminara com o rebentar de um vulcão, no final do mês, na parte norte da ilha do Faial. Uma enorme coluna de fogo emergira do seio da terra, espalhando uma chuva de cinzas sobre grande parte da ilha. Os abalos sísmicos foram prosseguindo e a coluna de fogo manteve-se bem viva e ameaçadora durante longos meses, pese embora, com o passar do tempo fosse perdendo a pujança e a força iniciais. Mas no início da crise, a lava emersa da terra era tanta e tão forte que até nas Flores, imune a todo o tipo de actividades sísmicas, ter-se-ia visto, por vezes, o céu mais enevoado e mais escuro devido às cinzas e aos fumos libertados pelo vulcão.

Quem viajava, nessa altura, no Carvalho tinha a oportunidade única de observar, aquele fenómeno telúrico, vislumbrando, lá ao longe, uma pequena e trémula coluna de fogo que saía da terra em espiral e se ia enrolando pelo céu acima até se perder no horizonte e na escuridão.

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publicado por picodavigia2 às 00:00

PEDRO DA SILVEIRA

Terça-feira, 06.11.18

Pedro da Silveira, “o Pedro das Senhoras Mendonças” como era conhecido pelos seus vizinhos, nasceu na Fajã Grande, na rua da Assomada,(1) a 5 de Setembro de 1922. Embora fosse meu vizinho, muito amigo dos meus pais e meus irmãos mais velhos, com quem conversava frequentemente e visitasse a Fajã quando eu era criança, apenas tive o privilégio de conversar com ele num encontro de habitantes das ilhas das Flores e Corvo, realizado em Castelo Branco, há alguns anos. Nessa altura tive a honra de lhe entregar um texto meu “Noite de Natal” que ele teve a delicadeza de ler e do qual mais tarde me enviou o seu comentário. Lamentavelmente não mais pude contactar com ele. Faleceu em Lisboa, no dia 13 de Abril de 2003.

Pedro da Silveira, talvez o mais ilustre fajãgrandense de sempre, foi poeta, crítico literário e investigador quer a nível da escrita quer a nível da tradição oral. Fez parte do conselho de redacção da revista “Seara Nova” e é autor de várias obras de poesia e de recensão literária e de duas antologias de poetas açorianos.

Depois de ter completado o ensino primário na Fajã Grande, tendo já demonstrado grande inteligência e interesse pelas letras, partiu para Angra, frequentando primeiro o Seminário e mais tarde o Liceu, o que lhe permitiu completar a sua formação básica e contactar com os mais lídimos representantes da literatura lusófona do tempo e onde, de acordo com as suas palavras «Havia, pelo menos em certos meios, um culto muito fiel por Jaime Brasil e por Aurélio Quintanilha, ambos terceirenses e ambos anarco-sindicalistas. Para aí me inclinei e ainda agora, se alguma ideologia política é capaz de me dizer alguma coisa, essa é o socialismo acrata(2) ou anarquismo.”(1987)

Alguns anos depois radicou-se em Ponta Delgada, cidade onde integrou o grupo intelectual que se formou em torno do jornal “A Ilha”, periódico no qual colaborou assiduamente.

Finalmente fixou-se em Lisboa, onde viveu o resto da sua vida, embora visitando a Fajã com alguma frequência, granjeando, de acordo com o testemunho de muitos dos seus vizinhos e conterrâneos, a simpatia de todos, com os quais partilhava ideias, princípios e conhecimentos. Foi delegado de propaganda médica, promovendo produtos farmacêuticos, iniciando simultaneamente um percurso de estudo e investigação histórico-literária. Mais tarde passou a trabalhar na Biblioteca Nacional, da qual foi director dos Serviços de Investigação e de Actividades Culturais, chegando a integrar a Comissão de Gestão da mesma.

 Foi um dos promotores da elaboração da Enciclopédia Açoriana e participou ainda em múltiplos estudos relacionados com a cultura açoriana e em especial com a história e a etnografia da ilha das Flores, com destaque muito especial para a Fajã Grande, onde recolheu variadíssimos textos da tradição literária oral, divulgados mais tarde na revista “Lusitana”. Iniciou a sua obra poética com A Ilha e o Mundo (1953) e prosseguiu com Sinais de Oeste (1962), Corografias (1985) e Poemas Ausentes (1999). Publicou um primeiro volume “Fui ao Mar Buscar Laranjas”, um conjunto de vinte poemas inéditos, escritos entre 1942 e 1946.

Pedro da Silveira revelou sempre um alto sentido de cidadania e uma formação ideológica e política muito firme, convicta e segura, iniciada na sua adolescência nas Flores, onde conheceu alguns exilados políticos, que “lhe revelaram quem era Salazar e ao que vinha”. Com eles, primeiro, e depois com o grupo anarquista em Angra, consolidou os princípios políticos e ideológicos essenciais que o acompanhariam por toda a vida e que fizeram com que os seus direitos políticos fossem apreendidos por  Salazar que chegou a retirar-lhe o direito de voto e também que fosse permanentemente perseguido e preso pela PIDE.

Notas – (1) Em recente visita à Fajã Grande, pude verificar que a casa onde ele nasceu foi vendida. Creio que poder-se-ia muito bem ter sido transformada em “Casa museu Pedro da Silveira”. Pior. A casa onde o pai nasceu, situada à Praça e que, na década de cinquenta, era um palheiro de gado e arrumos, foi totalmente destruída. Era esta a casa que ele descreve num dos seus mais belos poemas.

(2) Chama-se “acrata” a um partidário ou defensor da acracia. A acracia é uma forma de anarquismo, ou seja, uma ideologia politico-filosófica que não aceita a legitimidade de nenhuma imposição. Sendo assim, para que uma acção humana tenha valor moral deve emanar da decisão livre de quem a empreende e, por isso, todas as actividades humanas devem ser resultantes de compromissos voluntários, tomados por livre arbítrio. Na prática, os acratas defendem que as pessoas não nasceram para obedecer mas sim para decidir por si próprias.

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publicado por picodavigia2 às 00:05

MANGÃO

Domingo, 04.11.18

Se consultarmos o site oficial da Câmara Municipal das Lajes das Flores e procurarmos em “freguesias” Fajã Grande, poderemos ver, entre outras informações, umas dez linhas dedicadas à gastronomia, nas quais, para além das filhós, do pão doce ou massa sovada e dos doces tradicionais (arroz doce e bolos caseiros) se referem os seguintes pratos típicos, também considerados “iguarias da freguesia da Fajã Grande”: Enchidos, Carne de Porco Salgada, Mariscos, Lapas, Peixe, Pão de Milho, Bolo de Milho, Batata-doce e Inhame.

Na realidade todos estes comeres não se podem considerar propriamente iguarias, ou seja comidas preparadas ou cozinhadas, mas sim produtos ou géneros alimentares com que se confeccionavam e muito provavelmente ainda se confeccionam os tais pratos típicos que o site não refere, embora, na realidade, excepcionando o marisco que não era usual nos cardápios de antanho, todos os outros alimentos indicados faziam parte da alimentação quotidiana fajãgrandense. Obviamente que numa terra pobre e tendo em conta as limitadas condições de vida da época e a falta de produtos, de meios e, até de tempo, não se pode falar de uma cozinha rica, variada e abundante. Apesar disso, confeccionavam-se alguns destes alimentos de forma própria, única, típica e talvez mesmo, nalguns casos, exclusiva da Fajã Grande. É a esses cozinhados ou aos pratos deles resultantes que se pode, em abono da verdade, chamar pratos típicos, como era o caso da caçoila e das sopas fritas ou até da linguiça já referenciados neste blogue.

Havia no entanto alguns outros pratos, um dos quais o célebre Mangão, em que o elemento base era a batata branca e geralmente preparado quando não havia conduto para acompanhar as próprias batatas, o que acontecia com muita frequência. Aliás e pela sua estrutura e ingredientes percebe-se que este é um prato que terá nascido simplesmente do facto de não se ter nada para comer, a não ser as batatas. Assim, duma limitação ou duma ausência cria-se um prato típico, o que não é inédito na culinária portuguesa, bastando para tal recordar a razão que levou os habitantes do Porto a inventar e confeccionar as tripas à moda do Porto: simplesmente porque durante as invasões francesas, os franceses comiam a carne, deixando-lhes apenas as tripas. Houve que inventar e que criar. O mesmo terá acontecido com o nosso Mangão, com a diferença de que não foram nem os franceses nem outro povo qualquer a comer-nos o conduto. Este simplesmente não existia.

Para confeccionar o Mangão, para além das batatas brancas cozidas, era necessária banha de porco, preferencialmente daquela que cobrira a linguiça, cebola e alho picados. Uma vez derretidas duas ou três colheres de banha, num caldeirão de ferro, alouravam-se a cebola e o alho. As batatas, previamente cozidas, eram bem esmagadas com um garfo até ficarem desfeitas e, quando o refogado estava pronto, adicionavam-se ao mesmo. Depois era tudo muito bem mexido para que as batatas e a cebola ficassem bem envolvidas e misturadas. O Mangão estava pronto e era servido directamente do caldeirão de ferro para os pratos, a fim de se comer bem quentinho.

Ainda não há muito tempo, através de um telefonema duma amiga dos meus tempos de infância, fui informado que na casa dos seus pais e possivelmente nalgumas outras, se comia o Mangão polvilhado com açúcar. Penso que este costume, por mim desconhecido, terá a sua origem numa “estória” que se contava, nos meus tempos de infância, de um navio carregado de açúcar que em tempos idos, naufragou na Fajã Grande. Tanto foi o açúcar que se espalhou pelo baixio que o povo encheu sacos e sacos e trouxe-o para as suas casas, utilizando-o como tempero em substituição do sal.

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O CULTO DAS ALMAS

Sábado, 03.11.18

O culto das almas, na Fajã Grande, era de tal modo intenso que durante o ano eram feitas, na freguesia, duas “derramas” ou seja recolhas ordinárias de ofertas a favor das Almas do Purgatório: em Janeiro, a das línguas do porco e em Novembro, a do milho. No que concerne à oferta das línguas dos porcos, fenómeno estranho e de esconsa clarificação, cada agregado familiar, se assim o entendesse, salgava a língua do seu porco e, algum tempo depois da matança, levava-a para a missa dominical, finda a qual, era arrematada, no adro da igreja, sendo o dinheiro resultante de cada leilão entregue ao mordomo das almas, que o guardava. A recolha do milho, por sua vez, era feita no dia de Todos os Santos. Grupos de homens munidos de cestos ou sacos de serapilheira percorriam as ruas da freguesia e, batendo à porta cada casa, gritavam: “Milho pr’ás almas”. O objetivo era recolher as ofertas de milho, cujo dinheiro resultante da venda, também era destinado às benditas almas. Esta atividade era devidamente planificada e programada pelo mordomo das almas, que, dias antes, requisitava os homens necessários para fazer o peditório. Convidava também uma grande quantidade de mulheres para, durante e após o peditório, recolher o milho, debulhá-lo e enchê-lo em sacos. O milho, posteriormente, era vendido e esse dinheiro, juntamente com o do leilão das línguas e o de outras ofertas, era entregue, ao pároco. Destinava-se a celebrar missas e rezar os responsos, todos os dias, durante o mês de Novembro, por alma dos defuntos de todas as famílias da freguesia. Além disso, ainda eram feitas, ao longo do ano, mas com maior incidência no mês de novembro e por iniciativas individuais, geralmente resultantes de promessas, outros peditórios e recolhas extraordinárias de produtos agrícolas que também eram vendidos ou leiloados, com o mesmo objetivo.

Assim e tendo em conta o dinheiro obtido através de todas estas derramas e ofertas, o pároco calculava o número de missas a celebrar. Depois dividia o número de casas da paróquia por esse número e estabelecia uma espécie de calendário, sendo que, em cada dia do mês de novembro a missa era celebrada por alma dos defuntos de um conjunto de famílias. Este conjunto era determinado, grosso modo, pelo quociente do número de casas a dividir pelo número de missas. Nenhuma casa era excluída, mesmo que tivesse contribuído com pouco ou nem sequer tivesse colaborado na oferta de géneros ou na recolha de donativos.

Na tarde do dia de Todos os Santos procedia-se à ornamentação e limpeza do cemitério, enfeitando cada família as sepulturas dos seus antepassados. No dia dois, de manhã cedo era celebrada a primeira missa, “Missa in die obito” com paramentos pretos, sendo inicialmente montada a essa no centro do cruzeiro, com seis castiçais ao redor e um tapete negro a cobri-la, como se de um funeral se tratasse. Finda a missa, o pároco trocava a casula preta pela capa de asperges da mesma cor e rezava os responsos dos defuntos. Seguia-se a procissão ao cemitério, durante a qual os sinos “dobravam a finados” e onde, novamente, eram rezados responsos e benzidas as sepulturas. De regresso à igreja eram celebradas mais duas missas, de acordo com as normas litúrgicas então vigentes. As Trindades da noite do dia um e da manhã e noite do dia dois eram acompanhadas do “dobrar a finados”.

Quando nós crianças, ainda indiferentes a tais celebrações, perguntávamos de quem era o enterro ou quem tinha morrido naquele dia, diziam-nos, os adultos, que era o enterro do “Velho Laranjinho”, figura mítica que, muito provavelmente, representava todos os finados da freguesia. Também era costume, no dia 2 de Novembro, cozer pão e assar abóboras no forno, em louvor das almas do purgatório, mas o forno deveria ser apagado sempre antes do toque das Trindades, caso contrário, dizia-se, as almas dos nossos antepassados continuariam a ser queimadas pelo “santo fogo” do Purgatório.

Creio que estas práticas e crenças eram comuns a todo a ilha das Flores, existindo, inclusivamente, uma paróquia – a Caveira – cujo orago era “As Benditas Almas”. Estranhamente o bispo diocesano da altura, provavelmente considerando que “As Almas” não eram santas, entendeu que não deviam ser as padroeiras da freguesia. Foram substituídas pela Senhora do Livramento.

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O MÊS DE NOVEMBRO E AS NOVENAS DAS ALMAS

Sexta-feira, 02.11.18

A devoção e o culto das almas ocupavam literalmente um lugar de relevo no top da religiosidade e das celebrações litúrgicas, na Fajã Grande. Havia entre toda a população uma muito acentuada espécie de “cultura do além”, repleta, por um lado, de mitos, lendas, tradições, extravagâncias, ingenuidades e medos, mas, por outro, eivada de convicções embora limitadas, certezas geralmente inconsequentes, esperanças inexplicavelmente obscuras e de quotidianas e convictas realizações. Daí que o mês de Novembro se tornasse um mês especial, uma espécie de mês mítico, do além, por ser o mês das almas. Todos os dias, com excepção dos dias um e dois e dos domingos, realizava-se, na igreja paroquial, a “novena das almas”. Tratava-se logicamente de uma expressão popular pouco correcta, uma vez que as celebrações não se limitavam aos tradicionais nove dias próprios das novenas, mas prolongavam-se por todo o mês. Por isso, o mês de Novembro também era chamado mês das almas.

Já noite escura a igreja enchia-se de gente como se de domingo se tratasse e era celebrada missa, geralmente missa dos defuntos, excepto nos dias em que tal não era permitido liturgicamente, por se tratar duma festividade de 1ª classe. A igreja permanecia propositadamente escurecida, sendo apenas iluminada pelas velas do altar-mor e por outras seis encravadas em outros tantos gigantescos castiçais colocados ao redor de um enorme tapete preto debruado a amarelo, estendido bem no centro do cruzeiro, logo a seguir à capela-mor. A escuridão do templo, por um lado, convidava e proporcionava aos crentes um ambiente mais propício à oração e à reflexão sobre o mistério da sua própria morte e, por outro encenava uma espécie de enquadramento daquilo porque todos, sem distinção, já tinham passado – a lembrança da morte de algum familiar.

De seguida o pároco envergando a capa de asperges preta e barrete de três quinas, colocava-se estrategicamente à cabeceira do tapete e, voltado para o povo, rezava um responso por cada um dos agregados familiares da Fajã, agrupados ao longo dos vários dias, desde o cimo da Assomada e até ao fim Via d’Água. Como as famílias obviamente eram muitas mais do que os dias do mês, o pároco agrupava em cada dia o número razoável e adequado de agregados familiares, sendo que, no entanto, rezava separadamente os responsos, ou seja um pelos defuntos de cada família. Entre a reza de cada responso o pároco pegando no hissope encharcava-o na caldeirinha da água benta que o sacristão lhe apresentava, dava uma volta ao tapete e aspergia-o em cruzes sucessivas dos quatro lados, enquanto os sinos dobravam a finados.

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ÚLTIMO OESTE

Quinta-feira, 01.11.18

 

(UM POEMA DE PEDRO DA SILVEIRA)

 

A terra acaba aqui.

Além é só o mar – e vento.

A terra acaba aqui…

Com ela tudo o que eu intento.

 

Às vezes imagino-me embalando:

Um porto, onde começa o meu destino.

Mas isso é só um desatino.

Até quando?

 

……………………

 

Lenha verde no lume,

Em sonho cada sonho se resume.

 

Pedro da Silveira, In “Primeira Voz”, Julho de 1942

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