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O ESPIRRO

Quarta-feira, 30.01.19

(CONTO POPULAR DA FAJÃ GRANDE)

 

O conto que a seguir transcrevo era um daqueles que ouvi tantas e tantas vezes em criança e do qual me havia, parcialmente, esquecido. Em boa hora o recolheu, entre 1941 e 1951, Pedro da Silveira, o mais ilustre fajãgrandense de sempre, poeta, crítico literário e investigador quer a nível da escrita quer a nível da tradição oral, o recolheu e divulgou esta preciosidade, publicando-o na Nova Série da Revista Lusitana, nº 7, 1968, permitindo-me assim avivá-lo na memória de quantos, como eu, o ouviram e dá-lo a conhecer.

Pedro da Silveira recolheu-se, na sua originalidade pura e simples, com modos, palavras e ditos utilizados, nas Flores. Transcrevo-o, aqui, tal qual como aquele etnógrafo o reproduziu, na sua forma original, com palavras e expressões então utilizadas na linguagem diária fajãgrandense e a que eu, tomei a liberdade, de acrescentar um pequeno e esclarecedor glossário.

 

“Era ua vez além dos más um casal, ele chomado Nicolau, ela já nã se sabe, só que era de mum mau génio, sempre a atazanar o pobrezito, que aquilo nunca se viu mulher de tã má pinga, nã havia nada que fazer com ela, sempre com tirapuxas, sempre a peleijar, na vizinhança nã na podiam ver nin pintada, era temivle, da pel’ do eiramá. Como o Nicolau a aturava todos se admiravam e por isso ainda más diziam bem dele, um home bem criade com toda a gente, e curzidozo como aí há poucos.

Pois vai um dia, mal o home chegou a casa, horas da ceia deveram de ser, por um coisa de nada os estraloiços e arrebate daquela bisca malina! A pontos que se desintinderam de todo, nem se sabe que ele teve que a malhar, só que a fim dua peleija que parecia vir tud’abaixo, assentaram devedir quanto tinham dentro in casa, cada um p´ra seu lado e sim más se falarem. E como só havia ua barra, o modo de também a devedirem foi por um tabuão pelo meio da cama debaixo arriba, quer-se dezer da tarje aos pés, e cada um a dormir de sua banda. E este amanho durou somanas e somanas, ua grandeza de tempo. O demonho da mulher bem se metia, ora braba ora más à mansa, dia in dia más mansa que brada, mas o Nicolau boca calada, nin ua nin duas, nã le dava troco.

E deu-se antão o caso que andando ele lá nos seus amanhos das terras apanhou ua molhadura e daí veio ua defluxama e uma tosse que o pobre levava o dia naquilo, o dia e a noite, a tossir e a ‘spirrar. Até que uma dessas noites, deitados cada um deles de sua banda da cama, o home deu um tal espirro que a mulher, agora já com pena dele, nã s’aguentou más e disse:

- Deus t’ajude, Nicolau.

Ele ainda quis fazer que nã tinha oivido, que aquilo nã era consigo, mas ao despous intindeu que já era bastante p’ra castigo dela, e Antão respondeu-le:

- Ó mulher, se é do coração tira-se já o tabuão.

E tiraram-no e quanto se sabe e deve ser vardade daí in diente nunca mais hoive inticas nin guerras entre os dous.”

 

Glossário: - Era uma vez além dos más – expressão usada no início dos contos.

                  - Nã – não.

                  - Mum – muito.

                  - Tã – tão.

                  - Temivle – temível.

- De tã má pinga – de tão mau carácter ou mau feitio.

- Tirapuxas – discussões.

- Da pel’ do eiramá – parecida com o diabo.

- Bem criade – educado.

- Curzidozo – perfeito no trabalho.

- Estraloiços – extravagâncias.

- Bisca malina – pessoa de mau feitio.

- A pontos que – a dada altura.

.- Dua – duma.

- Barra  - cama.

- Tarje – cabeceira da cama.

- Uma grandeza de – muitíssimo.

- Demonho – demónio.

- Defluxama – grande constipação.

- Inticas – intrigas.

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publicado por picodavigia2 às 00:05





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