PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O CARRO DE BOIS
Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, o carro de bois era, a par do corsão, um dos mais importantes meios de transporte dos produtos agrícolas, da lenha e dos alimentos e cama para os animais. Além disso, o carro de bois também era utilizado nos transportes de mercadorias, uma vez que era o meio a que se recorria para fazer chegar à Fajã os produtos necessários, vindas das vilas, sempre que estes rareavam e quando não podiam ser transportados por mar, devido ao mau tempo. Por outro lado, o carro de bois, antes da abertura da estrada entre o Porto da Fajã e os Terreiros, também teve um importante papel, dado que, nos dias em que o Carvalho fazia serviço na Fajã Grande, eram monopolizados praticamente todos os caros de bois existentes na freguesia, para o transporte, pelo menos até à Ribeira Grande, de toda a carga chegada à ilha naquele paquete e que se destinava aos grandes comerciantes de Santa Cruz e das Lajes. O carro de bois também chegou a ser utilizado como meio de transporte de pessoas, sobretudo de doentes e as crianças, sempre que podiam, não perdiam a oportunidade de utilizar aquele aliciante meio de transporte, por vezes até alapadas lá no cimo dos carregamentos.
O carro de bois utilizado na Fajã Grande, na realidade, não só obedecia a um modelo próprio e específico, mas era também uma verdadeira obra de engenharia e, até, de arte. A maior parte dos carros existentes na Fajã eram construídos na própria freguesia, por carpinteiros locais, ajudados por outros homens e a matéria-prima para a sua construção era a madeira e duas tiras de ferro destinadas a serem pregadas na parte exterior das rodas, para as proteger. Apenas os parafusos para apertar os “queicões” eram comprados ou mandados vir de Santa Cruz.
O carro de bois era composto basicamente de três partes: as rodas, o eixo e o tampo. As rodas eram o mais difícil de construir e montar, uma vez que eram constituídas por seis partes: o meão, duas cambotas, duas arreias e o ferro exterior. O meão era a peça central da roda, constituindo a maior parte da mesma, no meio do qual se fazia um furo quadrado, onde era fixado o eixo. As cambotas eram duas espécies de meias-luas, fixadas ao meão por intermédio das arreias, duas tiras de madeira que se uniam, por intermédio de furos abertos no meão e nas meias-luas. No exterior de cada roda pregava-se, com cravos semelhantes aos das ferraduras dos cavalos, a tira de ferro não só para proteger a roda mas também par apertar melhor as suas partes. No sentido transversal, em linha recta ao centro do furo do eixo, nos encontros do meão e das cambotas, eram deixadas, em cada roda, duas perfurações, as quais, além de dar uma conformação mais estética às próprias rodas, serviam para difundir o som do chiar do carro, pelos ares, à semelhança das aberturas duma viola.
Por sua vez o eixo era constituído por uma única pau, bastante grosso e rijo, utilizando apenas duas chavetas em cada cabeça para fixa-lo nas rodas. Tratava-se de uma peça pesada e volumosa, de boa madeira e rija, em cujas extremidades se afinavam as ponteiras, de maneira que encaixassem perfeita e adequadamente nos furos do meão. Um pouco mais dentro e de ambos os lados do eixo, eram feitos dois recortes para o encaixe dos cocões e dos chumaços. Os cocões eram apertados ou alargados com os parafusos, permitindo assim travar ou aliviar o carro. Durante o circular do carro com os parafusos apertados este chiava, o que se devia em parte ao untar-se os recortes do eixo com sebo. O bem chiar era muito importante num carro de bois, conferia auto estima ao proprietário, dava-lhe um estatuto de grandiosidade e era uma espécie de prestígio pessoal.
Finalmente o tampo que era a parte mais complexa do carro de bois e talvez a que mais exigia em noções de engenharia e de simetria. O seu formato assemelha-se a uma pá do forno em ponto grande, mas com o cabo mais curto. Eram peças básicas do tampo: o cabeçalho, duas chedas, dois chumaços, quatro cocões, o recavém e a chavelha. O cabeçalho era a parte mais comprida do tampo e era formado por uma única peça de madeira, localizada ao meio, desde a parte dianteira onde se prendia a chavelha até ao recavém. A conformação do tampo era realizada mediante a junção das chedas, que eram construídas segundo técnicas especiais de recortes e fixadas na parte anterior ao cabeçalho e posteriormente a uma tira traseira. Na Fajã, os espaços entre o cabeçalho e as chedas eram forrados com tabuões de madeira. O cabeçalho era uma espécie de coluna vertebral do tampo, pois a ele se prendia e dele dependia toda a estrutura da mesma. As chedas, que constituem as partes laterais do tampo, recebiam as perfurações dos cocões, por baixo e as dos fueiros, na parte superior. Estes eram em número de quatro ou cinco de cada lado, Assim, os cocões, uma espécie de grandes pinos, destinavam-se a receber o eixo das rodas, de o fazer rolar e eram fixados dois em cada cheda. Por sua vez a sua fixação era feita mediante a aplicação de pinos ou tornos, na parte superior que evitavam que os mesmos caíssem. Entre os cocões e mediante fixação dos mesmos, eram encaixados os chumaços, uma espécie de amortecedores sob os quais rodava o eixo do carro. Estas peças, com o tempo, desgastavam-se e aqueciam muito, por isso, deviam ser lubrificadas constantemente, para evitarem que o carro se incendiasse. Por vezes, ao começar a ver-se o eixo a deitar fumo, era necessário atirar-lhe água para cima. Por sua vez, a lubrificação que era feita com sebo de boi e quando o não havia com sabão azul, também fazia com que o carro chiasse mais e melhor, “cantasse” mais afinado. A chavelha era uma peça de madeira que era colocada bem na ponta do cabeçalho, num furo construído perpendicularmente e servia para fixar o carro à canga através do tamoeiro.
Constituíam, ainda, acessórios do carro de bois a sebe, geralmente construída com vimes e servia para transporte de cereais, batatas, sargaço e estrume, a atiradeira que prendia e apertava os fueiros a meio da carga, quando esta era mais alta e o cabo que prendia a carga final, sendo apertado no cimo com dois arrochos, isto é, dois paus, um direito que se espetava na carga e outro curvilíneo que ia enrolando à volta do primeiro, a fim de arrochar ou apertar a carga. Para atrelar os bois ao carro utlizava.se a canga presa pelo tamoeiro ao cabeçalho, através da chavelha. Na Fajã Grande os carros eram, regra geral, puxados apenas por uma junta de bois. Apenas em situações muito especiais, para o transporte de algo excessivamente pesado, se juntava uma segunda junta, designada por “solas”. Essa a razão por que na Fajã era usada a expressão “deita-lhe as solas”, para gozar quem estava em dificuldade em transportar o que quer que fosse.
Na Fajã Grande também existia uma outra espécie de carro de bois, era o de “canguinha” muito semelhante ao de junta mas com duas diferenças. Por um lado era bem mais pequeno e o diâmetro das rodas menor e em vez de um, tinha dois cabeçalhos laterais, na continuação das chedas e no meio dos quais se atrelava o boi ou a vaca, através de uma canga de canguinha.