PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A NAU CATRINETA
A Nau Catrineta é um poema romanceado da tradição popular portuguesa, recolhido por Almeida Garret e que relata, de forma lendária, as vicissitudes, as tormentas, os medos e as angústias das viagens dos portugueses para a África, para o Brasil e para a Índia. Trata-se de um texto muito divulgado e conhecido em todo o país. A Fajã Grande que sempre se revelou, talvez devido ao seu isolamento, como um excelente e amplo viveiro de desenvolvimento de rimances e textos orais, não podia alhear-se deste, assim como da Bela Infanta, muito conhecido também a nível de todo o país. Tal como os outros rimances, a Nau Catrineta contava-se aos serões das longas noites de Inverno, mas com algumas pequenas diferenças do texto recolhido por Almeida Garret, sobretudo por utilizar algumas palavras ou expressões que eram comuns na linguagem típica e corrente na freguesia e até na ilha das Flores. Rezava mais ou menos assim:
“Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muite que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e meio
Que iam na volta do mar,
Já nã tinhim que comer,
Já nã tinhim que manjar.
Deitarim as solas de molho
Pra o oitro dia jantar;
Mas a sola era tã rija,
Qu’a nã puderim tragar.
Deitarim sortes à ventura
Qual se’avia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão genaral.
- "Sobe, sobe, marujinhe,
Àquele mastre real,
Vê se vês terras d’Ispanha,
As praias de Portugal!"
- "Nã veje terras de Espanha,
Nim praias de Portugal;
Veje sete espadas nuas
Prontas pra te matar."
- "Acima, acima, gageire,
Acima ao mastre real!
Olha s‘enxergas Ispanha,
Areias de Portugal!"
- "Alvíssas, mei capitão,
Mei capitão genaral!
Já veje terras d’Ispanha,
Areias de Portugal!"
Mas inxergo três meninas,
Debaixe d’ um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mas fermosa de todas
Está no meie a chorar."
- "Todas três sã minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais fermosa de todas
Contigue s’ade casar."
- "A vossa filha nã quere,
Que vos custou a criar."
- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Qu’u nã possas contar."
- "Nã quero o vosse dinheire
Pois vos custou a ganhar."
- "Dou-te o meu cavale branque,
Que nunca houve oitro igual."
- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."
- "Dou-t’a Nau Catrineta,
P’ra nela navegares."
- "Nã quero a Nau Catrineta,
Qu’a nã sei guevernar."
- "Que queres tu, mei gageiro,
Qu’alvíssaras te hei-de dar?"
- "Capitão, quere tua alma,
P’ra comigue a levar!"
- "Ranego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou-o ao mar."
Tomou-o um anjo nos braços,
Nã no deixou s’afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a Nau Catrineta
Estava in terra a varar.”