PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A MORTE DO FOLIÃO DO SENHOR ESPÍRITO SANTO
O Ledesma regressou à Fajã muitos anos depois de ter partido para a Améria. Ainda criança acompanhara o pai, esquivando-se para os States, a bordo duma escuma que ancorara ali para os lados do Canto do Areal, já ao anoitecer, sem que ninguém desse por isso, nem a guarda costeira desconfiasse o que quer que fosse. A «Voice of the Sea» fora rápida na sua escala nos mares da Fajã. Carregara meia-dúzia de clandestinos e pusera-se na alheta, antes que o pior acontecesse. Ainda a noite não escurecera por completo e já desaparecera no mar alto, deixando atrás a mancha negra da ilha e as luzes frouxas dos pequenos faróis que povoavam a sua orla marítima. Algumas semanas depois estavam na costa leste dos Estados Unidos, à espera do “trem” que os havia de levar até à outra banda do mundo, onde se dizia, havia uma espécie de “el dorado” para quantos, de tão longe, demandavam aquelas longínquas paragens. Fixou-se o Ledesma pai, juntamente com a criança, surripiada de entre as brumas e escarpas açorianas, para os lados do Vale de São Joaquim, nos arredores de Fresno. Não tardou o Ledesma filho a crescer, a tornar-se um jovem forte e robusto, começando a ajudar o pai nas lides campestres e no pastoreio. E quando o velho pai, alguns anos depois, resolveu voltar à ilha onde nascera, o filho decidiu não o acompanhar, permanecendo na terra do Tio Sam por mais um bom punhado de anos.
Fez fortuna o Ledesma e, quando se decidiu por regressar às Flores, estava ao que se dizia, podre de rico. Chegou à Fajã, construiu casa na Fontinha, comprou terras de cultivo e de mato, relvas, gado, apetrechos agrícolas e utensílios domésticos. Casou e decidiu-se ficar ali, para sempre. Nada de anormal pois aquela era a terra que o vira nascer. Mas como a estadia na Califórnia havia sido longa e prolongada, o Ledesma demorou algum tempo, quer a inteirar-se dos usos e costumes da terra que o vira nascer, quer a conhecer os seus hábitos e as suas tradições.
Certo dia, pouco depois do seu regresso da Califórnia, decidiu que havia de deslocar-se a Santa Cruz, a fim de registar umas propriedades que comprara lá para as bandas do Queiroal. Levantou-se cedo e partiu sozinho, cuidando que ainda conhecia os atalhos e veredas que em criança havia calcorreado com o pai. Saiu de casa, subiu a Fontinha, atravessou o Alagoeiro e a Ribeira e iniciou a subida da Rocha ainda noite escura, embora já se vislumbrassem, sobre a Caldeirinha, alguns raios de luz esbranquiçada, a anunciar que o dia nasceria em breve. Ao iniciar a subida da Rocha, no entanto, notou que ao seu redor havia um silêncio enorme, medonho e enigmático. Não havia um único pássaro que fizesse ecoar a sua voz por aqueles recantos a anunciar o amanhecer. O mesmo acontecia com os galos das capoeiras da Fontinha que permaneciam mudos como nunca. Talvez fosse mais cedo do que pensava e, por isso, continuou a subir a Rocha, descontraidamente. Ao chegar ao Descansadouro o silêncio parecia ainda maior, o que voltou a despertar a admiração e o espanto do Ledesma. Como poderia estar o dia prestes a nascer e não haver, no meio de todo aquele arvoredo, uma única ave que anunciasse, com o seu belo e alegre canto, o início de mais um dia? À Fonte Vermelha sentou-se e pôs-se a escutar com mais atenção. Nada! Que raio! O que teria acontecido a aquela passarada para estar assim silenciosa? Indignado continuou até ao cimo da Rocha. A manhã já clareara por completo, mas pássaros a cantar… nem um para amostra. Nada de cantorias. Inquieto, admirado, embasbacado e já um pouco confuso, o Ledesma seguiu o seu trajecto até Santa Cruz, sem que, ao longo de todo o percurso, ouvisse cantar um único pássaro que fosse.
Entrou na Vila já a manhã ia a meio. Santa Cruz parecia deserta, assombrada, entristecida. O Sol escondera-se por completo, um denso manto de nuvens cobria o povoado, tornando a vila sombria, soturna e pardacenta. Nas ruas, não se viam pessoas, nos campos não pastavam animais e os ramos das árvores estavam pejados de pássaros, mas, incompreensivelmente, permaneciam todos silenciosos. Ao chegar à Praça, apenas viu um velho, sentado num banco, soturno e sorumbático, como que a olhar o infinito. Dirigiu-se a ele, indagando-o sobre o que se passava e sobretudo porque seria que naquela manhã, estranhamente, não se ouviam os pássaros a cantar. Foi então que o velho, fixando-o com os olhos rasos de lágrimas, esclareceu:
- Só tu vives nesta terra e não sabes o que se passa, no dia de hoje. Os pássaros não cantam, nem cantarão durante todo o dia, porque hoje morreu um folião do Senhor Espírito Santo. No dia em que morre um folião do Senhor Espírito Santo, toda a Terra chora, os Céus ficam muito tristes e até os pássaros não cantam!