PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NATAL (DIÁRIO DE TI'ANTONHO)
Segunda-Feira, 2 de Setembro de 1946
Em Dezembro, logo a seguir à matança do porco chegava o Natal. Embora ainda estejamos muito longe da festa do Natal, deste ano de 1946, apeteceu-me, hoje, falar do meu Natal, do dia de Natal quando eu era criança e quando ainda não havia estas modernices de agora Já se passaram tantos e tantos anos… Ainda estávamos no século passado, no tempo dos reis. Nessa altura o Natal era diferente do de agora, porque a vida antigamente não era como a vida de hoje, com estas modernices todas como a de darem presentes às crianças e enganá-las, dizendo que é o Menino Jesus que os oferece. Quando eu era criança não havia nada disso. O que era mais importante naquela altura era irmos todos à meia-noite à missa do galo. Era uma noite da qual nunca mais me esqueci. A gente ceava mais tarde um bocadinho. Minha mãe pelo Natal matava sempre um galo bem gordo que guisava depois de lhe fazer avinha d’alhos, cozia um grande caldeirão de inhames e fritava torresmos e linguiça. O que a gente mais gostava era de se consolar nessa noite a comer todas estas iguarias, embora fosse minha mãe que fizesse o prato de cada um, deitando-lhe apenas um pedacinho de frango, outro de linguiça e um torresmo. Que fartura de comidinha boa havia naquela noite! Havia muitos inhames na mesa, naquela noite e agente comia todos os que quiséssemos e nos apetecesse. A seguir comiam-se laranjas e uma talhadinha de arroz doce. Era tão bom aquele arroz muito amarelo, muito doce e coberto com canela. Depois a gente ia deitar-se um instantinho até que a minha mãe nos acordava para irmos à missa. Eu acho que toda a gente da freguesia se levantava e acorria à igreja para a missa do galo, pois esta, naquela noite, encontrava-se normalmente cheia. Nessa altura o pároco desta freguesia era o senhor padre Mariano do Nascimento, natural de Santa Maria e que esteve pouco tempo aqui, nas Flores. Logo que ele aparecia, saindo da sacristia, a subir o altar vestido com paramentos brancos, o sacristão tocava uma enorme campainha. As pessoas, embora muito desafinadas cantavam cânticos próprios de Natal. Precisamente no momento em que um velho relógio colocado no cruzeiro da capela-mor dava as doze badaladas, o sacerdote, dirigindo-se para o meio do altar abria os braços e cantava em alta voz «Glória in excelsis Deo». Na sineira os sinos tocavam um longo repique. A igreja que até aí estava às escuras, ficava totalmente iluminada pois acendiam-se velas em todos os altares e subiam os pavios das lanternas de petróleo que as pessoas traziam de casa. Nessa altura umas cortinas pretas que vedavam o Presépio grande, abriam-se e aparecia a gruta ao lado da qual se perfilavam as casas, os montes e os vales, as pastagens e os lagos, com as figuras de pastores trazendo ovelhas e cordeiros ao Menino Jesus que permanecia reclinado nas palhas de uma manjedoira, ao lado de Nossa Senhora e São José. No final da missa seguia-se o “beija-pé” do Menino Jesus, apresentado pelo celebrante a todas as pessoas. Nesse momento principalmente as crianças corriam para junto do Presépio a ver o Menino Jesus, Sua Mãe e S. José, com o burrinho e a vaquinha ao lado. Para elas tudo era um encanto.
O resto do dia era passado normalmente como se de um domingo se tratasse. Ao almoço comia-se o que sobrava da noite. De tarde grupos de rapazes andavam pelas casas e, a propósito de desejar um bom natal, aproveitavam para provar o «chichi” do Menino. Finalmente, tudo terminava ao cair da noite, com o toque das Trindades, apenas ficava a recordação de um dia diferente dos outros em que, mesmo não sendo domingo, não se trabalhava e comia-se um pouquinho melhor.”