PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O PADRE LEONETE DO CORVO
Na década de cinquenta, quase todos os anos vinha uma embarcação com romeiros do Corvo, com destino à festa da Senhora da Saúde, na Fajã Grande. O inverso também acontecia, isto é, por altura da festa da Senhora dos Milagres, uma outra embarcação seguia da Fajã, a abarrotar de peregrinos, com destino à ilha vizinha. Este intercâmbio era tão excessivo, tão gratificante e tão entusiasmador que quase todas as casas da Fajã tinham os seus “conhecidos” no Corvo, assim como as do Corvo os tinham na Fajã, hospedando-se uns nas casas dos outros, a quando das suas deslocações a festas e romarias. Nem mesmo o trágico acidente ocorrido em 1942 em que perderam a vida dezasseis pessoas quase todas oriundas da Fajã Grande, pôs cobro ou sequer acalmou tão enraizada euforia.
A comitiva do Corvo que se deslocava à Fajã, para além de muito numerosa, trazia, geralmente, a filarmónica e um padre. Este chamava-se Leonete e era esperado sempre com grande expectativa e interesse na Fajã Grande. Estranhamente hospedava-se, na Tronqueira, em casa do seu “conhecido” José Maria, abdicando, radicalmente, talvez por não granjear de grande simpatia entre o clero da diocese, em geral, e das Flores em particular, de se hospedar na mansão do padre Pimentel, que recebia e dava guarida a todos os sacerdotes que se deslocavam de outras paróquias a fim de ajudarem naquela festa. Além disso, o padre Leonete, nos dias em que permanecia na Fajã, mal tinha tempo para rezar ou celebrar missa, julgando-se mesmo que estava impedido de o fazer, uma vez que passava todo o dia a concertar e a reparar toda a maquinaria que estivesse avariada na Fajã Grande, sobretudo relógios, sem levar dinheiro a ninguém. Uma autêntica dádiva de Deus, este padre Leonete.
Leonete Vieira do Rego, natural de São Miguel fez a sua formação no Seminário de Angra, tendo, de seguida e durante algum tempo, trabalhado como mecânico numa oficina de Ponta Delgada. Nessa altura ainda não tinham surgido “os padres operários” em França, pelo que a atitude do padre Leonete não agradou ao prelado diocesano. Este, cuidando que esse tipo de trabalho era incompatível com a prática de vida sacerdotal, tentando demovê-lo dessa actividade laica e pretendendo que se dedicasse exclusivamente ao serviço de Deus, enviou-o para o Corvo, talvez por pensar que aí não havia máquinas, nem motores com que padre Leonete se entretivesse. Mas enganou-se, o mais alto dignatário da Igreja nos Açores. É que isso em nada demoveu a vocação para a mecânica do padre Leonete que terá comprado e levado de São Miguel para o Corvo o motor de um carro velho, reparando-o e construindo com ele um pequeno gerador que serviu para iluminar a igreja e os arraiais das festas, naquela ilha. Uma novidade extraordinária! Nunca tal se tinha visto, no Corvo! Um sucesso nunca alcançado pelos corvinos! E o padre Leonete entrou em órbita de grandiosidade e de glorificação, junto do povo. Mas não se ficou por aqui. Com outro motor velho construiu uma debulhadora destinada a ajudar os corvinos na debulha do trigo e comprou um jipe destinado a acarretar e transportar o trigo e outros produtos. Mais o glorificaram e o louvaram os seus paroquianos, dando graças a Deus por lho ter enviado. Além disso as reparações de todo o tipo de maquinaria estavam sempre por sua conta, não apenas no Corvo mas também nas Flores quando ali se deslocava, como acontecia todos os anos pela festa da Senhora da Saúde, na Fajã Grande. Acrescente-se que todo este trabalho, segundo rezam as crónicas, era gratuito, embora o povo das duas ilhas, reconhecido como é pelo bem que lhe fazem, lhe retribuísse ofertando-lhe algo do que produziam nos seus campos.
Conta-se que na freguesia de Ponta Delgada das Flores, o padre Leonete com um pequeno motor, também construiu um gerador para iluminar nas festas do Espírito Santo e de Santo Amaro, com um pequeno motor a que ligava uma serra disco que servia para a iluminação e para a projecção de filmes. Para lhe pagar, os habitantes daquela freguesia mandavam-lhe barcos carregados de lenha que apanhavam nas barrosas e que o Padre Leonete, no Corvo, mandava serrar e, transformando-a em madeira, enviava-a de novo para as Flores para o povo a vender, ganhando assim algum dinheiro.
Mas o que imortalizou o padre Leonete no Corvo foi o ter sido ele o responsável pela chegada da electricidade àquela pequenina e isolada ilha, em plena década de cinquenta do século passado.
Mais tarde e porque os trabalhos de mecânica do padre Leonete, mesmo no Corvo, provavelmente, continuaram a não ter o beneplácito bispo da diocese, o padre Leonete foi desterrado como missionário para Timor, onde terá chegado a dar aulas de mecânica, sendo no entanto obrigado a sair daquele território, na altura sob a dominação portuguesa, a quando da invasão do mesmo pela Indonésia, refugiando-se na Austrália. Apesar de tudo ainda voltou ao Corvo onde veio a falecer.