PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A MATANÇA DO PORCO EM SÃO CAETANO
Assim como noutras localidades açorianas, a Matança do Porco, em São Caetano do Pico, constituía, nas décadas de cinquenta, sessenta e setenta e, muito provavelmente, nas anteriores, um dos maiores e mais importantes momentos de festa de cada família, ao longo do ano. Ocorria, normalmente, no mês de Dezembro ou no de Janeiro e eram dois ou três dias de trabalhos árduos, de canseiras, de consumições e preocupações, mas também de festa, de alegria e, sobretudo, de mesa farta. Os próprios dias que antecediam os da Matança, já eram de grande azáfama, não apenas nas idas e vindas aos matos, a fim de cortar, acarretar e secar a urze, indispensável ao chamusco, mas também na preparação da lenha necessária para afoguear panelas e caldeirões, onde se havia de cozinhar os torresmos e derreter o toucinho. Uns dias antes da matança era necessário, também, arrancar, limpar, lavar e por a secar as cebolas de rama, que na véspera haviam de ser picadas para encher as morcelas. Depois de, devidamente preparadas, as cebolas eram misturadas e amassadas juntamente com salsa e outros temperos, aguardando a chegada do sangue. A véspera da Matança ainda era destinada a preparar as salgadeiras, a cozer o bolo e os inhames, a assar as batatas-doces e a preparar o peixe, o feijão, as lulas destinadas e outras iguarias destinados às refeições dos dias seguintes.
O dia da Matança iniciava-se ao lusco-fusco. Os parentes e amigos que vinham ajudar eram recebidos com um traguinho de aguardente ou de traçado. As mulheres embrenhavam-se, de imediato, a colaborar nas lides da cozinha, enquanto os homens, se quedavam junto ao curral, apreciando o cevado, avaliando o seu peso e qualidade, ao mesmo tempo que enrolavam uma ou duas pitadas de tabaco numa folha de casca de milho, transformando-o em cigarro que iam acendendo, sucessivamente, uns nos outros.
Finalmente iniciava-se o combate. Os mais novos, os mais experientes e, sobretudo os mais afoitos, saltavam para o curral, atapetado de palha e atiravam-se ao cevado, sem dó nem piedade. O bicho gritava, grunhia, estrebuchava e executava movimentos bruscos, em frustradas tentativas de libertação. Os homens venciam e o porco era amarrado, amordaçado e preso, sendo colocado sobre um tabuão ou sobre uma porta velha, a jeito que o marchante lhe enfiasse a faca com sucesso e o sangue jorrasse abundantemente e fosse aparado num alguidar de barro, ao mesmo tempo que lhe era misturado um pouco de vinagre, a fim de não coagular. Posteriormente, havia de se misturar ao preparado das morcelas.
Uma vez morto, o porco era chamuscado, de ponta a ponta, de um lado e outro, muito bem lavado e rapado, de modo a que a própria pele dos torresmos de toucinho pudesse ser comida. De seguida era aberto, sendo lhe retirados os miúdos, incluindo as tripas que, de imediato, eram separadas, a fim de se proceder à sua rígida, cuidadosa e exigente lavagem, com água, sal, farinha de milho, limas azedas, etc. As grossas, assim como o bucho, eram cheias com o preparado das morcelas, a que se juntara pedacinhos do véu picados. As outras tripas guardavam-se para as linguiças.
O abrir e o consequente desamanhar do porco era realizado pelos mais sábios e experientes. Os bofes, o coração e uns pedacinhos de carne da barriga eram guisados com batata branca, o fígado transformado em iscas e, juntamente com as sobras do almoço, constituíam o lauto jantar ou ceia, onde não faltavam os convidados de honra: padre, professor, regedor, guarda-fiscal e outras pessoas mais influentes na freguesia ou aquelas a quem se deviam favores. Mas a mesa não se levantava e, já pela noite dentro, entre jogos de cartas e copos de vinho, prova-se a morcela. Era também por esta altura que apareciam algumas visitas estranhas, com o intuito de assaltar as morcelas. Entre folguedos e cantigas, por vezes até entre bailados de chamarrita, todos eram brindados com vinho e comida, onde não faltava a aromática e saborosa morcela.
Depois de pendurado a um tirante pelo focinho, geralmente na loja ou na própria cozinha, o porco era aberto nas costas, de cima para baixo, sendo-lhe espetadas umas canas atravessadas que mantinham o interior do animal aberto, a fim de o enxugar. Por baixo colocava-se uma pequena celha para aparar os restos de sangue e água que escorriam do interior do animal.
No dia seguinte, desmanchava-se o porco, separando, carne, ossos, lombos e toucinho. Algumas postas eram destinadas a ofertas e do lombo faziam-se os primeiros bifes para o jantar, juntamente com a morcela assada ou frita. A cabeça também era separada e preparada para com ela fazer a tradicional sopa, também incluída no jantar. O toucinho era derretido, quase na totalidade e, depois de se retirar a banha, transformava-se em pequenos mas deliciosos torresmos de graxa. Uma parte da carne e os ossos eram salgados e guardados nas salgadeiras, enquanto outra era finamente picada para as linguiças, que se haviam de encher alguns dias depois, a fim de ir garantindo, juntamente com a carne, os torresmos e o toucinho, o sustento de cada família, durante o ano.