PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
TOURADA NA RUA DIREITA
O Maurício tinha o palheiro do gado na Assomada, junto à casa das Senhoras Mendonças e possuía relvas no Vale do Linho, lá para os lados da Ponta. O Raulino Fragueiro tinha o palheiro do gado na Tronqueira, junto à casa do Lucindo Cardoso e possuía relvas na Alagoinha, lá para os lados dos Paus Brancos. As vacas do Maurício, conduzidas por ele próprio, todas as tardes, desciam a Rua Direita, com destino às relvas do Vale do Linho e subiam-na, de madrugada, no regresso ao palheiro. Por sua vez, as vacas do Raulino Fragueiro, geralmente conduzidas pelo filho mais velho, o Francisco, todas as tardes, subiam a Rua Direita com destino às relvas da Alagoinha e desciam-na, de madrugada, de regresso ao palheiro. Umas e outras eram vacas robustas, de boa raça, bem tratadas, fortes, valentes, saudáveis, bonitas e boas de leita. Além disso, como era costume na Fajã Grande, quer o Maurício quer o Raulino Fragueiro e os filhos, para além de tratarem muito bem as suas vacas, colocavam-lhes reluzentes ponteiras nos chifres e sonoras campainhas ao pescoço. Assim, umas e outras, nas suas idas e vindas diárias, à tarde e de manhã, transitavam calma e tranquilamente na Rua Direita, enchendo-a de sons, de cores, de alegria e de movimento, mas também de bosta, de incómodo e de cheiro a leite e a palheiro.
Certa tarde, porém, tudo isto se modificou. Por infeliz coincidência ou mero acaso, o Maurício e o Francisco do Raulino saíram com as suas vacas dos seus palheiros a tais horas e com tal rigor que estas haviam de encontrar-se, umas com as outras, logo ali, a seguir à Praça, no início da Rua Direita, as do Maurício a descer, as do Raulino a subir. E eis se não quando, uma das vacas do Maurício, cuidando talvez que as suas oponentes não lhe deixavam espaço suficiente para circular, de mais atrevida e metediça que era, resolveu dar uma valente cornada numa das vacas do Francisco. Foi o bom e o bonito! As outras, entrando em defesa da inocente agredida, resolvem atacar massivamente, à cornada, ao coice, ao empurrão, ao salta por cima e ao encavalita, não apenas a desdenhosa que havia iniciado a guerrilha mas toda a comitiva que se encaminhava para o Vale do Linho. O Maurício, um boca-aberta de se lhe tirar o chapéu, cuidando que as suas vacas sabiam muito bem defender-se e atacar no momento oportuno e que as cornadas a ele não lhe doíam rigorosamente nada, optou por observar, de longe, o “fandaine”, e o Francisco, sempre lento, sempre atrasado e sempre na conversa com um e com outro, quando se aproximou do local da peleja, já esta ia a mais de meio, com consequências desastrosas, pois era de tal modo intensa, envolvente e desalmada que era impossível pôr-lhe cobro. Juntou-se gente, os moradores assomaram às portas, varandas e janelas, uns a divertirem-se com aquele inesperado espectáculo e outros a indignarem-se com as suas malévolas consequências. For fim os donos das vacas, ajudados por voluntários, à paulada, à cacetada, aos gritos, aos berros e ao incitamento às tréguas, lá conseguiram sossegar as rezes, que cansadas, escarrachadas, amarfanhadas e apalermadas lá seguiram o seu destino, as do Francisco subindo a Fontinha, até à Alagoinha, as do Maurício, continuando a descer a Rua Direita e a Tronqueira, até ao Vale do Linho.
Mas os moradores da principal e mais aristocrata artéria da Fajã, sobretudo os das casas ali ao redor, muito se indignaram e ainda mais se revoltaram. É que para além do incómodo provocado, o inesperado e inóspito incidente deixou marcas inqualificáveis e aberrantes, sobretudo de bosta e mau cheiro, nos passeios, nas entradas, nas portas e até nalgumas janelas e varandas. E o Maurício e o Francisco do Raulino, declarados unanimemente com os principais responsáveis por aquela displicente e abominável tourada, não foram poupados aos mais odiosos, variados e vis insultos, vitupérios, injúrias, pragas e imprecações.