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A BUCHANAIFE

Quinta-feira, 19.12.13

Quando regressou da Califórnia, disposto a passar os últimos dias da sua vida na terra onde nascera, Mrs Robert trouxe consigo alguns costumes modernos que contrariavam os hábitos ancestrais duma isolada e pacata freguesia, como era a Fajã Grande, em plena década de cinquenta. Só que o ilustre ancião não se apercebeu, de imediato, da incompatibilidade existente entre os usos e costumes da terra do Tio Sam, estampados nas suas múltiplas extravagâncias, e o recatado viver dos habitantes da mais ocidental parcela do território português.

Ora, entre outras esquisitices, Mrs Robert adorava tomar banhos de mar. Na Califórnia, porém, não o fazia com a frequência e a continuidade desejadas. Vivia longe do mar, os invernos eram muito rigorosos e prolongados e, como se isso não bastasse, as águas do Pacífico que banhavam as costas do norte da Califórnia eram terrivelmente arrefecidas pela corrente fria do Humbolt. Mrs Robert saíra das Flores muito jovem, mas sabia bem que as águas do Atlântico, ali, nas Flores, eram mais quentinhas. O clima dos Açores era bem melhor do que o de “Mendocino County” e a corrente oceânica que passava a noroeste das ilhas era quente.

Assim e logo no dia imediato ao da sua chegada, Mrs Robert, resolveu pegar nos seus calções, muito vermelhos e ramalhudos, na sua toalha amarelada e a espelhar as praias do Hawai, enfiou um “kap” de marinheiro na cabeça, colocou os óculos escuros e partiu para o Porto, não sem, no entanto, despertar a curiosidade de quantos o viam caminhar naquele traje e naquela direcção.

O Porto Velho, a abarrotar de barcos e edificado ao redor de rochedos alcantilados não lhe agradou. Mas o Cais, esse sim. Era “wonderful, very wonderful”. Ao lado das escadas onde os barcos encostavam para descarregar mercadorias e passageiros, quando o Carvalho ali fazia serviço, havia um varadouro com alguma areia. “Really good”! E Mrs Robert decidiu-se pelo varadouro. Escondeu-se entre os rochedos para despir a roupa e vestir o “swimsuit” e encaminhou-se para o mar, descendo o varadouro como bem podia e Deus o ajudava. Mas as pedras estavam cheias de algas e limos molhados e escorregadios, fazendo com que Mrs Robert resvalasse várias vezes, amachucando e esfolando o rabiosque. Apesar de tudo, com as pernas a tremer como varas verdes, conseguiu chegar à água e começar a nadar. A água estava óptima, o mar muito manso e Mrs Robert nadava que nem um peixe.

A Maria Eduarda, que fora levar uma moenda ao moinho, lá para os lados da Ribeira das Casas, no regresso, passou por ali. Parou e mirou tudo! Pasmou-se, engasgou-se, benzeu-se e persignou-se. Nunca se vira, na freguesia, uma pouca-vergonha daquelas! Bisbilhoteira que era, não se conteve e, a correr numa aflição, veio anunciar ao povoado, não apenas o que vira mas também o que imaginara. Foi a debandada geral! Novos, velhos, rapazes crianças e até mulheres zarparam em direcção ao Cais, para ver, apreciar e comentar aquele inusitado espectáculo. E num ápice o Cais encheu-se de mirones, de comentários, de risos, de espantos, de reparos e de admirações. Incrédulas e apreensivas, as mulheres, sentenciavam: “Um velho daquela idade, a nadar, não pode estar bom da cabeça. Perdeu o juízo por completo.” Sorridentes, os homens comentavam: “É preciso ter coragem! O velhote aguenta-se que nem um rapaz de vinte anos”. Os rapazes e crianças, a divertirem-se com o espectáculo, alguns atirando-se de cima do Cais para a água, gritavam em alto e bom som: “Roberto vai ver a velha, Roberto vai ao fundo, ver a velha”.

Mrs Robert ao ver toda aquela patuleia desenfreada toca de remar para terra, tentando subir o varadouro com rapidez e celeridade. Os pés, porém, escorregavam sobre limos e algas. Mrs Robert, com uma monumental barriga e umas pernas muito delgadas, caía e levantava-se para cair de imediato, em infrutíferas tentativas de chegar ao esconderijo onde guardara a roupa. Impossibilitado de subir a pé, começou a andar de gatas, a rastejar, a rolar.se e a desgastar-se por completo, perante a chacota e a risada geral que emanava de cima do Cais, entremeada por entre gritos: “P´rá água! P´ra água! Roberto para a água!”

Muito a custo, Mrs Robert lá chegou ao seu esconderijo, enquanto a multidão, dando o espectáculo por terminado, abandonava o Cais. Algum tempo depois, ao regressar a casa, Mrs Robert deu com Ti’Antonho Joaquim sentado à praça. Parou e fixando-o de frente ripostou;

- Senhor António Joaquim, não tem vergonha! Um homem da sua idade, também teve a lata de caminhar para o Cais, a ver o “Fandaine”, para se rir à minha custa… Pois fique sabendo que Robert trabalhou muitos anos num talho, em “Ukiah” e sabe manejar muito bem uma “buchanaife”. Tenho uma lá em casa e vou trazê-la comigo, para ver se o Senhor António Joaquim e os outros voltam a ir ver o “fandaine” e a rir-se de mim. Oh, se voltam!

E a partir desse dia Mrs Robert, para além dos preparos necessários ao seu banho de mar, levava consigo, para o Cais, uma enorme faca de matar porcos

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publicado por picodavigia2 às 23:45





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