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JOSÉ EDUARDO

Sexta-feira, 20.12.13

A meio da Fontinha, no cimo de uma pequena ladeira, a seguir à Fonte Velha e quase anexa ao palheiro do meu avô, situava-se uma casa onde vivia, na companhia de uma irmã, um homem muito pobre e doente, chamado José Eduardo.

O exterior da casa, embora despido de cal e em pedra negra e solta, tinha um aspecto aparentemente solene, altiva e imponente na sua arquitectura e, além disso, era de dois andares. Mas o interior era muito pobre, desabrido e radicalmente despojado das mais simples e elementares condições de habitabilidade. José Eduardo e a irmã ocupavam o piso superior, com apenas duas divisões: uma cozinha e uma sala que também servia de quarto de cama aos dois irmãos. A cozinha terrivelmente escura, comunicava com a luz e o ar do exterior, apenas por uma pequena janela, com alguns vidros partidos e uma porta, toda de madeira, frente à qual havia uma escadaria de pedra que ligava a única saída de casa ao caminho. De resto, um lar revestido de tisna, onde pontificavam uns caldeiros negros de carvão, assentes sobre umas grelhas de tufo a bambalear e o forno, que apenas era utilizado para arrumos. A mobília, pobre e a desfazer-se, era constituída por uma mesa, dois ou três bancos e um pequeno armário em que as portas eram uns panos escuros e ensebados, onde guardavam os pratos, as tigelas, algumas garrafas vazias e outros utensílios. O soalho da cozinha, assim com o da sala, embora de madeira, estava esburacado e remendado com tiras de caixotes de sabão, aqui e além. A lenha era pouca, mas estava muito arrumada e empilhada de baixo do lar. A cozinha dava para a sala, por uma porta desengonçada que quase mal abria ou fechava. Era na sala que se sentavam à noite, à luz duma candeia alimentada a enxúndia de galinha, José Eduardo à espera do sono e a irmã a remendar uma outra peça de roupa ou a tricotar lã para fazer um par de meias. Era na sala também que estavam duas barras, sendo que uma delas, onde dormia a irmã, estava isolada do resto da sala por um lençol branco, preso aos tirantes. O piso inferior, outrora palheiro de gado, tinha apenas a função de nitreira, com uma caneca de madeira num dos cantos.

José Eduardo era um homem de avançada idade e diabético, pelo que já não podia nem conseguia trabalhar. Era a irmã, mais nova dois ou três anos, mas mais rija e robusta, que ia buscar umas pequenas gavelas de lenha e que trabalhava os poucos campos que tinham e que, embora parcamente, lhe iam garantindo uma mísera subsistência, juntamente com a esmola que um ou outro vizinho lhes dava. Parentes que os ajudassem, não os tinham e se outros havia não se interessavam por eles, nem os ajudavam, que permaneciam ali, sós, cercados de miséria, de limitações, de falta de tudo. Enquanto a irmã atarefada nas lides dos campos ou nos afazeres de casa, José Eduardo, amparado a uma bengala, descia a Fontinha vagarosa e lentamente, parando vezes sem conta para descansar. Vinha sentar-se à Praça, para dar dois dedos de conversa com os da sua idade, para recordar tempos de outrora e para gozar o único prazer que lhe era dado usufruir, naquele seu mundo de miséria, de dor, de sofrimento, de limitações e de ausências: mascar tabaco. José Eduardo era dos poucos homens que na Fajã Grande, no início da década de cinquenta, ainda mascavam tabaco. Para além do embrulho do tabaco, pronto a mastigar, enfiado num bolso, José Eduardo trazia sempre consigo, no outro bolso, um frasquinho de bicarbonato de sódio, o único “remédio” que tomava para fazer face aos males de que padecia, frutos da insuficiência renal que os diabetes lhe haviam causado.

José Eduardo era um homem simples, bom, educado, honesto e humilde. Não se metia na vida dos outros, não ofendia ninguém, não intrigava, nem enveredava por mexeriquices ou confusões. Ocupava-se com a sua vida, coma sua doença e com os seus problemas que não eram poucos. Por vezes, não tendo com quem conversar ficava sozinho à Praça, sentada na banqueta da empena da loja do Senhor Roberto, com a bengala entre as pernas, as mãos pousadas sobre os joelhos, pensativo, muito pensativo.

Curiosamente e porque nasceu e viveu pobre, nunca tendo apoio médico na doença, nem sequer a alimentação mais adequada, este homem, na Fajã Grande, nunca foi tratado por “senhor”, nem se quer por “Ti”, uma simpática e meiga forma de tratar e respeitar os homens mais velhos, os homens da idade de José Eduardo, mas talvez e apenas os que tinham sido mais bafejados pela sorte.

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publicado por picodavigia2 às 09:38





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