PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MAE E FILHA
“Mãe e Filha” é um outro poema romanceado que integra o património cultural da Fajã Grande e é uma das catorze trovas apresentadas por Pedro da Silveira na “Revista Lusitana” (Nova Série), número 7, em 1986. Este e outros textos eram contados oralmente aos serões pelos nossos avós e por outras pessoas mais antigas e assim se foram transmitindo de geração em geração. Eu próprio me lembro de o ouvir contar, embora nunca tenha decorado o texto.
Segundo Pedro da Silveira, o rimance “Mãe e Filha” foi-lhe recitado, na Fajã Grande, em Julho de 1942, por José Inácio Mateus. Este ancião havia nascido em 1879 e era filho de José Inácio Mateus e Maria Lucinda, tendo afirmado, naquela altura, com 63 anos de idade, que ouvia contar aquele rimance aos serões, quando era rapaz. Acredita Pedro da Silveira que se trata de um texto construído nos Açores, e muito provavelmente baseado num facto real, acontecido numa das ilhas e que, posteriormente, se foi transmitindo também a outras.
«Margarida anda p’ra dentro, não te torno a chamar;
Com esta já são três vezes, são horas de vir’s jantar.»
«Sejam três ou sejam quatro, sejam as que a mãe quiser;
Agora nã le dou oividos, que já sou ua mulher.»
«Muito cedo, minha filha, já te queres governar;
Ainda és muito novinha, para assim puder’s falar.»
«Tenho quinze anos de idade, c’mamã deve saber,
E a mãe tinha catorze, quando se foi arreceber.»
«Ainda nã nos tinha feito, confesso esse pecado,
Mas tinha bastante juízo e o teu é muito vendado.»
«Ai, ai, ai, deixa-me rir, não por ter essa vontade;
Qual de nós terá mais juízo se for a falar a verdade.»
«Atrevida, lambareira, já te não posso aturar!
Porque nã vinheste logo que te chamei para jantar?»
«Eu bem sei que é minha mãe, presto-lhe mil atenções;
Só nã quero que me chame, naquelas ocasiões.»
«Te protesto, Margarida, do teu namoro acabar;
Tu és muito leviana, nã ‘stou para te vigiar.»
«Não preciso de vigias, que eu sei bem m’acautelar.
Soibesse pai certas cousas, tinha mais que vigiar.»
«Senhor Deus, que estais dizendo? Dou-te pancadas sem fim,
Tu é que vais ser o causo de teu pai se afastar de mim.»
«Talvez nã chegue a tanto, mas vai ser forte merenda;
Eu sei que a nossa casa percisa levar emenda.»
Nã sei que emenda sará, nã faço coisas mal feitas;
Eu é que devo d’ajustar contigo contas direitas.»
«Contas que tenha a fazer, faça-mas já sin demora;
Que quer o compadre daqui, quando pai se vai embora?»
«Com maldade isso não é, teu pai de mim é respeitado;
Nã vês qu’é nosso compadre e temos medo do pecado.»
«Ai quantas e quantas vezes me ponho a escutar,
Oiço falinhas de boca, sinto beijos a stralar.»
«Visto que tens descoberto, o segredo da maldade,
Continua o teu namoro, dou-te toda a liberdade.»
Estavam nesta porfia, o marido a entrar,
«Entra home, cá pra dentro, estava em ti a pensar.»
«Espera-me, desavergonhada, que o teu pensar não é mau;
Vou dar-te a recompensa com este pedaço de pau.»
«Aqui del’rei, quim m’acode, meu marido quer-me matar;
Talvez que o meu compadre esteja m’ouvindo a gritar.»
Foi tanta a pancadaria, pose-l’o corpo nua lama;
Esteve a malvada mulher más de três meses de cama.
«Nenhuns remédios tomou», dezia o povo da ilha;
«Olhem que mãe era aquela, conselhos que dava à filha.»,