PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O DR FREITAS PIMENTEL
Era eu ainda criança quando me desloquei pela primeira vez às Lajes, com o objectivo de ir buscar uma encomenda vinda da América. Fi-lo acompanhado e com uma dupla e incontida alegria. Por uma lado tinha a oportunidade de, pela primeira vez, ver, apreciar e percorrer as ruas de uma vila, que eu cuidava ser algo de muito grandioso e imponente e, por outro, animava-me a esperança de ter umas roupinhas novas e, eventualmente, um ou outro brinquedo já gasto e usado ou, simplesmente, uma esferográfica sem tinta, vinda na “saca” da América.
Nessa altura, ainda não havia estrada a ligar a Fajã Grande às Lajes, pelo que o trajecto, entre as duas localidades, era feito a pé por inteiro, atravessando a ilha de lés-a-lés, percorrendo veredas e atalhos, saltando grotas e ribeiras, subindo montes e rochas, descendo ladeiras e aclives e, por vezes, atravessando relvas e pastagens, à mistura com vacas e bezerros, a fim de encurtar distâncias e aliviar percursos. Eram quatro horas de viagem cansativa e fatigante, mas alegre e folgazona. A certa altura, cheio de sede e a arfar fadiga, bebi água em sítio onde muito provavelmente esta estaria infectada. Passados alguns dias fui acometido de febres muito altas, com a boca inchadíssima e num estado lastimável, pelo que permanecia de cama, inerte, sem poder comer o que quer que fosse. Um enorme sofrimento para mim e uma atribulada angústia para os que me rodeavam. Uma tragédia! Meu pai, aflito, nem sabia o que fazer. Na Fajã Grande não havia médico e levar-me a santa Cruz era de todo impossível, devido à distância, à falta de transporte e ao meu estado de extrema fraqueza e acentuada debilidade.
Por feliz coincidência, nesses dias, o senhor Doutor Freitas Pimentel, à altura Governador Civil do Distrito da Horta, realizou uma visita oficial à Fajã Grande, viajando num gasolina, desde as Lajes. Recebido apoteoticamente em cima do Cais, Sua Excelência, acompanhado da sua comitiva, na qual já se incluíam as autoridades da ilha, dirigiu-se, para a Casa do Espírito Santo de Cima, apinhada de gente, onde lhe foram dadas as boas vindas e feitos os discursos. Meu pai sabia que o Senhor Governador Civil também era médico. Aguardou serenamente que todo este cerimonial se realizasse e, quando se apercebeu de que o mesmo se aproximava do fim, correu a casa, embrulhou-me num cobertor e trouxe-me ao colo até à Casa do Espírito Santo. Furando por entre a multidão, ludibriando os seguranças e resistindo à oposição de alguns membros da comitiva, aproximou-se do Dr Freitas Pimentel e solicitou-lhe que, por alma dos seus, me visse, me observasse e me receitasse algum remédio, ao mesmo tempo que me desembrulhava do cobertor.
O Dr Freitas Pimentel, apercebendo-se da gravidade do meu estado de saúde, de imediato, suspendeu a sua actividade de Governador Civil e solicitou ao seu secretário que lhe trouxesse uma pasta, donde retirou diversos instrumentos de diagnóstico médico. Observou-me, mediu-me a temperatura, auscultou-me e abriu-me a boca com uma espátula. De seguida, acalmou o meu progenitor, dizendo-lhe que eu tinha um gravíssimo ataque de piorreia mas que tudo se iria resolver. Receitou-me uma valente dose de penicilina, alguns comprimidos e um desinfectante oral, sugerindo que as injecções me fossem aplicadas o mais rapidamente possível.
Meu pai voltou a embrulhar-me no cobertor e perguntou quanto era a consulta. O Dr Freitas Pimentel, esboçou um sorriso, deu-lhe uma leve palmada nas costas e disse-lhe apenas:
- Vá depressa, homem. Vá depressa a Santa Cruz ou às Lajes comprar as injecções, que as não há aqui na Fajã.
Cumpriram-se com rigor as prescrições médicas e, alguns dias depois, eu tinha-me curado por completo e estava são que nem um pero e meu pai aliviado.
Passaram-se mutos anos, sem que nunca mais visse o dr Freitas Pimental e lhe pudesse agradecer aquela cura milagrosa que ele, em mim, havia operado. Certo dia, porém, ao embarcar no aeroporto da Horta, dei com ele, só, abandonado, triste e melancólico, num canto da sala de espera. Cuidei que era a altura de lhe agradecer o que ele, há muitos anos, fizera por mim. Com alguma hesitação, aproximei-me, cumprimentei-o e apresentei-me, recordando o episódio de há muitos anos em que ele me havia curado. Que se lembrava muito bem das suas idas à Fajã Grande, mas não se lembrava de me ter tratado. Que procurara sempre ajudar a todos, mesmo quando lhe solicitavam cuidados médicos. Que nunca se recusara a tratar um doente e que sempre o fizera, sobretudo, naquelas localidades onde, na altura, não havia médico.
Agradeci-lhe mais uma vez e despedi-me. Para espanto meu, o antigo Governador Civil da Horta disse-me:
- Muito obrigado por ter vindo falar comigo!