PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NOITE DE NATAL
A noite estava fria e escura. Das encostas do Pico da Vigia e do Outeiro desciam sibilos de vento, míticos e sonantes, que se diluíam sobre os telhados das velhas casas da Fajã, perdendo-se na imensidade escura do Oceano. No ar, pairava um cheiro a canela e um perfume de hortelã e, das janelas semicerradas das pequenas habitações, saía uma luz trémula, baça e insegura. As ruas eram um deserto escuro e quase terrificante.
Na torre da igreja, os sinos haviam, há pouco, anunciado a missa do galo. Esperavam-se, agora, as três badaladas, indicadoras da aproximação da hora. E estas não se fizeram esperar. Logo que soaram na velha torre, sobrepondo-se aos sibilos angustiantes do vento e ao bramido roufenho do mar, como que misteriosamente, de todas as portas, começaram a sair vultos negros, inseguros e indefinidos. Enrolados em roupas grossas, tapavam a cabeça com mantas ou bonés, amparavam-se à incerteza, balouçavam-se no escuro. Uns, seguiam em pequenos ranchos, transportando lanternas de vidro tisnado e luz amarelada, baça e trémula. Outros seguiam só, guiando-se no escuro, amparados a bordões e às paredes e muros dos pátios. Sincronamente, fechavam as portas e encaminhavam-se, para a igreja, situada no centro da freguesia.
Eu era um deles!... Dos mais pequenos, dos mais hesitantes e medrosos…
Era o primeiro Natal em que me fora reconhecido o direito de ir à missa do galo, o que, para mim significava a certeza de já ser um homenzinho. Por isso me preparara dignamente para tal evento. A roupa, apesar de pobre, era a melhor que tinha. Além disso, contrariamente ao habitual, ia calçado, o que me dava um ar de maior dignidade e me conferia uma importância desusada. O silêncio escuro da noite, apenas entrecortado pelo contínuo silvar do vento e pelo bater emaranhado dos sapatos nas pedras da calçada, porém, assustava-me.
Saíramos juntos de casa: meu pai, meus irmãos e eu. Porém, ao passarmos frente ao botequim do Aires, onde os homens, habitualmente passavam os serões e a cujo balcão alguns já estavam encostados, meu pai, assumidamente arredado das cerimónias religiosas e das celebrações litúrgicas, despediu-se de nós e ficou por ali, enquanto seguíamos num grupo que, a pouco e pouco, à medida que se aproximava da igreja, se avolumava e quase transformava em romaria.
Aquela noite, não apenas em minha casa, mas também em todas as da freguesia, fora diferente. De manhã, minha irmã Amélia matou um galo, depenou-o e fez-lhe vinha-d’alhos. A casa foi lavada de ponta a ponta, tarefa em que eu, contra a minha vontade, fui cúmplice. Passei a tarde a acarretar baldes e baldes de água, da fonte para casa. Um bom par de metros!... E os baldes eram pesadíssimos!... Era tal a dificuldade que tinha em fazê-lo, que, numa das viagens, uma das Silveiras, apiedando-se de mim, veio pôr-me o balde em casa. Que alívio! Pena ter sido só uma vez…
De tarde, minha irmã fez o arroz doce e polvilhou-o com canela. Cozeu um caldeirão de inhames e guisou o galo. À hora da ceia, sentámo-nos à mesa. Tudo era diferente, naquela noite. Sobre a toalha esbranquiçada, tilintavam pratos e talheres, contrariamente à habitual tigela de sopas de pão de milho, por vezes bolorento, e leite. Aos inhames, muito quentinhos, a fumegar, juntava-se, em cada prato, um pedaço do galo, acompanhado dum molho aromático, muito bem temperado. Depois o arroz doce, muito amarelado, salpicado com canela. E logo um prato a cada um! Cada qual poderia saboreá-lo, ali, inteirinho, ou então, comer apenas metade e guardar o resto para o dia seguinte:
- Guardá-lo na amassaria é um risco enorme – sentenciava o Alípio – É que o lambão do Justino, levantando-se, durante a noite, limpa tudo o que lhe aparecer pela frente.
Pelo sim pelo não, todos, seguindo a sugestão do Alípio, optámos por limpar, na íntegra, o pratinho do arroz doce. Ninguém quis arriscar. Comê-lo inteirinho era jogar pelo seguro… No dia seguinte se veria…
Ao lado, num dos cantos da sala, estendia-se um grande presépio. Para além da gruta, com as figurinhas, possuía casas, caminhos, ribeiras, lagos,montes, ovelhas, pastores, uma igreja, um anjo e uma estrela grande e brilhante. Num dos cantos o sumptuoso palácio de Herodes e no outro a humilde casa de Barbearias, onde São José fora pedir lume, para fazer a fogueira e aquecer a água para lavar o Menino. Fora montado alguns dias antes, com a colaboração das tias da Fontinha, depois de muita hesitação e discussão:
- Quem está de luto, ainda por cima, pela mãe, não faz presépio – opinavam os mais conservadores.
- São crianças, ninguém leva a mal. E um presépio não é nenhuma festa. – decretavam os mais tolerantes.
Foi esta a opinião que prevaleceu e o presépio fez-se, mas sem a motivação habitual, pois era certo e sabido que o Menino Jesus, este ano, não traria nada, embora eu não percebesse bem porquê…
Era nisto que cismava quando transpusemos o tapa-vento. Entrámos no templo semi-escuro. Apenas a lâmpada do Santíssimo e, no altar-mor, algumas velas acesas. Esquivei-me de junto de minha irmã, de ir para os lugares das mulheres, e esgueirei-me, na companhia de meu tio Lúcio, para o coro.
O templo estava repleto de vultos negros, de tossidelas, de rouquidões, de arrastar de cadeiras, de bichanar de orações e de cheiro a velas a arder. De repente, tio Onofre, de opa vermelha, saindo apressadamente da sacristia tocou, veementemente, uma enorme campainha. Toda a gente se levantou e, de imediato, fez-se um enorme
silêncio. Padre Silvestre emergiu, de seguida, todo de branco, envergando, na cabeça, o barrete negro das três quinas, enquanto segurava na mão o cálice devidamente coberto com um véu esbranquiçado. Fazendo uma enorme genuflexão diante do altar-mor, tirou o barrete, preparou o altar do sacrifício, genuflectiu frente ao sacrário e bichanou, silenciosamente, as primeiras orações, em latim, às quais, apenas, tio Onofre respondia, sem se perceber nada ou coisa nenhuma:
O povo, de joelhos e contrito, batia com a mão direita no peito e inclinava, religiosamente, a cabeça...
Pouco depois, o padre aproximou-se do centro do altar, ergueu os braços e entoou:
- “Glo-ó-ó-ó-óó-ria in excelsis-sis De-e-e-o”.
Tio Onofre, já preparado, de campainhas em riste, começou a badalá-las prolongadamente com enorme intensidade, enquanto os sinos repicavam e a igreja se enchia de luz e de cor.
Passados estes momentos de êxtase, comemorativos do nascimento do Menino Jesus, a missa continuou, entre preces, louvores e orações. O povo levantava-se, sentava-se, ajoelhava e tornava a sentar-se, consoante as indicações da campainha de tio Onofre.
No fim, padre Silvestre, envergando a capa de asperges, dirigiu-se para o altar da Sr.a do Rosário. Era lá, na parte mais baixa, num gruta simulada, que estava o Menino, com a Virgem, São José, a vaca e o burro. Eram imagens enormes, comparadas com as do meu presépio.
O padre recebeu das mãos de tio Onofre o turíbulo fumegante. Deitou-lhe mais incenso, extraído da naveta com uma pequena colher e, balouçando-o diante das figuras do presépio, enchia a igreja de fumo, de odor e de louvor. Depois, tomou o Menino nas mãos, beijou-O e colocou-se no meio do cruzeiro, enquanto o povo formava uma enorme fila para também O beijar.
Eu não fui excepção. Também me incorporei, numa marcha lenta...
Ao aproximar-se a minha vez, verifiquei que tio Onofre segurava uma cesta, na qual, à medida que beijavam o Menino, a maioria dos fiéis deitava uma moeda.
De repente levei a mão a bolso. Lá estavam os vinte centavos que minha irmã me dera, para comprar um chocolate no dia seguinte. Apenas naquele dia e no da festa da Sra da Saúde gozava privilégio semelhante...
Sobre mim recaía a certeza de que, este ano, o Menino Jesus não nos traria nada. Todos confirmavam: - “A quem está de luto, ainda por cima pela mãe, o Menino Jesus não traz presentes.”
Eu, porém, achava esta razão tão indigna do Menino Jesus! Que culpa tinha eu de estar de luto!? Já não bastava ter ficado sem mãe!? E agora ficar sem prenda!? De repente, sem saber porquê, decidi negociar com o Menino. Preferia ficar sem a moeda, não comer o chocolate no dia de Natal, mas sentir a alegria de chegar a casa e ter uma prenda junto do presépio!... Disso não podia abdicar!... E depois dizer ao Câncio, ao Rodrigues e a tantos outros, que não tivera nada!?...Não podia ser...
Hesitei!... Levei a mão ao bolso, senti a moeda fria. Tirei-a, olhei-a e voltei a guardá-la no bolso e a hesitar... A minha vez de beijar o Menino, no entanto, aproximava-se... E eu não conseguia decidir!...Hesitava e continuava a hesitar...
Porém, ao aproximar-me do padre, os meus olhos fixaram-se nos do Menino. Enchi-me de confiança e de uma enorme coragem, beijei-lhe um dos pezinhos, ao mesmo tempo que, levando a mão ao bolso e pegando novamente na moeda, deitava-a na cesta e fazia com Ele um contrato:
- Vou dar-te a moeda, mas tens que me dar um presente.
Terminada a cerimónia regressámos a casa. No adro as pessoas cumprimentavam-se e desejavam umas às outras, incondicionalmente:
- Bom Natal!... Bom Natal!...
Nós tivemos que nos esquivar à frente. Era-nos interdito, porque de luto, receber as boas-festas ou dá-las aos outros!...
Ao passar, de novo, em frente ao Aires, meu pai, sentindo a nossa presença, juntou-se a nós...
Chegámos a casa! Dirigi-me para a sala, numa correria louca, na esperança de saber se o Menino Jesus fora fiel ao nosso contrato...
E não é que foi!... Lá estava, junto à gruta, um enorme embrulho. Fui eu que o abri! Eram figos passados!...Tantos figos passados!...
Sentámo-nos todos à mesa da cozinha e comemo-los com pão. Que maravilha! Valera a pena hipotecar os vinte centavos, embora, nunca o tenha confessado a ninguém.
...
Só algum tempo depois, soube que o Aires vendia figos passados no botequim e que meu pai, a propósito de tratar das vacas, tinha vindo a casa, durante a missa do galo.