PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A FURNA
Quando eu era criança,
Havia (ali, para os lados do Caneiro do Porto Velho),
Encastoada entre os rochedos negros do baixio,
Uma furna,
Que imaginava minha.
Naquela furna eu me refugiava,
Nela me escondia,
Naquela furna eu sonhava.
Sonhava que seria marinheiro,
Viajando em barcos de espuma branca,
Na demanda de terras distantes,
Povoados de castelos de gelo
E de cidades doiradas.
Atracava em portos com chaminés sem fumo
A balizarem o clarear das madrugadas.
Estivadores perdidos em neblinas!
Sonhava que seria pastor de ovelhas,
Blocos de gelo fumegante,
Nas longínquas pastagens da serra Nevada,
Como meu bisavô,
Cajado em punho,
Atento aos lobos, aos ladrões e aos índios.
Combatendo ursos e pumas,
Que sem tréguas,
Se atiravam ao odor idílico das ovelhas.
Lobos famintos em festivais de desejos.
Ou então sonhava que seria peregrino,
Caminhante solitário,
Perdido em terras distantes,
Salvo por princesas, vestidas de púrpura
Com diademas brilhantes a encimar-lhes o rosto.
Recolhiam-me em meigos requebros
E depositavam-me em salões perfumados com alabastro.
Espelhos de cristal em paredes de marfim!
Um dia cresci
E
Abandonei a furna.
Ela ficou deserta!
Ninguém, mais se refugiou naquela furna.
Já ninguém nela se abriga.
Pior…
Ninguém ali se esconde
Para sonhar
Agora,
Tarde,
Muito tarde,
Regresso.
(O Caneiro foi transformado em plataforma de cimento!)
A furna ainda ali está,
Carcomida,
Deserta,
Abandonada,
Triste e solitária.
Jaz em musgos,
Sem sonhos,
Como se estivesse morta,
Perdida entre o vai e vem das marés.
A furna,
A furna que imaginava minha,
Onde me refugiava outrora,
Hoje,
É um buraco desolado, na rocha negra do baixio..