PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
NO ESTRIBO DO ELÉCTRICO
(UM TEXTO DE ALTINO TOJAL)
No estribo do eléctrico parado, o rapazinho espreita avidamente para dentro.
- Pst! – chama, a medo.
Tem de repetir: pst!, e depois pst! e ainda pst!.
- Que queres? – indaga com enfado o cobrador, homenzarrão severo de bigodinho já grisalho.
Pode fazer o obséquio de chegar aqui?
Cobrador pesadamente aparafusado ao chão, a meio do eléctrico. Lapija algarismos numa agenda.
Arrastando as toscas chancas blindadas, o rapazinho acerca-se timidamente por entre os passageiros sentados, de gorra na mão, como se entrasse na igreja e o cobrador fosse Deus.
- Que queres?
- Esse eléctrico passa ao Hospital?
- Passa.
- E quanto é daqui inté lá? – As faces macilentas do rapazinho tingem-se de vermelho vivo. O cobrador guarda a agenda e o lápis:
- Vinte e cinco tostões ou cinco coroas, como te der mais jeito.
De olhos baixos, o rapazinho volteia a gorra nos dedos:
- Faça o obséquio de me dar um bilhete de dez.
- Não há. Quinze é o mínimo.
A voz do rapazinho mal se ouve – eco trémulo de eco trémulo:
- Só tenho este dinheiro. – E sem erguer os olhos estende duas moedas de cinco tostões.
- Se fizesse o obséquio de arranjar um de dez...
- Não há, rapaz, já te disse! Vai a pé! É fácil: segues sempre pelo trilho. Uma vez por outra vais perguntando aos polícias. Com essas chancas nos pés e essa língua na boca até podes dar a volta ao mundo. Eu, quando tinha a tua idade...
Sem olhar os passageiros, que sorriem, o rapazinho sai, apeia-se, enfia profundamente as mãos nos bolsos das calças (é crível que estejam rotos), erra no passeio de rosto vazio entre os cidadãos apressados.
- Conheço bem esta mafia – resmunga o cobrador. - As manhas são sempre as mesmas. Tim-tim!
O eléctrico arranca, aos sacolejos, ganha velocidade; e, picando um bilhete, o cobrador, embora a contragosto, olha demoradamente para trás.
Altino do Tojal, Os Putos