PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
TAMOEIROS, BROCHAS E ATRACAS
Para encangar quer uma junta de bois ou de vacas, quer apenas uma rês - neste caso dizia-se, na Fajã Grande, que se encangava de “canguinha” - para puxar carros, corções ou até para lavrar os campos, para além de outros, eram necessários três utensílios ou apetrechos importantes: o tamoeiro, a brocha e a atraca. Estes utensílios eram feitos de couro e fabricados na Fajã Grande, sendo que cada agricultor praticamente elaborava os que necessitava. Se o não conseguisse fazer, recorria a um amigo ou familiar mais habilidoso que lhos fizesse.
O couro era obtido das peles dos bovinos. Quer por altura da festa do Espírito Santo quer numa ou noutra ocasião mais solene, ou até a quando do cumprimento de um jantar em louvor do Senhor Espírito Santo, geralmente prometido por americanos, abatia-se uma ou outra rês, aproveitando-se a pele, que era curtida por processos artesanais muito antigos. Segundo Gaspar Frutuoso a ilha das Flores, no século XVI, já exportava, entre outros produtos, “couros de toda a sorte”. Ora se havia exportação era porque havia produção e se havia produção era porque havia arte e sabedoria e, pese embora essa exportação tenha decaído e até desaparecido, a arte e a sabedoria de curtir os couros naturalmente que se manteve e chegou, pelo menos às primeiras décadas do século passado. Era destes couros guardados e armazenados que se obtinham as tiras mais grossas para os tamoeiros e as mais finas para as broxas e para as atracas.
O tamoeiro era uma grossa e potente fita de couro com as pontas bem amarradas uma à outra, de forma que em caso algum se soltassem, formando um enorme circunferência e que era dobrada sobre as duas ranhuras centrais da canga, enfiando-se, no espaço que as dobras deixavam por baixo da canga, o cabeçalho do carro ou do corsão ou o temão do arado, onde se prendia com uma chavelha. Como as cangas na Fajã Grande, contrariamente a outras localidades nos Açores, tinham a barriga grossa, os tamoeiros eram realmente grandes e de tal maneira maleáveis que se podiam adaptar a cangas ou cabeçalhos mais ou menos delgados. Os tamoeiros usados nos carros eram necessariamente os maiores e mais fortes porque estes tinham o cabeçalho mais grosso e carregavam mais peso. Depois os dos corções e finalmente os dos arados, que eram, sem sombra de dúvida, os mais pequenos. Havia também tamoeiros para as cangas “de canguinha”, mas neste caso e como a canga era em forma de V invertido, e sem ranhuras mas com furos em ambos os lados, os tamoeiros eram obrigatoriamente dois, muito pequenos e delgados, geralmente feitos de corda e enfiados, permanentemente, nos respectivos orifícios de cada lado da canga.
As brochas também eram feitas de couro e serviam para apertar a parte baixa dos canzis das cangas, a fim de esta não escapulisse do pescoço do animal. Eram praticamente todas iguais, diferenciando-se apenas no tamanho. As tiras de couro eram bem mais finas e muito mais pequenas do que as do tamoeiro, mas também tinham a forma de uma circunferência. Amarradas as extremidades da tira, esta era muito bem enrolada, até obter uma forte consistência, ficando apenas nas extremidades duas alças ovais que se prendiam nas ranhuras dos canzis, mais abaixo ou mais acima, consoante a espessura do pescoço da rês.
Finalmente a atraca, que também era feita com uma tira de couro, servia para prender as duas reses pelos chifres. Na Fajã Grande quase todos bovinos usavam ponteiras de metal nos chifres. A atraca prendia-os pelas ponteiras, ligando o chifre direito do animal que trabalhava pela esquerda, ao esquerdo do que trabalhava pela direita e servia para secundar o efeito da canga, mantendo os animais unidos e a puxar em conjunto, a “puxar para dentro” como se dizia. Para fazer a atraca, abria-se com uma navalha uma fenda numa das extremidades da fita do couro, pela qual entrava a outra e prendia-se num dos chifres, dando, por fim um nó de duas voltas no chifre do outro animal, ou procedendo como na outra extremidade. Como a atraca era um utensílio um pouco mais requintado, embora necessário, muitos lavradores não a usavam simplesmente porque não a tinham. Neste caso prendiam as reses uma à outra, amarrando-lhes as cabeças com uma simples corda que, assim, de forma rudimentar e tosca, substituía a atraca. Situação semelhante se verificava quando os animais eram muito novos e ainda não tinham ponteiras nos chifres. A maioria dos animais estava tão habituada à canga, que presos apenas pela atraca, caminhavam lado a lado como se estivessem encangados.
Resta acrescentar que quando lavravam, se não estivessem habituadas ou ainda não soubessem trabalhar, necessitavam de alguém que fosse à sua frente, ensinando-as. Neste caso, em vez de prender os animais com a brocha, amarrava-se-lhes a cabeça com uma corda grande, com a qual eram conduzidas, como se fossem amarradas. Lavradores mais experientes substituíam essas cordas por uma outra muito grande, chamada “atiradeira” e mesmo agarrados à rabiça do arado iam puxando a corda e conduzindo a rês ou as reses por onde bem queriam e entendiam, obrigando-as inclusivamente a voltar no fim de cada rego, sem estar alguém a conduzi-las ou orientá-las.