PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PONTEIRAS E CAMPAINHAS
Na década de cinquenta, as vacas tinham um papel fundamental na economia fajãgrandense, dado que era exclusivamente da sua venda e, sobretudo, do leite que forneciam, que a maioria dos lavradores da Fajã Grande conseguia sobreviver e obter o dinheiro necessário para enfrentar as pequenas despesas que, dia a dia, era obrigado a fazer.
Essa a razão por que as vacas, na Fajã Grande, eram extremamente bem tratadas. Boa comida, resguardo nos palheiros, evitando que ficassem expostas quer ao rigor dos temporais quer ao calor excessivo dos dias de Verão e muitas outras atenções e cuidados.
No entanto e para além destes desvelos, muitos criadores de vacas ainda se preocupavam com a sua apresentação e com a sua beleza. Ter uma vaca bonita era uma espécie de objectivo fundamental, um desiderato a que ninguém se esquivava. Essa a razão por que quase todas as vacas na Fajã Grande usavam ponteiras e campainhas. Havia mesmo quem muito se preocupasse com a qualidade de um e outro destes apetrechos.
As ponteiras eram uma espécie de grossos anéis de metal amarelo, com rosca na parte interior e um bojo no exterior, que eram aparafusadas nas pontas dos chifres. Meter uma ponteira era fácil. Arredondava-se com uma navalha a ponta do dito cujo, enroscava-se com uma tarraxa a ponteira, cortando-se, finalmente a ponta excedente do chifre, para que ficasse remines com a ponteira. Para além de ornamento, as ponteiras também serviam para prender a atraca, quando os animais estavam encangados, e para não se feriram uns aos outros com as pontas agudas dos chifres.
As campainhas, por sua vez, eram objecto de grande atenção e de cuidados excessivos. Não eram chocalhos ou guizos, mas sim campainhas de metal amarelo, com sons extraordinariamente belos, harmoniosos, sonantes e muito agradáveis ao ouvido humano. As campainhas normalmente formavam pares, sendo uma com um som grave e outra com um som alto, formando um acorde perfeito. Havia campainhas de sino e de meia laranja. As primeiras eram poucas e chamavam-se assim porque o seu formato era igual ao dos sinos. As melhores e mais belas campainhas de sino da Fajã eram as do Gil e as de meu avô materno, umas e outras tinham sido trazidas da América. Mas a maioria das campainhas, porém, tinham a forma de meia laranja, eram compradas nas Lajes, havendo-as de tamanhos e de sons diferentes. Havia-as também em alumínio, mas com um som muito esquisito, usadas no gado alfeiro e muito raras. Os sons das campainhas eram tão específicos e diferentes uns dos outros de tal modo que se identificava o dono das vacas apenas pelos sons das campainhas. Regra geral a campainha com o som mais alto era colocada no animal mais lesto e que puxava a canga pelo lado direito e a de som mais grave no animal que trabalhava pela esquerda, mais lento e vais vagaroso.
As campainhas eram presas ao pescoço das vacas com uma fita de couro, uma espécie de cinto, chamado “estrape”. Relativamente perto da fivela, fazia-se um orifício no “estrape”, onde era introduzida a saliência superior da campainha, com um buraquinho, prendendo-a com um pedacinho de arame dobrado. A fivela, por razões mais estéticas do que funcionais, devia ficar, no pescoço do animal, sempre do lado de fora, relativamente ao que ele trabalhava, isto é, o animal que trabalhava à direita devia ter a fivela do seu lado direito e o outro do lado esquerdo.
Os animais, com alguma frequência, ou porque o “estrape” rebentasse, ou o arame se desprendesse, perdiam as campainhas. Outras vezes, simplesmente, caía-lhes o badalo. Essa a razão por que quando iam para as relvas do mato elas lhes eram retiradas, sendo, geralmente, substituídas por grandes e barulhentos chocalhos, que permitiam identificar o paradeiro de cada rês, sobretudo em dias de nevoeiro.
Confesso que sempre tive um fascínio por estas campainhas. Assim como eu, muitas outras crianças, nas suas brincadeiras, construíam-nas utilizando as tampas de laranjadas, depois de furadas e de lhes amarrar um fiozinho com um pequeno prego a servir de badalo. Hoje pergunto-me: onde estarão todas essas dezenas, diria mesmo centenas de campainhas de vaca existentes na Fajã Grande na década de cinquenta? Decerto que encheriam a sala de um museu, a que muito bem se poderia chamar “O museu das campainhas de vaca”.