PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
PAI CRISTIANO
Todos os dias quando, no início do serão, terminava a reza do Terço e as invocações da Ladainha de Nossa Senhora, minha avó rezava um Padre-Nosso por alma de cada um dos nossos familiares falecidos, incluindo nessa lista, para além de meu avô, minha mãe, um irmão da minha mãe que havia falecido em criança e a que ela chamava José do Céu, seus pais e sogros, um tal Pai Cristiano, que considerava como seu pai adoptivo. Além disso, e para além desta oração diária, repetidas vezes, recordava com saudade, estima e muita consideração este quase mítico personagem, que aos poucos ia adquirindo forma e ocupando um lugar de destaque, relevo e de grande simpatia e consideração no nosso flutuante e imaginário universo de crianças ingénuas e inexperientes mas dóceis, inocentes e gratas.
A estória afinal era muito simples, idílica e enternecedora. Minha avó ficou órfã de mãe quando tinha apenas dois anos. Dispôs-se o pai, a criá-la, juntamente com os outros rebentos, no meio de grandes dificuldades e muitas limitações.
Certo dia, estava minha avó, na inocência e candura dos seus dois anos de idade, a brincar no pátio em frente à sua casa, no lugar da Cuada, onde nascera, quando passou por ali o senhor José Cristiano, pessoa bondosa e de grande reputação na freguesia. Conhecedor da situação do meu bisavô e das dificuldades que ele tinha, uma vez que era viúvo e vivia sozinho, em criar tantos filhos, propôs-lhe que lhe entregasse a menina a ele, que por sua vez, vivia só com a esposa Margarida, pois o seu único filho, falecera, recentemente, de uma queda que dera na rocha. Levá-la-ia para a sua casa, tratá-la-ia como se fosse sua filha e havia de lhe dar tudo o que ela necessitasse, incluindo uma boa formação humana e religiosa.
Meu bisavô hesitou. Nem por nada deste mundo se queria separar da pequena. Mas como o senhor Cristiano insistisse e lhe prometesse que havia de vê-la e tê-la consigo sempre que quisesse e entendesse, meu bisavô, a abarrotar de trabalhos, canseiras, de consumições e de pobreza, com falta de tempo e penúria de cuidados para dedicar aos filhos, anuiu de bom grado, pese embora tentasse disfarçar a dor de alma e as saudades que havia de sentir quando se separasse definitivamente da sua pequerrucha. E lá veio a Joaquinazinha, da Cuada para a Fajã, passando a viver, alegre e feliz, na casa de José Cristiano, na Fontinha, tratando-o, desde menina e durante toda a vida, por “Pai Cristiano”.
José Cristiano Ramos, filho de Manuel Cristiano Ramos e de Margarida de Jesus, nascera na Fajã Grande, na altura ainda um lugar da freguesia das Fajãs, em 1838, tendo casado, na igreja paroquial da Fajã Grande, localidade recentemente erecta paróquia, em 4 de Janeiro de 1968, com Margarida Jacinta, filha de João Jacinto Rodrigues e Catarina Maria. Consta que na realidade era um homem bom, trabalhador, sério e honesto, de muita fé e temente a Deus, frequentando a igreja e assistindo à missa diariamente, sempre disposto a partilhar os seus bens com os mais pobres e a disponibilizar ajuda aos mais necessitados.
Consta, também, que sempre tratou muito bem a minha avó, como se de uma filha se tratasse, fazendo dela, depois da sua morte, a herdeira de todos seus bens, a qual também sempre se referia a ele com muita estima e gratidão, considerando-como um pai de verdade
Pai Cristiano faleceu repentinamente quando se encontrava a trabalhar numa terra que possuía num local chamado Cabeço da Rocha, lá para os lados da Silveirinha. Terá sido vítima de um ataque fulminante. Foi Ti’Antonho do Alagoeiro que naquele momento, andava a sachar milho no seu cerrado das Queimadas, a uns bons metros dali, o foi socorrer, mas infelizmente quando se acercou dele já não o pode ajudar. Quando chegou ao Cabeço da Rocha, encontrou-o sentado sobre uma pedra, mas já morto. Essa pedra foi guardada ali, por meu avô e mais tarde por meus tios, como testemunho vivo de um nobre e digno cidadão. Nos meus tempos de criança, ainda lá existia. Ti’Antonho do Alagoeiro, apenas se limitou a transportá-lo às costas, através de veredas e canadas, até ao caminho da Silveirinha, trazendo-o para casa e entregando o cadáver à família. Foi tão grande o esforço despendido que, sofrendo de uma hérnia, esta lhe rebentou durante a caminhada, o que, apesar de tudo, não o impediu de carregar o cadáver aos ombros e o trazer até a casa.
Minha avó, após a morte de Pai Cristiano, manteve sempre dele uma lembrança bem viva, pois para além de tudo o que contava e recordava, atribuiu a dois dos seus filhos, nascidos depois da morte do seu pai adoptivo, os nomes dele e da esposa - Cristiano e Margarida.