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UM SOLIPSISTA GIMNOSOFISTA

Sexta-feira, 03.01.14

Chegou numa manhã, cálida, fulva e etérea de Outono e era um viajante solipsista, misterioso e invulgar. Solipsista porque era filósofo e, vivendo em solidão absoluta, defendia o seguinte aforisma: “nada existe fora do pensamento individual, tudo aquilo que o ser humano julga perceber não passa de uma espécie de sonho que se tem transitoriamente”. Misterioso porque envolto em enigmas e incongruências transcendentes. Invulgar porque era, simplesmente um anão. Vinha de longe, de muito longe e cuidava que existia apenas um Eu que comanda o Mundo, que é controlado consciente ou inconscientemente pelo Ser. Devido a isso, a única certeza de existência que tinha era a de que o pensamento é instância psíquica que controla a vontade. O mundo ao redor é apenas um esboço virtual do que o Ser imagina. Além disso considerava que o corpo do próprio Ser era algo virtual, pois tudo é uma reprodução, uma vez que não se pode ter confiança nos sentidos mas apenas nos pensamentos, como fonte de certeza de existência.

Percorrera mares, andurriais e páramos, suportando tempestades e procelas, saltando montanhas de espuma e de submissão, sentando-se à sombra de árvores sem folhas e sem esperança, perdendo-se ininterruptamente em ilhas desertas e em oásis mistificados. Atravessara, com extenuante lucubração, um grande e tórrido deserto, com rios de fogo e pináculos de estranha adoração, onde se perdera e onde, simultaneamente, enlapara muitos dos seus sonhos e fantasias. Mas trazia consigo a experiência da liberdade, a fragrância da dignidade, a auréola da fraternidade, a estranheza da sublimidade e do amor, sobretudo do amor. Sonhava que as estrelas eram de prata, e que para além de cada oceano, havia sempre um outro mar. Ensinava que as nuvens quando se desfazem não pretendem apenas jorrar sobre os mortais a incomodidade da chuva, pelo contrário, solidificam o insustentável desmoronar da humanidade. Aprendera nos campos e nos bosques e estudara com as flores e os pássaros. Acolhia com sorriso as manhãs sombrias, escuras, enevoadas e chuvosas. Era amigo da esperança e das florestas. Pernoitava nos bosques, ao relento, dialogando com o destino e com a solidão. Alimentava-se do perfume das flores e dos frutos. Possuía um coração com aromas de alecrim e sabor a hortelã. Mas tinha um grande defeito: dependia total e exclusivamente do Sol, para quem olhava constantemente, sonhando poder, um dia, voar ao seu encontro.

Mais! Para além de solipsista também era gimnosofista, o anão. Pois vivia permanentemente nas florestas, abstraído das multidões, convivendo com a frescura e a mansidão dos bosques. Considerava a "noite" como a origem de todos os males e produtora de todas as limitações, e a "escuridão" a filha única da ignorância universal. Cuidava ele, solipsista e gimnosofista, que a fuga a estas maléficas divindades – noite e escuridão - se adquire através da sabedoria, filha da claridade, mas que permanece afastada do ser humano e quase inatingível pela sua mente, porque libertadora de sucessivas, contínuas e constantes migrações, e que consiste, apenas e simplesmente, na capacidade equívoca de fugir aos pesadelos escuros e tétricos da nossa existência atormentada. Isto apenas se consegue mediante um isolamento total e uma entrega às "hamadríades", ou seja, às ninfas dos bosques, que nascem simultaneamente com as árvores, nunca se desvinculando das mesmas, vivendo e morrendo com elas. A vida duma árvore ninfada ou duma ninfa arborizada é, no entanto, perene e infinita, porque umas e outras dependem da única fonte de vida do universo - o Sol. Por essa razão, o solipsista anão entendia, que as árvores nunca deviam ser destruídas, pois o aroma das suas folhas, o perfume das suas flores e o sumo dos seus frutos constituem o alimento primordial e único de todo a raça carracena, pelo que a vida depende, necessariamente e em último grau, da luz emanada pelo astro-rei. Este é um armazém infinito de poder e beleza, receptor tranquilizante de todas as inquietudes. Somente através dele é possível atingir a sublimação da beleza absoluta e, consequentemente, atingir a simplicidade. Assim toda e qualquer oposição à força e à beleza solar devia ser eliminada.

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publicado por picodavigia2 às 18:07





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