PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
A SALA DO SENHOR ERNESTO
A sala da casa de habitação do Senhor Ernesto, em Ponta Delgada, nos meus recuados tempos de criança, pese embora fosse típica da casa rural açoriana daquela altura, era dum tamanho descomunal, duma imponência impressionante e duma grandiosidade quase rara. Com uma porta de entrada, a comunicar com um enorme pátio, de pedra negra e carcomida pelo tempo e quatro janelas de guilhotina, com enormes vidros, separados uns dos outros por taliscas de madeira, pintadas de branco e fixados com massa de vidro esbranquiçada, tinha um ar soturno, emanava uma penumbra perturbante e exalava um cheiro bafiento e desconcertante. No interior, amplo e claro, a mobília tradicional: num canto, uma cómoda que continha, para além duma grande quantidade de fotos a antigas, um cadeeiro a petróleo e um oratório repleto de pequenas imagens de santos, com velas e luzinhas à volta e com pagelas nos bordos. Nas paredes, uma pintura do Sagrado Coração de Jesus e uma outra de Maria, um quadro de São Pedro a erguer as chaves do Céu e algumas fotos de homens de bigodes farfalhudos, trajes estranhos, com laços a apertar-lhe os pescoços e mulheres de mantinho na cabeça. Várias cadeiras ao redor da sala e num outro canto, um enorme cadeiral de vimes, no qual, habitualmente, estava sentado o dono da casa. Ao lado a esposa, a senhora Josefa, a dormitar, numa palidamente envernizada cadeira de balanço.
Embora, meu pai batesse de leve à porta, a senhora Josefa acordou. Um pouco espantada, chamou de imediato:
- Muda! Ó Muda! Parece que estão a bater à porta. Despacha-te mulher! Ai meu Sagrado Coração de Jesus! Esta Muda nunca me ouve.
- Ó mulher, como queres que ela te ouça se é surda? Vá lá tu abrir a porta… Anda lá.
Como meu pai continuasse a bater, embora levantando-se, a muito custo, a senhora Josefa veio abrir a porta, cramando impacientemente:
– Ai este meu reumatismo… Esperem que já lá vou!... E aquela Muda que está cada vez mais surda. E eu aqui já sem poder fazer nada e a ter que fazer tudo… O Sagrado Coração de Jesus tenha compaixão de mim. – E como meu pai continuasse a bater, ela caminhando na direcção da porta de entrada, lá ia suplicando: - Esperem!... Esperem! Jesus! Credo! Parece que querem rebentar a porta! Já lá vou. Louvado seja o Santíssimo Sacramento.
– Ó mulher, despacha-te e deixa-te de rezas… Só rezas e jaculatórias! Vá lá ver quem é.
Destrancando a porta e levantando-lhe o “picaporte”, dona Josefavoltou-se para o marido, admirada:
- Temos visitas! É gente da Fajã! É o teu amigo António, com um dos pequenos.
- Ó mulher, e tu de que estás à espera?! O meu amigo António!? Manda-o entrar imediatamente, que me custa levantar.
Meu pai entrou e eu, tímido e hesitante segui-o. Entrar ali, na sala do Senhor Ernesto, era como se entrasse uma igreja e o senhor Ernesto fosse Deus.