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ÁFRICA FRENTE E VERSO DE URBANO BETTENCOURT

Domingo, 05.01.14

Integrada no programa do festival de verão “Caisagosto 2012”, organizado pela Câmara Municipal de São Roque do Pico, teve lugar, no passado dia 26 de Junho a apresentação do livro “África frente e verso” de Urbano Bettencourt. O evento ocorreu na Biblioteca Municipal e contou com a presença do autor, estando a apresentação da obra a cargo de Carlos Alberto Machado. Ao longo da sessão foram lidos alguns textos do referido livro por Susana Moura e pelo próprio autor que também explicou, aos presentes, o contexto em que a maioria dos textos foi escrita, tendo como pano de fundo o cenário da guerra colonial, em África.

Urbano Bettencourt, natural da freguesia da Piedade, concelho das Lajes, ilha do Pico, é professor de Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e de Literatura Açoriana na Universidade dos Açores, está representado em várias antologias nacionais e estrangeiras. É autor de vasta obra, onde predominam a poesia e o ensaio literário. Publicou o seu primeiro livro, “Raiz de Mágoa”, em 1972, em Setúbal, altura em que leccionava naquela cidade. Seguiram-se “Ilhas”, em 1976, “Marinheiro com Residência Fixa”, 1980, “Naufrágios Inscrições”, 1987, “Algumas das Cidades”, 1995, “Lugares sombras e afectos”, e “Santo Amaro sobre o Mar”, 2005, e “Que Paisagem Apagarás”, 2010, para além de vários ensaios, uns publicados em livro, outros dispersos por revistas da especialidade, dentro e fora do país

Segundo o próprio autor, o livro agora apresentado, “África frente e verso” e que contém uma primeira parte intitulada “Recuperar o Tempo”, constituída por (13+1) poemas e uma segunda onde predominam textos de prosa-poética, “recupera os textos que ao longo de vários anos foi deixando nos seus livros, acrescidos de alguns inéditos, e nos quais a experiência da guerra repercute, sucessivamente refeita e transfigurada, agora a uma luz crua, e cruel também”. Trata-se, pois, de uma colectânea de textos cuja temática integrou o quotidiano mavórcio do próprio autor, nos primeiros anos da década de setenta do século passado, em plena guerra colonial, em Bissorã, (Guiné-Bissau) e que, de algum modo, revelam “os fantasmas de uma geração aflita” atulhada com a permanente e contínua ameaça do recrutamento para a guerra do Ultramar. É pois um livro “contaminado pela guerra” e no qual, por isso mesmo, talvez nos traga mais luz sobre o “verso” do que propriamente sobre a “frente” de uma África, massacrada, consternada, sofredora, com os perfumes tropicais e das bolanhas a misturarem-se com cheiro mefítico do enxofre e da pólvora, com sons dos batuques a silenciarem-se com os rebentamentos estrambólicos dos obuses, com os tiros acutilantes das Kalashes e com o trepidar lento e moroso dos Unimogs, com os sabores das noites frescas e dos frutos adocicados a cruzarem-se com os dissabores da tragédia permanente, com o colorido do entardecer e o “lilás violado em cada noite pelas bombas”, onde até as “baga-baga” se erguiam majestosas, altivas e imponentes nas suas perspectivas de gigante, no meio da savana, secularmente construídas por colónias de formigas e se confundiam com os soldados – “estátuas de sombras, trémulas e cansadas”. O verso e talvez até o reverso de uma África onde até a especificidade linguística dos falares fulas, mandingas, balantas e bijagós e o “manga de ronco” se apagam e amarfanham pelo palavreado obsceno das patrulhas militares, e as aguarelas florescentes das madrugadas africanas se obstroem pela recolha permanente e continua dos mortos em combate e dos caixões de chumbo guardados nas sacristias das igrejas, à espera de transporte para a Metrópole.

Por tudo isso e por muito mais, ainda bem que o “meu amor não veio à guerra”, à guerra do “verso” duma África, reprimida, torcida, e dorida, porque e para além de não provar a “agonia dos rios moribundos, derramando tédio nas horas magoadas” ilibar-se-ia da morte numa emboscada “entre o Uenquem e o Imboé” ou, talvez pior, do rebentamento de uma mina e do sucessivo ataque ao longo do famigerado “carreiro da morte”, numa das colunas geralmente atacadas e que por ali eram forçadas a circular, entre Cutiá para Mansabá, com destino a Farim, ou, quem sabe, até do massacre duma qualquer tabanca de nativos.

Todos os que como Urbano Bettencourt viveram o terror, a angústia, o medo, a aflição permanente e a imposição da guerra que não era sua e na qual se viram envolvidos involuntariamente e para onde foram conduzidos à força e que, além disso, embora sem o poder manifestar, já se opunham e condenavam a ideologia que a defendia, mantinha e incentivava, armazenaram dentro de si sentimentos de revolta permanente, momentos de sofrimento angustiante, imagens de tragédias terríveis, resultantes de um envolvimento contínuo, premente e destruidor, em ataques massivos, emboscadas permanentes, massacres arrasadores, em que tombavam colegas e amigos de um lado, homens e irmãos de outro. Mas nem todos, talvez mesmo poucos ou apenas alguns, os prestigiados, os assinalados pelas musas, os dotados com a beleza e a sublimidade da poesia e da escrita o souberam traduzir em palavras, sob a forma de poemas, como o fez Urbano Bettencourt, no livro “Africa frente e verso”. Como diria um conceituado crítico literário “África Frente e Verso….despeja força e sangue, raiva e amor… Faz parte de uma literatura cuja arte maior tem sido sempre a coragem de desconstruir os meandros submersos da nossa sociedade…”

 

Texto publicado no Pico da Vigia, em 03/08/12

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publicado por picodavigia2 às 10:46





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