PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
ÁFRICA FRENTE E VERSO DE URBANO BETTENCOURT
Integrada no programa do festival de verão “Caisagosto 2012”, organizado pela Câmara Municipal de São Roque do Pico, teve lugar, no passado dia 26 de Junho a apresentação do livro “África frente e verso” de Urbano Bettencourt. O evento ocorreu na Biblioteca Municipal e contou com a presença do autor, estando a apresentação da obra a cargo de Carlos Alberto Machado. Ao longo da sessão foram lidos alguns textos do referido livro por Susana Moura e pelo próprio autor que também explicou, aos presentes, o contexto em que a maioria dos textos foi escrita, tendo como pano de fundo o cenário da guerra colonial, em África.
Urbano Bettencourt, natural da freguesia da Piedade, concelho das Lajes, ilha do Pico, é professor de Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa e de Literatura Açoriana na Universidade dos Açores, está representado em várias antologias nacionais e estrangeiras. É autor de vasta obra, onde predominam a poesia e o ensaio literário. Publicou o seu primeiro livro, “Raiz de Mágoa”, em 1972, em Setúbal, altura em que leccionava naquela cidade. Seguiram-se “Ilhas”, em 1976, “Marinheiro com Residência Fixa”, 1980, “Naufrágios Inscrições”, 1987, “Algumas das Cidades”, 1995, “Lugares sombras e afectos”, e “Santo Amaro sobre o Mar”, 2005, e “Que Paisagem Apagarás”, 2010, para além de vários ensaios, uns publicados em livro, outros dispersos por revistas da especialidade, dentro e fora do país
Segundo o próprio autor, o livro agora apresentado, “África frente e verso” e que contém uma primeira parte intitulada “Recuperar o Tempo”, constituída por (13+1) poemas e uma segunda onde predominam textos de prosa-poética, “recupera os textos que ao longo de vários anos foi deixando nos seus livros, acrescidos de alguns inéditos, e nos quais a experiência da guerra repercute, sucessivamente refeita e transfigurada, agora a uma luz crua, e cruel também”. Trata-se, pois, de uma colectânea de textos cuja temática integrou o quotidiano mavórcio do próprio autor, nos primeiros anos da década de setenta do século passado, em plena guerra colonial, em Bissorã, (Guiné-Bissau) e que, de algum modo, revelam “os fantasmas de uma geração aflita” atulhada com a permanente e contínua ameaça do recrutamento para a guerra do Ultramar. É pois um livro “contaminado pela guerra” e no qual, por isso mesmo, talvez nos traga mais luz sobre o “verso” do que propriamente sobre a “frente” de uma África, massacrada, consternada, sofredora, com os perfumes tropicais e das bolanhas a misturarem-se com cheiro mefítico do enxofre e da pólvora, com sons dos batuques a silenciarem-se com os rebentamentos estrambólicos dos obuses, com os tiros acutilantes das Kalashes e com o trepidar lento e moroso dos Unimogs, com os sabores das noites frescas e dos frutos adocicados a cruzarem-se com os dissabores da tragédia permanente, com o colorido do entardecer e o “lilás violado em cada noite pelas bombas”, onde até as “baga-baga” se erguiam majestosas, altivas e imponentes nas suas perspectivas de gigante, no meio da savana, secularmente construídas por colónias de formigas e se confundiam com os soldados – “estátuas de sombras, trémulas e cansadas”. O verso e talvez até o reverso de uma África onde até a especificidade linguística dos falares fulas, mandingas, balantas e bijagós e o “manga de ronco” se apagam e amarfanham pelo palavreado obsceno das patrulhas militares, e as aguarelas florescentes das madrugadas africanas se obstroem pela recolha permanente e continua dos mortos em combate e dos caixões de chumbo guardados nas sacristias das igrejas, à espera de transporte para a Metrópole.
Por tudo isso e por muito mais, ainda bem que o “meu amor não veio à guerra”, à guerra do “verso” duma África, reprimida, torcida, e dorida, porque e para além de não provar a “agonia dos rios moribundos, derramando tédio nas horas magoadas” ilibar-se-ia da morte numa emboscada “entre o Uenquem e o Imboé” ou, talvez pior, do rebentamento de uma mina e do sucessivo ataque ao longo do famigerado “carreiro da morte”, numa das colunas geralmente atacadas e que por ali eram forçadas a circular, entre Cutiá para Mansabá, com destino a Farim, ou, quem sabe, até do massacre duma qualquer tabanca de nativos.
Todos os que como Urbano Bettencourt viveram o terror, a angústia, o medo, a aflição permanente e a imposição da guerra que não era sua e na qual se viram envolvidos involuntariamente e para onde foram conduzidos à força e que, além disso, embora sem o poder manifestar, já se opunham e condenavam a ideologia que a defendia, mantinha e incentivava, armazenaram dentro de si sentimentos de revolta permanente, momentos de sofrimento angustiante, imagens de tragédias terríveis, resultantes de um envolvimento contínuo, premente e destruidor, em ataques massivos, emboscadas permanentes, massacres arrasadores, em que tombavam colegas e amigos de um lado, homens e irmãos de outro. Mas nem todos, talvez mesmo poucos ou apenas alguns, os prestigiados, os assinalados pelas musas, os dotados com a beleza e a sublimidade da poesia e da escrita o souberam traduzir em palavras, sob a forma de poemas, como o fez Urbano Bettencourt, no livro “Africa frente e verso”. Como diria um conceituado crítico literário “África Frente e Verso….despeja força e sangue, raiva e amor… Faz parte de uma literatura cuja arte maior tem sido sempre a coragem de desconstruir os meandros submersos da nossa sociedade…”
Texto publicado no Pico da Vigia, em 03/08/12