PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O COVEIRO
Nos anos cinquenta, a Fajã Grande era terra pequena, teria cerca de oitocentas habitantes, incluindo neste número, também, os moradores dos lugares da Ponta e da Cuada. Isto significa que, naquela altura, morreriam, em média, cerca de seis a dez pessoas por ano. A freguesia, possuía um cemitério, relativamente extenso para tão reduzida população e que estava divido em duas partes: o cemitério de baixo e o de cima. Nos anos cinquenta era neste último que estavam a ser abertas as sepulturas para enterrar os que iam falecendo. Na década seguinte seria o cemitério de baixo a ser utilizado com o mesmo fim.
Como todo e qualquer cemitério, o da Fajã também precisava de um coveiro, tarefa, na altura pouco desejada, porquanto aquele lugar, apesar de sagrado, impunha um certo respeito e metia algum medo, em função de infundadas crenças, mitos e superstições existentes na freguesia, ou até de “estórias” e lendas que se contavam, na altura, sobre a morte e a vida para além desta. Mas a função do coveiro, não se limitava ao abrir e fechar das sepulturas quando falecia alguém. Implicava também o arranjo, a limpeza, a conservação, o asseio e até o embelezamento daquele campo santo e sagrado, onde jaziam os nossos antepassados.
Na Fajã Grande, nos anos cinquenta, o coveiro era o João Augusto, um homem baixo, forte, a rondar os sessenta anos, bondoso, destemido, corajoso, sem medo de nada ou de coisa nenhuma, mas muito simples, bem-intencionado, um pouco inocente no relacionamento com os outros e até nas graçolas que lhe diziam, no gozo que simulavam fazer-lhe ou nas partidas que tentavam pregar-lhe. Como era um homem inocente e sem maldade, por vezes, era vítima da bazófia de alguns mais atrevidotes e malévolos.
O João Augusto morava nas Courelas, logo no início da rua, numa casa a seguir à da senhora Alvina e era pela idade de meu pai de quem também era amigo, porquanto se assemelhavam nos seus feitios e hábitos.
Mas o João Augusto não se dedicava ao ofício de coveiro em termos de exclusividade. Também trabalhava nos campos e criava gado como todos os outros habitantes da freguesia, incluindo aqueles, que desempenhavam outras funções ou disponibilizavam serviços na freguesia, as quais, por si só e com excepção do comércio, não garantiam a sobrevivência de quem a elas se dedicava.
Casou com uma senhora da Ponta e teve quatro filhos; o Ângelo, o Armando, a Maria e a Aldina. As filhas cedo abandonaram a ilha: a Maria para um convento e a Aldina para estudar no Colégio de Santo António, na cidade da Horta. Apenas os filhos ficaram na Fajã trabalhando e ajudando o pai no cultivo dos campos e na criação do gado. Mais tarde contraíram matrimónio. O Ângelo, mais alegre e folgazão, casou com a minha prima Maria do Céu e o Armando, mais pacato e prudente, com uma filha do Francisquinho da Cuada, acabando ambos por emigrar para os Estados Unidos em busca de maior sorte e melhor fortuna.
João Augusto, o coveiro da Fajã, uma figura inesquecível, inquestionável, quase histórica, porque desempenhou aquele importante e significativo cargo na freguesia, durante muitos anos e foi talvez o mais emblemático representante dos coveiros fajãgrandenses de sempre.