PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
QUEIXA SEM REPRIMENDA
Eu não ainda não tinha chegado a casa. Fora, como habitualmente, levar as vacas ao Outeiro Grande e, no regresso, desci pela canada que dava para Cabaceira, escapulindo pelo Delgado. Abdicava do habitual e já fastidioso trajecto do Covão e ia saciar-me nas maças da horta da minha avó, mesmo ali, a seguir ao largo de Santo António, com portão de entrada, precisamente no enfiamento daquela canada.
A Rosa Maiata, ou porque não contivesse as suas emoções por mais tempo ou porque adivinhasse a minha ausência, não esteve com meias medidas e toca a batucar à porta da cozinha da minha casa, com meu pai e meus irmãos já abancados à mesa.
Meu pai, que se sentava à mesa da cozinha sempre de costas para a porta da frente, voltou-se e dando de caras com a estranha e indesejável intrusa que de tão excitada que estava quase nem o ouviu, exclamou:
- Ah! És tu, Rosa! Entra, entra.
Como a Rosa permanecesse queda e muda, o meu progenitor repetiu:
- Entra, mulher. Já te disse que entres.
- Nem é preciso entrar que não tenho tempo. – Exclamou a Maiata e, voltando-se para minha irmã que se levantara para lhe abrir a porta, segurando-a, semiaberta, acrescentou: - Não me vou demorar. É só uma palavrinha com teu pai.
Que me queres, Rosa? - Perguntou o meu progenitor e repetiu – O que me queres?
Continuando estancada à porta, como se tivesse algum receio de entrar, a Rosa Maiata, numa espécie de aflição exagerada, tentava explicar: – Antonho, passaste há pouco tempo na minha do Pico? Junto à ramada das Faias do Norte tinha um eito com uma grandeza de morangos. Não sei se chegaste a vê-los? Era uma lindeza! Sabes o que aconteceu?
Meu pai retorquiu:
- Não sei, Rosa, não sei. Nem percebo o que tenho a ver com isso.
De repente, sem que ninguém contasse com isso, a Rosa explodiu, numa exaltada indignação:
- Ai não tens, não! Vamos ver, vamos ver! Pois olha, foi a Maria Fangueiro que me veio contar tim-tim-por-tim, que o teu Álvaro fez. Aquele “malcriadão” vinha com a ovelha do Canto do Areal. A maldita fugiu-lhe, foi para cima dos morangos e deu-me cabo deles todos. E agora? Quem mos paga? E tu dizes que não tens nada a ver com isto!
Minha irmã tentando por água na fervura e alhear à contestação, lá ia interpondo.
- Mas a senhora Rosa sabe bem como é a Maria Fangueiro… Uma grande mexeriqueira e, além disso, inventa muitas coisas…
Meu pai, mantendo a calma inicial, perguntava:
- Rosa. Viste alguma coisa? Viste lá, alguém meu? Não viste, pois não? – E perante o silêncio comprometedor da queixosa concluía: - Então não podes acreditar no que se diz. Diz-se tanta mentira nesta freguesia…
- Ah! É assim. É isso que pensas? Pois vou fazer queixa ao regedor.- E saiu porta fora como se um rastilho lhe pegasse, proferindo imprecações, enquanto meu pai levantando-se e vindo fechar a porta, lhe atirava sem que ela já o ouvisse: - Vai-te queixar ao diabo-que-te-carregue.
Quando cheguei a casa e entrei na cozinha, ainda todos estavam sentados à mesa, envolvidos numa acesa discussão. Minha irmã queixando-se da “mingueza” de leite que ficava em casa, que nem chegava para fazer um queijo, meu pai a consumir-se com a Cooperativa que há três meses não pagava e meu irmão Justino a propor que, por isso mesmo, o melhor era deixarmos a Cooperativa e mudarmo-nos para a Máquina de Cima. E concluía:
- O Martins e Rebelo paga todos os meses e paga mais cinco centavos por litro do que a Máquina de Baixo. Muitos já se passaram para a de Cima
Meu pai decidido retorquia;
- Isso é que nunca!... Sempre estive na Cooperativa e dela nunca hei-de sair. O Martins e Rebelo o que quer, é destruir a Cooperativa. Paga mais agora e depois quando a Cooperativa for abaixo, vai pagar o leite ao preço que quiser. Os que mudam estão a vender-se, estão a destruir a Cooperativa por cinco ou dez centavos. E o trabalho e sacrifício que foi para criá-la!... Eu fui um dos fundadores e de lá nunca hei-de sair. Para esse ladrão do Martins & Rebelo é que nunca vou. Prefiro fazer queijos em casa ou dar o leite inteiro aos bezerros e ao porco.
E foi esta bendita, acesa e emotiva discussão sobre as debilidades, fraquezas e vicissitudes dos lacticínios na ilha das Flores que, fazendo meu pai esquecer a queixa da Rosa Maiato, me livrou duma boa reprimenda.