PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
E A MONTANHA COBRIU-SE COM UM MANTO DE ESPLENDOR
O Pico, talvez sem o saber ou até sem o querer ou sequer o desejar, envolveu-se, novamente, durante uns dias, em mais uma roda-viva contínua, num rodopio permanente e num reboliço desmesurado.
O Pico recebeu uma visita inédita, inesquecível, inebriante, ternurenta e benfazeja. Um jacto de ternura e simplicidade a irrigar a ilha e a alcantilar a lava enrijecida pelo tempo e decalcada, outrora, pelo trilhar permanente de pés descalços ou de albarcas frágeis e sibilantes. Uma golfada de espuma e graciosidade, a abrir-se em cachão e a tingir o oceano com o perfume inebriante da cana roca e da madre silva. Uma auréola de luminosidade e alegria, a explodir espontânea e doce e a cobrir a montanha com um manto de safiras e diademas.
Ela chegou! Inicialmente tímida e hesitante porque a montanha ainda estava imersa numa letargia irreconhecível e num sono de profundo recolhimento. Mas o Pico despertou, de imediato, com a sua chegada e logo avisou a montanha, implorando-lhe que se cobrisse de luz, de alegria, de graça, de esperança, de sumptuosidade e de nobreza. E foi então que ela, aos poucos, foi perdendo a timidez, desfazendo a hesitação e eis que despertou por completo, agarrando-se ao ciciar sibilante do vento, apegando-se ao fluxo perene das marés, soltando o seu destino sobre cada amanhecer, despejando um rio de sorrisos sobre os resíduos do enxofre da lava basáltica, transformando o Pico num rio onde despejava os seus desejos inocentes, num mar onde imperava a ternura, a inocência e a graciosidade.
Havia morangos dispersos por quintais e jardins, à espera que se abrissem os umbrais das portas e ela saísse em pesquisa e os agarrasse como se fossem troféus guardados, religiosamente, pelos seus antepassados. Nos campos floresciam physalis amarelados, protegidos em capotes aveludados, à espera que um sorriso incandescente os desfizesse em enlevos fascinantes. Nos beirais das casas pendiam, suspensas em ramos ressequidos, bagos esverdeados, gotas coloridas, aspergindo o perfume adocicado das uvas. Por entre bardos de hortênsias multicolores intercaladas com ramos de urze e troncos de cedro carcomidos pelo tempo, em pastagens incrivelmente verdejantes, manadas de “mumus” fixavam, com determinação e fascínio, o vibrar ecoante da sua passagem. O chão cobria-se de passadeiras verdes e aveludadas que, soltando um sorriso inebriante e permanente, convocavam destinos de sonho e edificavam romagens de encanto. As tardes eram sonolentas e as noites silenciosas incrivelmente mágicas. Adormecia sob as lajes negras e rijas, que o mar beijava sem jeito e sem pressa, mas, de manhã e à tardinha, a água era a rainha que impunha, dominava e alterava os destinos. E no silêncio nocturno, iluminado pelo tremelicar de estrelas e constelações, esvoaçavam, a caminho do oceano, cagarras, enchendo o céu com cantares aparentemente agonizantes, mas sublimes, misteriosos e originais.
E o Pico, de repente, transformou-se num jardim, numa espécie de éden primitivo,
onde se soltavam desejos, se encobriam desassossegos, se mistificavam vontades, se geriam sonhos, porque até a montanha, com a sua chegada, se cobrira, inequivocamente, com um manto de esplendor suave, vivificante e redentor.