PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O NAUFRÁGIO DA BIDART – DADOS HISTÓRICOS
A Barca Bidart encalhou, na noite de 24 para 25 de Maio de 1915, nos baixios da Fajã Grande, mais concretamente no Canto do Areal, por fora da Poça das Salemas. Esta barca pertencia à classe de barcas francesas, com 3 mastros, "Amiral Courbet". A "Bidart" é um símbolo do canto do cisne dos últimos veleiros no virar do século XIX. Estes navios, cuja única propulsão era a vela, iriam desaparecer em função dos Clippers e navios de metal, maiores e mais rápidos.
A "Bidart" foi lançada à água em Setembro de 1901,em França. Acabariapor encalhar e consequentemente afundar-se a 24 de Maio de 1915, nas rochas do Baixio, zona perigosa devido aos muitos laredos ali existentes, na Fajã Grande das Flores, Açores.
Durante a noite de 24 para 25 de Maio de 1915, abarca francesa de três mastros Bidart seguia, a meio pano e em pleno Oceano Atlântico, uma rota para norte, em direcção ao arquipélago dos Açores. A bordo, o comandante Jacques Blondel tentava proceder à manobra do navio, uma tarefa que não era em nada facilitada pela escassez de tripulantes válidos - com efeito, em pleno século XX, ainda se morria de escorbuto a bordo dos navios oceânicos. A longa viagem, sem escalas, que a barca Bidart realizava entre o porto de Thio, na Nova Caledónia, e o porto de Glasgow, na Escócia, era propícia ao desenvolvimento desta e de outras doenças, causadas por uma deficiência de vitamina C na dieta diária dos tripulantes. O escorbuto, causador de perturbações ósseas e de dores musculares, provocava também o aparecimento de fadiga e de depressões, o que em muito terá contribuído para o acidente e consequente naufrágio da barca.
Após vários dias de sol encoberto e da presença omnipresente dos nevoeiros, durante os quais não fora possível posicionar o navio pelo sol, o comandante estava praticamente perdido, sem ao menos saber a latitude certa da embarcação. Para piorar ainda mais as coisas, durante o anoitecer do dia 24 de Maio, morreu um dos marinheiros, de nome Letloc. Poucas horas depois, outros oito se lhe seguiriam.
A barca Bidart fora construída em 1901, pelos estaleiros navais Chantier Nantais de Construction Maritime, de Nantes. Este navio tinha 2199 toneladas de arqueação bruta e 1917 toneladas de arqueação liquida. O casco era de aço, tinha 84 metros de comprimento, com 12,30 metros de boca e 6,80 metros de calado. Como todas as barcas, tinha 3 mastros, largava pano redondo no de proa e no grande, e um latino quadrangular e gave-tope no de ré. Os mastros de proa e o grande tinham dois mastaréus enquanto que o de ré - denominado da mezena - tinha um só.
Em Setembro de 1901, abarca fora lançada à água e entregue à Société Bayonnaise de Navigation. A barca, comandada pelo capitão Pinsonnet, iniciou então várias viagens entre a Europa e o continente americano, sem acidentes. O único, digno de menção, ocorreu em 1906 quando, em viagem para Tacoma, Washington, uma tempestade lançou um homem ao mar e arrancou parte do velame e da mastreação da barca.
Em Maio de 1911, a Bidart foi vendida à Societé Anonyme de Voiliers Normands, estabelecida na praça de Rouen. Em 1915, sob o comando do capitão Jacques Blondel, os 23 homens da tripulação carregaram minério de níquel no valor de 500 mil francos e partiram da Nova Caledónia, com destino a Glasgow, na Escócia.
Após quatro meses de viagem, a barca aproximava-se perigosamente do seu último destino. Às 4.30 da madrugada do dia 25 de Maio de 1915, o capitão Blondel apercebe-se, por entre a névoa matinal, de que a barca se aproximava de uma zona de rebentação. Rapidamente, Blondel tentou fazer com que o navio virasse para o mar. No entanto, a bravura crescente do mar e vento não lh'o permitiu vindo o navio a descair encalhando enfim no canto do Areal, junto aos rochedos da Poça das Salemas, na freguesia da Fajã Grande, a cerca de50 metros de terra.
Com o encalhe, o navio parte-se em dois e afunda-se, até ao castelo de popa, a cerca de8 metrosde profundidade. No processo, caiu também o mastro do traquete sobre a ré do navio. Com os salva-vidas inoperacionais, o piloto, o cozinheiro Charles, o imediato Pedron e o contramestre Lhotis atiraram-se à água, no intuito de se dirigirem até à costa e pedirem ajuda. Infelizmente, a agitação do mar apenas permitiu que fosse o piloto o único a lá chegar.
Perante este cenário, o comandante ordenou o abandono do navio. Após se terem munido de coletes de salvação, os elementos da tripulação saltaram, um a um, para o mar revolto. No final, apenas 14 se salvaram, entre eles alguns mais ou menos pisados, tendo-se afogado os marinheiros Legasi, Lecandre, Totbien, Lebreton e Kerne. Logo que foram recolhidos, os náufragos foram logo vestidos e tratados com a maior solicitude, por todo o povo da freguesia. O médico de Santa Cruz procedeu logo aos primeiros socorros, fazendo embarcar os feridos mais graves para o Hospital de Santa Cruz das Flores, logo no dia seguinte, assim que o mar acalmou.
Tanto o cozinheiro como o contramestre se afogaram, tendo os seus corpos dado à costa na freguesia da Fajãzinha, no dia 25 de Maio, juntamente com o de um marinheiro. Imediatamente, o povo os colocou em câmara ardente numa casa do Espirito Santo e ofereceu-lhes 6 coroas de flores naturais, que foram depostas sobre os cadáveres. Os habitantes ofereceram tambem lençoes e almofadas para os caixões dos mortos. Por iniciativa do vice-vigário da freguesia, reverendo Caetano Bernardo de Sousa, fez-se o enterro com toda a solenidade, sendo os três cadáveres acompanhados por todo o povo da freguesia. Os restantes mortos foram sepultados na Fajã Grande.
O que restava do navio - avaliado em cerca de 300 mil francos - e da carga, foi arrematado por José Azevedo da Silveira por 210$000 reis, no dia 29 de Maio. Este comerciante local acabou por tomar posse de alguns salvados tirados do castelo de proa, único ponto do navio que ficou fora d'agua. O resto do navio estava submerso a alguns palmos abaixo da linha d'agua, tendo dentro parte da carga e todos os objectos de bordo, conservas e algum dinheiro. Por vários dias, o mar em volta do naufrágio tomou uma cor avermelhada, devido à fuga do minério de níquel que vinha embarcado a bordo da Bidart. O povo crédulo, cuidou que eram as almas dos marinheiros mortos que ali haviam ficado sem sepultura. Os náufragos sobreviventes embarcaram então para Lisboa, a bordo do paquete Funchal, tendo escalado Angra do Heroísmo a 15 de Junho de 1915.
No meio de todo este azar, o mais azarado acabou por ser o imediato, que acabou também por falecer. Este, que estava para se casar e que iria assumir o comando da Bidart, já tinha naufragado anteriormente nos Açores quando, simples marinheiro a bordo da galera francesa Caroline, encalhou na vila da Madalena, ilha do Pico, a 3 de Setembro de 1901.