PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
MINHA AVÓ E A LADAINHA DE NOSSA SENHORA
Em casa dos meus avós maternos todos os dias, à noite, se rezava o terço. Era um costume ancestral que, pelos vistos, já vinha dos tempos de meus bisavós, trisavós, tetravós e por aí atrás. Por tradição, quem presidia às orações era o chefe de família ou cabeça de casal, ou seja, o meu avô. Porém, após a sua morte passou minha avó a fazê-lo, na sua qualidade de chefe de família substituta. Ao terço seguia-se a Salve Rainha e logo, depois desta, a Ladainha de Nossa Senhora. Minha avó rezava-a de cor, em grego e em latim! No entanto, se eventualmente fosse interrompida a meio ou em qualquer parte da mesma teria necessariamente que voltar ao início, recitando-a de novo do princípio ao fim e de um jacto. Além disso proferia as invocações, umas atrás das outras, com tal rapidez que quase nem tempo dava para o “ora pró nóbis” com que devíamos responder a cada uma.
O mais interessante e curioso, no entanto, era a maneira como pronunciava cada invocação à Virgem, em latim.
Minha avó iniciava a Ladainha em grego com o tradicional Kyrie eleison (Κύριε ἐλέiησον). Porém como treinava todos os dias durante a missa e em voz baixa, ouvindo o senhor padre rezá-lo antes do Gloria, nestas frases não se saía muito mal. A seguir vinha a invocação da Santíssima Trindade e os “Sancta” da Virgem Maria, onde também se safava razoavelmente bem. Nos “Mater” e nos “Virgo” porém, a coisa já fiava doutra maneira e as dificuldades já eram muito grandes: - “Maté devinhagrá, Maté por isso, Maté criató, Vigo veneran, Vigo predican”… Mas a partir daqui é que eram elas: - “Se dés sapien, Casanosta lati, Vazo spritual, Vazo onorá”... e assim sucessivamente. De seguida, chegava às “Torres”, o ponto alto da declamação. Era o descalabro total! “Turres da vida, Turre zé burro, Domuzau, Fedisá, Zalu zinfimó, Refujo pecató, Consolá tusaflitó”. Finalmente as “regina”, terminando assim a Ladainha em grande com a invocação final “Regina stóruó.”
Uma coisa é certa, porém. Minha avó recitava a ladainha com uma concentração impressionante, com uma atenção excessiva e com uma devoção inaudita. E ai de nós, se a distraíssemos, se nos ríssemos ou se brincássemos durante as rezas, as quais fazia geralmente, com uma varinha na mão, embora creio que fosse com o primordial objectivo de enxotar as moscas, que ali, em casa, não eram poucas… Mas verdade é com a varinha na mão nos obrigava a estar mais atentos e concentrados nas orações, evitando, brincadeiras, graçolas e risadas.