PICO DA VIGIA 2
Pessoas, costumes, estórias e tradições da Fajã Grande das Flores e outros temas.
O ELOGIO DA ADEGA
No Pico e mais concretamente no lugar da Prainha, freguesia de São Caetano, a adega familiar assumiu, desde os tempos mais remotos, um papel importante e de destaque no quotidiano dos seus habitantes, nos seus costumes, tradições e até na sua própria economia. Embora vocacionada desde sempre como local de fabrico do vinho (ao menos naquelas que tinham no seu interior ou anexo um lagar) e, sobretudo, da sua guarda, a adega foi-se transformando, ao longo dos tempos, numa espécie de granja onde, juntamente com o vinho, o bagaço e a angelica e, misturados com barricas e garrafões, se guardavam murmúrios resplandecentes, devaneios indecifráveis e aromas dulcificados, ou num granel onde, aos odores opacos e perplexos do mosto a fermentar, se adicionavam e misturavam refluxos candentes, ressonâncias mágicas e ecos retumbantes, de memórias e tradições, ou seja, num local de sonhos idílicos, de fascinações extasiantes e de enlevos arrebatadores. Uma espécie de epicentro da sublimidade, do enlevo, das ausências impostas, das negações forçadas e de carências postuladas, tudo isto motivado por uma insularidade rural, assumida, rústica e mística. Por isso é que a adega, ao longo dos tempos, se foi transformando também em local de romarias permanentes e contínuas nas tardes de domingos e feriados, ou de visitas diárias, à noitinha, em dias de semana e de trabalho, umas e outras, prolongadas, estendidas e ramificadas, vezes sem conta, pela noite dentro, por vezes, até pela madrugada. Além disso, muitas vezes, romarias e visitas eram acompanhadas de opíparas refeições, transportadas em cabazes, à cabeça de mulheres robustas, moçoilas empavesadas, onde não faltavam os inhames, a linguiça, os torresmos, o peixe frito ou assado e o bolo do tijolo, enquanto muitas outras se reduziam a um simples mas delicioso e revigorante caldo de peixe, acompanhado com o vinho, bebido nas tradicionais tigelinhas de barro, extraído, directamente, das barricas, ou, outras vezes a estagiar e a criar lastro no canjirão. Muitas, porém, eram as idas à adega, apenas encharcadas de vinho, espevitadas com bagaço ou adocicadas com angelica, mas vazias de vitualhas. Mesmo assim não deixavam de ser alegres e folgazonas. Era a safra destemida e sublime do lazer, ora juntando familiares, ora reunindo amigos. Era o encontro e reencontro, a partilha e a entrega, a troca de afectos, sentimentos e, sobretudo, de palavras. Era sobretudo por altura de aniversários e das festas do Natal, da Passagem do Ano, da Páscoa, do São Martinho, dos Santos e outras que a adega assumia o seu estatuto de “catedral” do convívio, da confraternização, do lazer e da desmitificação, entregando-se a um devaneio por vezes tresloucado, eufórico e alucinado mas sempre generoso, concertante e fraterno.
Mas era sobretudo na época das vindimas e na altura da apanha dos figos que as adegas de São Caetano se enchiam de gente, de trabalho e de folguedos enquanto, nos caminhos circundantes e nas veredas intercalares circulavam pessoas numa labuta árdua e cansativa mas gratificante e desejada. Era por essas alturas que os ares se perfumavam com os odores adocicados do mosto e dos figos a fermentarem, enquanto aqui e além fumegavam, por entre os telhados, sabores magnificentes, gustações sumptuosas e paladares opulentos.
A adega quando assolada pela presença do dono, tinha as suas portas sempre aber